Para pesquisador da Unifesp, usuários enfrentam problemas por não saber o que se usa

Renato Filev estuda efeitos da cannabis no corpo humano, diz que campanhas deveriam incentivar prevenção às formas erradas de fumar

Victor Santos
Pilaco Vaps
9 min readMar 9, 2017

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“Para a cannabis ou o tabaco, há quem fume em folha de caderno enquanto deveria procurar uma seda mais fina, um vaporizador, não é bom usar papel com tinta. Evitar e adiar o uso seria o melhor cenário, só que isso não acontece. No caso do tabagista, por conta de doença pulmonar obstrutivo crônica, enfisema pulmonar, câncer de laringe, boca, outros tipos também, como a osteoporose, o risco é a morte”.

A avaliação é do biomédico e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Renato Filev, com quem troquei uma ideia na sede do Centro Brasileiro de Informação Sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), bairro da Vila Mariana, em São Paulo.

Segundo Renato, trabalhar para impedir o fumar cigarro ou o uso de drogas consideradas ilícitas não é a questão. Entendê-las como algo que faz parte do cotidiano e assim prevenir para que o uso aconteça com responsabilidade parece um caminho mais eficiente. “Seria bom que ninguém fumasse? Sim. Só que a vivência humana nunca foi livre do uso de substâncias”, defende.

Biomédico formado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Renato concluiu sua tese de Doutorado no departamento de fisiologia. É pesquisador na área de Neurociências, trabalha no (CEBRID) e no Programa de Orientação de Atendimento a Dependentes (PROAD), ambos da mesma universidade onde se formou.

Atualmente, Renato organiza o 8° Simpósio Internacional da Cannabis, com a temática “Outros Saberes”, no CEBRID, em que vai debater a maconha para além do uso medicinal. No PROAD, trabalha no seu pós-doutorado, com uma pesquisa sobre os efeitos da vaporização de um extrato padronizado de cannabis para o tratamento de dependência do álcool e do crack.

Leia a entrevista abaixo:

Pilaco Vaps — Como você analisa o ato de fumar?

Renato Filev — Desde a descoberta do fogo, o homem tem a prática de consumir vapores ou fumaça de algumas substâncias. A pesquisa contemporânea mostra que fumar não é a melhor forma de distribuir uma série de moléculas para o corpo, pois a combustão gera uma série de subprodutos com efeito maléfico para o organismo. Ainda é uma opção viável em muitos casos. Falando de maconha, por exemplo, um “baseado” pode auxiliar no tratamento de uma série de doenças. A forma fumada é a mais utilizada por pacientes que fazem uso da medicinal, apesar de não ser recomendada.

P — Quais são os riscos da fumaça para o corpo humano?

R— O risco são as moléculas carcinogênicas que podem desenvolver o câncer. O alcatrão e os hidrocarbonetos são moléculas que se desprendem da combustão de matéria orgânica, seja tabaco, maconha ou outra queima. O monóxido de carbono é um gás que entra no nosso organismo no lugar do carbono e do oxigênio, no processo da troca gasosa que acontece nas hemácias, ocupando uma hemoglobina de maneira fixa e permanente. Não se dissocia.

Sabemos que o vídeo abaixo não preza pela beleza, mas é uma forma de tentar deixar mais claro o processo de troca gasosa.

Vale comentar que a ligação entre a hemoglobina com o oxigênio e com o gás carbônico é mais frágil, assim a troca de gases pode ser feita com mais rapidez, só que quando um monóxido de carbono entra na ligação ele permanece por mais tempo e inutiliza aquela hemoglobina. Com uma hiper ingestão de monóxido de carbono se pode morrer por insuficiência de troca gasosa. Há também a combustão incompleta que gera o monóxido de carbono como subproduto, isso pode levar a morte, como o motor de um carro em lugar fechado. Com um “baseado” ou um cigarro não se vai morrer, mas prejudica. Para quem tem má formação nas hemoglobinas (anemia falciforme), por exemplo, a ingestão pode ser relevante. Vale comentar que isso é relativo, quem vive em São Paulo já lida com milhares de motores funcionando. É óbvio que a população ingere monóxido de carbono diariamente.

P — A questão é a queima de matéria orgânica? Não há diferença entre fumar na seda, no cachimbo ou no bong?

R — Durante um churrasco, quando pinga a gordura na brasa e sai uma fumaça, é extremamente cancerígena, com grandes quantidades de hidrocarbonetos. A nicotina é um melhorador cognitivo, assim como a cafeína, a anfetamina, ritalina, vai te despertar, manter alerta. Os usos que não são da forma fumada, seja o vapor, o chiclete e o adesivo, não são ruins de certa forma. O grande problema são os subprodutos da queima. Os hidrocarbonetos, o alcatrão e o monóxido de carbono são as substâncias perigosas de serem ingeridas. Dependendo do que e como se fuma pode haver uma entrada insatisfatória de oxigênio, que pode causar a combustão incompleta que gera subprodutos nocivos à saúde. É possível ter os efeitos buscados no uso dessas plantas ou substâncias sem que haja o desprendimento dessas moléculas que causam câncer. Com um hábito repetitivo, ao longo de anos, tende a aumentar o risco de contração de alguma doença.

Marcha da Maconha de 2016 — Foto: Revista Vaidapé/ André Zuccolo

P — Há algum ponto positivo em fumar?

