Historiador da USP explica fumo a partir do uso, entendimento e regulação

Victor Santos
Pilaco Vaps
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11 min readMar 31, 2017

Henrique Carneiro tem como principal eixo de pesquisa a história das ingestões o que abrange a alimentação, as bebidas e o consumo de drogas

“As drogas têm um percurso que vai além da história do produto em si e de suas formas culturais de utilização, também existiram formas de regulação”. A afirmação é do professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), Henrique Carneiro, que tem a história das ingestões humanas, como alimentos, bebidas e drogas, como principal eixo de pesquisa.

Nos encontramos numa manhã quente em sua casa, próxima a Cidade Universitária, na zona oeste de São Paulo. Em cerca de uma hora de entrevista, conversamos sobre as diferentes formas como a sociedade ocidental lidou com o fumo ao longo da história, inclusive questões humanas do ato de fumar que vão além da ação do THC, no caso da cannabis, e da nicotina, caso do tabaco.

A entrevista também analisou as diversas mudanças da concepção do ato de fumar ocorridas no século 21, pensando na mudança em legislações de diferentes países e o avanço das pesquisas científicas.

Abaixo a entrevista completa com Henrique Carneiro:

Pilaco Vaps — Quais foram os primeiros vestígios do ato de fumar?

Henrique Carneiro — Fumar era uma técnica indígena americana ligada à ingestão do tabaco e de outras plantas fumadas e absorvidas de outras maneiras. Os europeus desconheciam a técnica, tanto que ficaram muito espantados com aquilo. Achavam que os índios engoliam fumaça e viam como uma prática demoníaca que foi proibida. Um marinheiro de Colombo, que teria sido o primeiro introdutor do tabaco na Espanha, foi preso por esse motivo na Inquisição. Ele ficou vários anos encarcerado e quando saiu já havia uma naturalização do hábito (para saber mais clique aqui). Na Ásia e na África existem vestígios bem antigos da prática de se fumar, tanto o cachimbo de água usado no mundo islâmico e indiano. Há o narguilé e o hookah que, em geral, continham outras substâncias além da cannabis. Havia uma forma muito peculiar na África do Sul: fumavam maconha na terra. Faziam um buraco, colocavam brasas, formavam uma fogueira, juntavam a “daga” (como era chamada a maconha), punham um tubo e aspiravam da terra. O ato de fumar só se tornou algo difundido na sociedade na época moderna (1453–1789).

PV — Quando o fumo se tornou costume?

HC — Em toda a iconografia da época (em que se começou a fumar), que é a representação pictórica, sobretudo na pintura moderna, o ato de fumar é atrelado às camadas subalternas. As elites vão absorver o tabaco de outra forma: através do rapé. No século XVII até o XVIII, havia uma distinção social: quem fumava era pobre e quem aspirava tabaco pelo nariz eram os membros da nobreza e da camada eclesiástica. A relação dos jesuítas com a aspiração de rapé era tão intensa que um se tornou um sinal distintivo deles. O cigarro se populariza sobretudo nas camadas populares antes de se tornar um hábito de ampla difusão. Quando chega a essa situação, já do século XVIII ao XIX, é associado a uma sociabilidade masculina, que exclui as mulheres. Há a confecção de uma peça do vestuário masculino, o “smoking”, associado à prática de cavalheiros se unirem para fumar e discutir assuntos masculinos como a política, também eliminando as mulheres dessa união.

Leia aqui a primeira entrevista da série FUMO com o biomédico Renato Filev.

PV — E outras substâncias fumígenas nessa mesma época, como a cannabis?

