Devasto Prod lança álbum com tecnologia nos beats e resistência no discurso

Victor Santos
Pilaco Vaps
Published in
11 min readSep 6, 2017

O disco “Em Tempos de Hoje” traz a modernidade do trap a partir de um discurso tradicional da zona sul de São Paulo: o gangsta

“Um dos moleques da quebrada falou que eu era uma devastação. Chega quebrando tudo, xingando todo mundo. Eu não sabia o significado da palavra e achei que era xingamento, fiquei puto e apelido se pega assim”.

Roger Costa Campos, 33, é mais conhecido como Devasto Prod, produtor musical há mais de 15 anos, acaba de lançar seu primeiro álbum intitulado “Em Tempos de Hoje”. O disco une a linguagem moderna do trap e traz uma narrativa de continuação do tradicional estilo gangsta da zona sul de São Paulo, muito forte nos anos 1990. “Tento misturar a linguagem. Trazer a modernidade do trap sem abrir mão do conteúdo. É ideia de favelado, preto e resistente que não se deixar abater e resiste”, explica.

Ouça “Em Tempos de Hoje”:

O álbum une grandes nomes da música, como Big da Godoy, Bitrinho, Clara Lima, Dee 5pra1, Djonga, Doncesão, Drik Barbosa, Dyorubá, Febem, Flow Mc, Jamés Ventura, Junior Dread, Kelly Souza, Rashid, Savave, Terceira Safra, Torres (MOB79) e Tuty. O trabalho ainda conta com o instrumental do pianista Dado Tristão e da banda de rock Medulla em algumas faixas, além do apoio da Pilaco Vaps, do Estúdio Markone e do fotógrafo Gabriel Wickbold, que elaborou o material visual do disco.

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Devasto é nascido e criado no Jardim Nakamura, vizinho do Capão Redondo. O amor pela música veio cedo, a influência do ícone do blues e jazz Ismael Costa, seu tio. Crescendo na década de 1990 curtia muito a cena grunge e rock, numa pegada de Nirvana à Def Metal, passando por Led Zeppelin e Ozzy Osbourne. No estilo, misturava as camisetas de rock com as calças big do rap e do skate. A aproximação com o rap foi natural da rua, quando mais novo visitou a galeria do rock e se identificou com o lifestyle do rap.

“O rock e o rap sempre conversaram na questão de militância. É mal visto, tem preconceito com o lifestyle”, comenta.

Num dia de rolê, no centro, viu um busão para Porto Alegre, foi com a roupa do corpo, pois “estava meio empapuçado de São Paulo”. Ia passar uma semana e passou alguns anos.

Na volta para São Paulo, começou no beatbox, na produção de eventos, chegou a trabalhar em rádio comunitária no Jardim Horizonte Azul e também foi MC na banda Diébanus, que era produzida por Mano Brown e apadrinhada por Jorge Ben Jor. Após um acidente de moto, começou a produzir, seu primeiro estúdio era na tradicional barbearia da zona sul o Josyas Barbershop, onde se aproximou dos Racionais Mc’s.

Veja a participação da banda Diébanus no programa “Altas Horas”:

Após um chamado para participar na mixtape “Batalha das Quadras” da NIke, à convite de Ice Blue. Com um bom resultado, começou a trabalhar na produção dos Racionais, onde ficou por bastante tempo. Ao sentir a necessidade de aplicar o aprendizado em outros espaços foi para o Rio de Janeiro, onde expandiu seus contatos, conheceu Mc Marechal, o grupo 3030, gravou com Sant e conheceu uma rapaziada.

Conta ter entrado em contato com gente de muita grana, o que trouxe educação financeira e o fez valorizar sua quebrada. “Por quê?”, questionei. A resposta: “Disciplina… na favela a gente é mais respeitoso. Nunca vai ser arrogante com uma tiazinha do hot dog, vivendo do outro lado eu vi isso”.

Retornou para São Paulo para fortalecer seu trampo e sua quebrada.

Foto: Gabriel Wickbold

Há cerca de dois anos, começou a trabalhar com audiovisual, fundou o selo Black Work Gang e a produtora NTP Filmes. Recentemente lançou os clipes “Perder o Sono” do grupo carioca 3030 e “Esquimó” do mineiro Djonga (links disponíveis abaixo), além de outros trabalhos audiovisuais e musicais.