HC — No século XIX, nem o ópio e nem a cannabis eram fumadas. Elas eram ingeridas. Os poetas franceses do famoso “Clube dos Hashischins”, como Baudelaire e Balzac, nunca fumaram: ingeriam haxixe na forma de um confeito árabe, misturado com mel e pistache, chamado Dawamesk (Para mais informações clique no link, em inglês). Além disso, o ópio foi o principal medicamento da humanidade no ocidente e no oriente por séculos, consumido na forma sólida ou líquida. O ato de fumar chega a China por influência ocidental e himalaia de fumar tabaco. Se utilizava uma mistura feita na Indonésia chamada Madak de maconha, ópio, tabaco e outras plantas, uma série de blends e misturas. Esta prática se difunde nas camadas pobres da China e atinge um setor da mais alta elite chinesa que também adere ao ópio fumado. No ocidente, o ópio não era tão fumado, tanto que a grande literatura que vai fundar a história do hábito é chamado “Confissões de um Comedor de Ópio”, do Thomas De Quincey (1785–1859).

PV — O ato de fumar, independente da substância, vem com o tabaco?

HC — O tabaco se aclimata nas camadas subalternas, é nobilitado com o uso do rapé e chega a se tornar um hábito de luxo com o charuto e o cachimbo, no sentido de um consumo excepcional para os europeus. Na segunda metade do séc 19, começa a haver a difusão do cigarro na forma industrial, nesse momento se torna uma espécie de ração fundamental do cotidiano, não entre os trabalhadores pois o gesto pode atrapalhar a atividade laboral, mas sobretudo entre soldados. A grande mudança é com o cigarro industrializado. O álcool não era permitido porque alterava a conduta e a eficiência, já o cigarro não alterava a consciência e podia até melhorá-la, é um excitante, combate o sono, permite maior concentração. A Guerra Civil Americana (1861–1865) e a Guerra da Criméia (1853–1856) são dois eventos que contam com a disponibilidade de cigarro industrializado, que passa a se incorporar à ração militar, vira uma espécie de entretenimento para os soldados.

Abaixo, palestra de Henrique Carneiro sobre a história das drogas:

PV — Como o cigarro se populariza fora do âmbito militar?

HC — Um grande industrial americano, o James Buchanan Duke (1856–1925), foi um forte influenciador. Criou a American Tobacco Company e deu uma enorme contribuição a uma universidade importante, a Duke University, que leva seu nome. A Lucky Strike também tem seu papel. Criam uma campanha publicitária, nos anos 1920, responsável pela adesão das mulheres ao hábito do cigarro, uma mulher fumando em público era inaceitável. A empresa começa a criar, com a emergência do movimento sufragista, feminista e etc, uma reivindicação para as mulheres: o direito de fumar. Em 1927, foi feito um lançamento em Nova York, de mulheres que iam fumar em público, se deixavam fotografar na rua fumando. Isso foi uma ação publicitária feita com auxílio de um grande especialista em psicologia, o Edward Bernays (1891–1995), sobrinho do Freud, migrante da Áustria, funda um ramo das relações públicas e das políticas de psicologia social com interesse mercadológico. A operação publicitária acontece em plena Lei Seca, o álcool proibido nos EUA e restrições ao uso do tabaco em alguns estados.

Cartaz utilizado na campanha da Lucky Strike na década de 1920. Imagem: thesocietypages.org

PV — Como foi esse movimento de reposicionar o cigarro? Entendê-lo como algo que faz mal?

HC — O cigarro chega no ocidente e é visto como um medicamento, fumado e aspirado. A prática mais comum da medicina (na época) era a prática catártica, fazer o paciente ter diarreia, vômito e sangria. O cigarro ajudava a espirrar, limpar as vias respiratórias e tal. Também tem uma ideologia na medicina que é a atribuição de virtudes de calor ou frieza e de secura ou umidade para as substâncias. Se entende que o quente e o seco são bons para o organismo, o açúcar, o álcool e o cigarro são vistos esse tipo de mercadoria. Assim, até mesmo doenças respiratórias tinham o cigarro como terapia. Isso só vai se alterar no século 20. A Alemanha nazista realiza uma experiência científica de monitoramento de fumantes, a primeira vez que essa associação foi feita, nos anos 1930. O regime nazista era antitabagista e fez campanha acusando o cigarro de veneno racial. A eugenia trabalha com uma teoria de “degenerescência hereditária”, o problema da humanidade seriam as degenerescências e elas se herdam. O alcoolismo, as práticas sexuais “pervertidas”, a tendência ao crime, seriam taras raciais e isso deveria ser limpado da sociedade, até pelo extermínio dos indesejáveis.