Devasto deu uma entrevista à Pilaco Vaps, em que falou sobre sua caminhada, sua leitura do rap enquanto produtor, o legado da zona sul paulistana, a influência das cenas das costas leste e oeste dos EUA, entre muitos outros assuntos.

Leia abaixo:

Pilaco Vaps — Devasto vem daonde?

Devasto Prod — Zueira de quebrada. Era moleque e incomodava um pouco o bairro, era uma época de muita gangue na zona sul. Eu era aquele moleque folgado, mais novo que anda com os mais velhos, qualquer coisa quer sair na porrada, mesmo sabendo que vai apanhar. Uma vez um dos moleques da quebrada falou que eu era uma devastação. Chegava quebrando tudo, xingando todo mundo. Por eu não saber o significado da palavra fiquei puto. Apelido se pega assim.

Pilaco — Qual a ideia do disco “Em Tempos de Hoje”?

Devasto — Apresentar minha visão como produtor e diretor. Eu mandava (para os artistas) beat com guia de rima, refrão cantado, só pro pessoal ter uma noção do caminho que eu queria. Os artistas tem a carreira e o estilo deles, eu convite foi para trazer eles para a minha visão de rap.

Foto: Gabriel Wickbold

Pilaco — O que você tenta passar? Qual é essa visão?

Devasto — Há alguns anos eu conheci o Zé Gonzales, o DJ Zegon, no projeto da música “Umbabarauma” com o Mano Brown, que os produtores eram o Zé e o Daniel Ganjaman. O Brown me levava pro estúdio e eles me davam moral, nisso eu fui pegando amizade com o Zegon. A gente começou se trombar em rolê e trocava umas ideias de querer juntar a agressividade da batida do rap com o eletrônico. Como o Zegon viaja muito, eu trabalho muito, a gente não conseguia se encontrar pra realizar a parada mesmo, fomos tocando nosso trampo. Um tempo depois aparece o Trap. Há 8 anos que a gente buscava esse caminho (rs). Eu me identifiquei de primeira.

Relembre a parceria histórica entre Jorge Ben Jor e Mano Brown:

Pilaco — Como você vê o Trap?

Devasto — O Trap é um movimento, tem várias vertentes, é muito recente no Brasil. Na parte gangsta, me parece que o trap é o que faz a continuação do que rolava nos anos 1990, só que mais moderno. Trap é continuação de Ice-T e N.W.A. Pega essas músicas, altera o bpm e ela vira um trap. Essa rapaziada já tentava fazer um chimbal corrido, vários elementos do trap estão nessas músicas já no final dos anos 80. Alguém decidiu subir o bpm disso tudo mas a ideia já estava lá. Na época, eu comecei a trabalhar numa pegada mais “Dirty South”, foi quando produzi a “Cava Cava” do Edi Rock, já estava explorando o trap.

Pilaco — E a questão da narrativa?

Devasto — É minha forma de expressar que: “Em Tempos de Hoje” é assim que tá andando, a galera tá curtindo isso. Quando eu convidei o Rashid, ele nunca tinha rimado em base de trap, a levada dele é diferente, mais agressiva. O conteúdo é periférico, as ideias que o Rashid dá são de favelado, preto, sofrência de favela. Tento misturar a linguagem, trazer a modernidade do trap sem abrir mão do conteúdo. Sem falar merda. É real mesmo, é ideia de favelado e preto resistente que não se deixa abater. Resiste.

Pilaco — Essa militância vem da onde?

Devasto — Sempre fui de militância. Com 13 anos tatuei o escrito de “quilombo” no braço. Sempre me coloquei perante a sociedade como homem negro de periferia. O Racionais me ensinou muito também. Eu quis trazer a modernidade do trap, a cultura do grave, com conteúdo que fosse a evolução do que fazia nos anos 90. Tem músicas mais tranquilas no disco mas a maioria é nessa pegada. Tem a faixa da Drik Barbosa com a Kelly Souza, por exemplo, que fala de empoderamento da mulher, a postura da mulher, trazer a malícia da mulher também. Ficou foda, sensual. O disco todo gira nessas ideias.

Ouça “Cava Cava” de Edi Rock com produção de Devasto:

Pilaco — Qual a importância da sua quebrada para isso?

Devasto — Minha quebrada é abandonada, ninguém conhece, falta muito pro povo daqui e eu amo esse lugar. É você se olhar no espelho e se enxergar de verdade. Saí da periferia novo, dei uma rodada, conheci diferentes tribos, religiões, culturas, condições financeiras e no meio de tudo isso comecei a entender a importância que eu tenho para minha raiz. Como eu poderia fazer algo por isso? Entendi que devia trazer o meu olhar de arte pro bairro e trazer visibilidade. Trouxe o Djonga pra fazer o clipe na quebrada, tento fortalecer de alguma forma.

Pilaco — Qual o estilo zona sul?

Devasto — A Zona Sul sempre foi referência de rap gangsta. Tinham muitos grupos, o tempo foi passando, muitos não souberam lidar com esse novo momento. Tivemos o Sabotage porra, hoje ainda existe Criolo, Ice Blue, Mano Brown, Rappin’ Hood. Só que a frequência de lançamento dessa galera da antiga não é a mesma da molecada. Queira ou não queira fica carente de referência e vai perdendo o espaço. Aí a referência daqui da zona sul mudou para o funk, os moleques estavam cansados de tomar puxão de orelha, necessário nos anos 90. A militância naquela época era diferente por necessidade. Lutamos pra caralho e os caras mais velhos que eu mais ainda. Hoje na quebrada, os vagabundos têm celular de dois mil reais, naquela época era impossível. Minha avó ficou oito anos pagando ações pra ter uma linha telefônica. No meio disso, vários caras se perderam, não sei o que aconteceu com cada um, mas numa análise de zona sul, começou a ficar fraco de referência, principalmente no estilo de rap próprio da zona sul, o gangsta.

Veja o clipe de “Esquimó” de Djonga dirigido por Devasto Prod:

Pilaco — Explica mais essa pegada gangsta na zona sul.

Devasto — Pega o exemplo do Xis que eu acho muito foda. É zona leste, é gangsta, tem militância e, de certa forma, é mais tranquilo. Cada bairro tem um estilo, um sabor. A zona sul nos anos 90, principalmente aqui no bairro, é diferente. Foi considerado o bairro mais perigoso do planeta (clique aqui para mais informações). Hoje não é dessa forma pelo menos, essa parte de crime mudou, é outra parada. Antigamente você vivia oprimido no bairro, o que mais tinha era toque de recolher. Tipo, oito horas da noite ninguém sai de casa porque a bala vai comer. Finalzinho dos anos 80 e começo dos 90, a zona sul de São Paulo era lotada de gangues, algumas até famosas mundialmente. Tiveram os Ninjas no Jardim Ângela, na minha quebrada eram os Bronx. Cada bairro tinha sua gangue e uma guerreava com a outra. Esse estilo é zona sul.

Pilaco — Qual as principais influências do rap gringo?

Devasto — É engraçado. A gente se identifica com o estilo musical que, lá fora, é o estilo praiano. A nossa referência de estilo gangsta é Califórnia, é Los Angeles. Uns caras como Dr Dre e Snoop Dogg, numa pegada mais atual é The Game. Tudo West Coast cara, praia, Compton. Lá também lembra um pouco aqui, um estilo pesadão, pegada cadeia mesmo.

Pilaco — Mas e a cena de Nova York?

Devasto — Também influenciou mas era mais underground. Acho complicado classificar entre “gangsta” e “underground”, meio injusto até. Mas o estilo NY era mais Gang Starr, Guru Jazzmatazz, tinha mais soul, jazz, mais musical, mais calmo, mesmo na militância tinha uma atmosfera mais tranquila. O gangsta era mais agressivo, barulhento e seco, um estilo mais foda-se e bala na cara. Tanto que nosso estilo é diferente. O Public Enemy, que é NY, também trouxe essa linguagem da militância, era aquela época de Black Panther e guerra nas ruas. No Brasil, o Racionais Mc’s é a principal referência de gangsta, mas é complicado porque dentro do Racionais existe um cara que levantou a bandeira do underground: o KL Jay. Só que esse estilo de meter o dedo na ferida mesmo é West Coast e é o que a gente se identifica.