Para mais informações, em inglês, clique aqui.

PV — A partir daí que muda?

HC — Essa primeira evidência não se tornou consensual. Nos EUA do pós-guerra continua havendo o uso de tabaco generalizado, com médicos em campanhas publicitárias. Nos anos 60 é que começou uma associação categórica do uso do tabaco com problemas de saúde e a adoção de políticas públicas que começam a visar restringir o uso. O movimento hippie era antitabagista e isso também auxiliou na conscientização.

PV — Muitas drogas foram impulsionadas por melhorar a performance de trabalhadores. Como é o cigarro nessa questão?

HC — O efeito excitante do tabaco é muito ligado ao trabalho intelectual, escritores, pessoas com uma função reflexiva na sua atividade laboral. O cigarro exige uma prática gestual, não é uma pílula ou um copo de café que se toma e vai fazendo o efeito, há ainda a necessidade de renovar a dose com frequência, isso interrompe o fluxo produtivo. Houve uma campanha contra o tabaco por parte da indústria. Henry Ford (1863–1947) foi um famoso antitabagista, publicou materiais, proibiu a contratação de operários fumantes. Outras figuras como Thomas Edison (1847–1931), fundador e dono da General Electric, também.

PV — O ato de fumar tem o gestual, a fumaça e o fogo. Como é isso para nós seres humanos?

HC — O gesto de fumar também construiu uma dimensão estética e até artística. O gestual, fazer formas de fumaça no ar, dominar a dimensão plástica. É um controle gestual da ansiedade, o cigarro funciona como muleta gestual e se combina com essa possibilidade de ter uma plasticidade visual com a fumaça. O cigarro eletrônico não tem nenhum componente psicoativo, mas acaba sendo útil socialmente por conter a gestualidade. Além disso, ter uma quantia de fogo domesticada na ponta da sua boca, no cachimbo, é uma forma de ritualizar a questão com o fogo e a fumaça. O domínio técnico do fogo sempre foi um atributo fundamental da humanidade. O cigarro tem um charme de incitar o desempenho em artistas, escritores, intelectuais, comerciantes, executivos, homens de negócios. Um bom exemplo é o neurologista e pai da psicanálise Sigmund Freud (1856–1939), fumante compulsivo, refletia sobre essa ideia do cigarro ajudando a atividade intelectual.

E a cannabis no Brasil?

HC — Inicialmente, o ópio era a droga fumada colocada como ameaça para a cultura ocidental, sobretudo no século 19, quando vai ocorrer as duas Guerras do Ópio, 1839 e depois em em 1856. A maconha era fumada em algumas regiões, como o Brasil, de fato se associou ao próprio uso do ópio. Em 1915, José Rodrigues da Costa Dória (1857–1938) era presidente da província de Sergipe, equivalente a um governador hoje, foi a um encontro do órgão que viria a ser Organização dos Estados Americanos (OEA). Fez uma exposição e disse que a maconha é o ópio da América e que iria servir para escravizar seus usuários, assim como foi o ópio no mundo oriental. Uma espécie de vingança do escravizado, que traz a substância que vai escravizar seus antigos senhores. Essa visão era forte no Brasil por uma questão racial, a maconha era associada às camadas pobres de origem africana.

Para mais informações sobre a proibição do pito do pango clique aqui.

PV — Como a cannabis chega no Brasil?