Assista o clipe de “Perder o Sono” do 3030, dirigido por Devasto Prod:

Pilaco — Como você avalia o rap hoje desse tamanho?

Devasto — É difícil resumir. É a pegada do Yin Yang. Os caras dos anos 90 realmente abriram porta, carpinou o terreno, tomou bala, expandiu o movimento e facilitou a produção. Mas eu vejo que a molecada se importa mais com o lifestyle do rap do que com a importância desse gênero. Nego não pesquisa, não traz referência. Quem abriu as portas pra você ganhar dinheiro com rap? Muitos caras nem têm ideia, falta comunicação da nova escola, perceber a importância desses caras. Falta esse tipo de respeito, o estudo da arte em si, nos anos 90 nego era mais aplicado, pela facilidade do acesso e de muitos aspectos do trabalho, nego não dá tanta importância. Esse é um lado que me parece estranho, usar rede social pra guerrear, invés de trabalhar, crescer, fazer dinheiro, dar respaldo pra cena, fazer mudanças consideráveis.

Pilaco — Você fala da chamada diss?

Devasto — Hoje tem essa burrice de diss, um falando merda de outro, o estilo zona sul não se encaixa com isso, a gente não se envolve. Quer falar mal de mim? Vou bater na porta da sua casa pra te perguntar qual o problema, entendeu? Não vou usar fã de internet pra sair xingando.

Pilaco — Muito se justifica que isso é o chamado “game”.

Devasto — É um “game” besta. Esses tempos o Puff Daddy falou que ia ficar um tempo sem lançar nada. O cara carpinou tanto o movimento pra ter essa estrutura, morreu gente, tá ligado? Pra chegar agora e ter música que vende milhões falando “cheirar cocaína, tomar êxtase e ficar doidão”? Sem nexo, mano. O cara é um dos pais do rap e tá criticando a futilidade. O movimento ainda tem sua parte de resistência, mas muita coisa é besta. Aqui tá tendo muito, e eu não tenho preconceito mas ainda não consigo assimilar, as egotrips. Em alguns momentos cabe mas também tá muito.

Pilaco — Mas tem o exemplo do “Sulicídio”, uma diss que abriu as portas pra rapaziada do nordeste.

Devasto — No caso do “Sulicídio” conseguiram abrir um leque pro nordeste que não existia e se fala em Baco e essa rapaziada por causa desse som. Mas o Don L já está abrindo esse caminho há muitos anos. Aqui em São Paulo gente escutava Costa a Costa e pirava, teve o Rapadura, outros caras que tem já carregavam esse estilo.

Pilaco — Apesar da galera aqui amar um Dr Dre, a cultura de discos de produtores ainda é uma novidade, não?

Devasto — Pro mercado brasileiro é muito novo. A referência maior é indiscutível: Dr Dre. Pra mim, o Timbaland vem na sequência. Sempre me inspirei muito no estilo de produção dele. Dos produtores mais atuais, eu gosto muto do estilo do Ryan Leslie, entra no estúdio e faz tudo na hora, é a forma que eu trabalho. Em questão de business não tem como deixar de lado o DJ Khaled, puta marqueteiro.

Capa do álbum “Em Tempos de Hoje” — Foto: Gabriel Wickbold

Pilaco — Fala do trabalho na Black Work Gang e a NTP Filmes.

Devasto — A NTP surgiu a partir de uma necessidade de marketing da minha carreira, eu não tinha como pagar, estudei e fiz uma aposta há dois anos nesse lado de filmmaker e tá dando certo, trabalhamos com animação 4d. A BlackworkGang é um filho novo, quando eu quis criar esse selo, ele tem um conceito diferente, a gente não gosta de se classificar assim, é por questão judicial que isso acontece. Entre a gente é uma gangue, nós lidamos com o trabalho como se fosse crime, anda junto, se fortalece, arruma até briga junto se precisar. Tentamos girar o dinheiro entre nós, sempre apostando. Todo mundo é artista novo, gente que pegamos de base mesmo para construir aos poucos para até conseguir mudar essas ideias de ego de super artista. A gente trabalha lapidando artistas, pra manter o pé no chão, militar, manter a postura, tem todo esse conceito.

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