HC — Há um mito que a cannabis chega com os escravos. A maconha chega de forma oficial, na forma do cânhamo industrial. No século 18, existiam plantações de cânhamo em massa no Brasil para fornecer velame e cordame para os navios. Um exemplo é a Real Feitoria do Linho Cânhamo, constituída no final do século 18 em São Leopoldo (RS), a cidade foi fundada por isso e tinham muitos escravos. O cânhamo era vindo da Europa, alguns escravos sobretudo os que vieram da região de Angola, de tradição Bantos, possivelmente passaram a fumar aquela maconha. Também existia um uso consagrado na farmacopeia, óleo de cânhamo era usado para uma série de afecções de pele ou se ingeria para problemas estomacais.

PV— Mas as palavras usadas até hoje, como maconha, são de origem africana?

HC — São da região sul da África, da região Kimbundu e Bantos. Esses nomes tradicionais vieram dos ex-escravos. Diamba, niamba, fumo de angola, pito de pango, maconha, são palavras ligadas a línguas africanas. A cannabis chega na África pelos árabes, na região da África oriental, pega toda a costa oriental, África do Sul e vai até Angola. A região da Nigéria, de tradição Iorubá, desconhecia a maconha. As restrições no Brasil são direcionadas ao uso recreativo ou festivo que os escravos faziam. A primeira grande referência é a proibição oficial do pito do pango no Rio de Janeiro em 1830, a primeira menção de interdição que se conhece.

PV — Como você vê a maconha hoje na sociedade?

HC — As drogas tem uma história que vai além do produto em si e suas formas culturais de utilização, há também as formas de regulação. Os cafeínicos, como café e chá, são drogas sem restrição hoje, até crianças podem usar. Depois, existem drogas “de adultos”, o álcool usado com finalidade mais momentânea, o tabaco é mais curioso, houve uma universalização do seu uso até os anos 1960 e 70, o padrão de uso do cigarro no ocidente era de 70 ou 80% dos homens, assim como acontece em países como Turquia e China hoje, mais de dois terços da população. A partir dos anos 60, começa a haver uma reação, medidas de denúncia dos riscos e de construção de políticas públicas restritivas que minaram a amplitude do tabaco. Mas, ainda nos anos 60, era inadmissível que o tabaco fosse retirado dos espaços. Depois algumas medidas que restringiam o seu uso à prática privada, ou de ambientes específicos para essa finalidade, excluindo o uso de lugares fechados ou até mesmo lugares cobertos em muitos lugares como o Brasil.

PV — Como você entende o papel do estado na regulação do fumo?

HC — Eu sou um defensor de limitações ao uso de substâncias como o cigarro de tabaco, cravo, maconha, até o uso de incensos. Algumas restrições da legislação vigente acho excessivas. Poderia existir um bar de fumantes, mas em outros espaços públicos não se deve permitir nenhum tipo de emissão de fumaça. Do ponto de vista de lugares ao ar livre, é necessário um tipo de regulação, mas deve ter sim um espaço para os fumantes. Sou contra a proibição do consumo público, forte nos Estados Unidos (EUA). Na maioria dos estados dos EUA não se pode consumir álcool na rua, praia, só pode em casa ou em lugares específico para essa finalidade. Em relação à maconha, os EUA não legalizaram o uso público. No Colorado se pode comprar maconha e não se pode fumar num bar, as lojas que vendem não funcionam como espaço de degustação. Vejo isso como algo que não é realmente democrático.

PV — Existe uma ideia de trabalhar para impedir o consumo dessas substâncias. O que acha?

HC — Ninguém pensa em limitações do uso de gordura e açúcar que podem causar obesidade mórbida. O direito de lesão em qualquer prática daninha faz parte da liberdade humana. Se eu quero fazer esporte, estourar meu joelho, ou lutar boxe, arrebentar minha cara, é problema meu. Qualquer prática tem risco, cabe à sociedade impedir que afete terceiros, mas o próprio envolvido é uma questão individual. As práticas de risco devem ser bem informadas e reguladas para não afetar terceiros, mas é do princípio fundamental da liberdade poder fazer o que quiser.

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