R — Na pele e na mucosa da boca, a área de superfície para a absorção é pequena. No caso da via digestiva, a absorção é lenta e tem uma demora da molécula em entrar no organismo. A via pulmonar tem uma área muito maior de absorção, muito mais rápida. O sangue que vem dos pulmões faz a troca gasosa ali, depois vai para os tecidos, entre eles o cérebro. A velocidade da absorção é semelhante à aplicação de injeção intravenosa da droga, só que mais segura. Não há exposição para agentes patogênicos como bactérias ou fungos, entrem no sistema circulatório. Através da via pulmonar é mais seguro, há um complexo de defesa imune mais protegido.

P — Sobre fumar em lugares fechados, há uma onda internacional de proibição, o fumante passivo ganha muito com isso?

R — Existem evidências científicas que o fumo passivo pode afetar o bem estar e a saúde das pessoas, principalmente em ambientes fechados. Os filhos de mãe ou pai tabagistas, que fumam dentro de casa, vão ter uma condição de saúde pior do que filhos de pais não fumantes. Para um bom balanço se deve analisar a condição econômica da família, a escolaridade, alimentação, entre outros aspectos, mas, de forma geral, essas crianças vão estar mais propensas a internações por rinite e doenças do gênero. Antigamente, se podia fumar dentro de balada, aquele lugar era um ambiente inóspito para quem não fosse tabagista, com pouca circulação de ar e fumaça constante. As pessoas fumavam dentro das salas de aula, têm relatos (na Unifesp) de cirurgiões que operavam e tinham um auxiliar responsável por colocar o cigarro na boca do médico, para poder fumar durante as dez horas de cirurgia. Hoje em dia as pessoas também tabagistas, não aceitam a situação de alguém fumando em lugar fechado. Há uma mudança de mentalidade.\

Abaixo, entrevista em vídeo com Renato Filev:

P — E sobre as campanhas antifumo?

R — A questão é: se peca pelo puritanismo e se deixa de lado a realidade. As pessoas morrem porque não sabem o que se consome. Seria bom que ninguém fumasse? Sim. Só que a vivência humana nunca foi livre do uso de substâncias. Como criar mecanismos para trazer informações? Como fazer o consumo de substâncias mais seguro? Estratégias de redução de danos são simples e não incentivam o uso. As pessoas devem ser informadas e são raras as ações publicitárias que têm uma preocupação com a saúde (exemplo). As práticas devem partir da informação. Há o exemplo das maconhas sintéticas, pessoas internadas pelo uso dessas substâncias enquanto estão buscando um “barato” de maconha — que nunca matou ninguém. No caso da cannabis, raramente uma pessoa é hospitalizada pela intoxicação, normalmente a internação parte de alguma questão psicológica e não do efeito da maconha em si. A cannabis sintética tenta contornar a proibição, é um produto sintetizado em laboratórios, tem uma potência muito maior do que os canabinóides naturais e um efeito colateral muito maior. São vendidas como incensos e trazem uma mensagem preventiva de não recomendada para o uso humano, mas as pessoas compram para fumar. Também não concordo com slogans do tipo “beba com moderação”. Às vezes a pessoa quer sair do moderado. No caso do álcool, é mais interessante um “beba com responsabilidade”. Se estiver bem alimentado é possível se manter em pé por mais tempo, a hidratação ameniza a ressaca. A ideia é que se use com responsabilidade, ter o conhecimento do produto, saber estratégias para prevenir questões de saúde.

P — De alguma forma o fumo pode funcionar como redução de danos?

R — O crack, por exemplo, teve uma expansão na cidade de São Paulo na década de 1980, 90, quando usuários de drogas injetáveis estavam expostos à AIDS e ao vírus HIV. As pessoas podiam fazer uso e sentir o efeito da cocaína injetável de maneira mais segura, sem a necessidade de compartilhar seringa. Existem outros perigos no fumo, como a transmissão de hepatite no compartilhamento do cachimbo, feridas na boca pelo calor da fumaça, mas são questões menos graves do que contrair HIV. Para a cannabis ou o tabaco, há quem fume em folha de caderno enquanto deveria procurar uma seda mais fina, um vaporizador, não é bom usar papel com tinta. Evitar e adiar o uso seria o melhor cenário, só que isso não acontece. No caso do tabagista, por conta de doença pulmonar obstrutivo crônica, enfisema pulmonar, câncer de laringe, boca, outros tipos também, como a osteoporose, o risco é a morte. A nicotina também afeta a questão hormonal, principalmente para as mulheres. O vaporizador é menos danosos que a fumaça, mas também tem seus efeitos colaterais.

No vídeo abaixo, o psiquiatra Dartiu Xavier em palestra sobre “Prevenção, Redução de Danos e Tratamento”

Como funciona a vaporização?

A vaporização é uma forma de conseguir desprender os princípios ativos da substância desejada, seja a nicotina, no caso do tabaco, e os canabinóides, no caso da maconha, além de outros óleos essenciais, como jasmim, camomila, os terpenos, flavonoides, sem a combustão. A qualidade do produto é importante, sem uma boa regulação da temperatura pode acabar queimando a matéria e promover a ingestão de substâncias nocivas. Na cannabis, para desprender os cerca dos 70 componentes phytocannabinoids da planta, e os terpenóides (moléculas de odor), o fogo não é necessário. O aquecimento até os 200°C desprende essas moléculas sem que haja combustão. A ponta de um baseado pode chegar a 1.500 ou 2.000°C, é uma bala de canhão pra matar uma formiga.

Quais são os pontos negativos?

Não existem muitos artigos científicos e pesquisas sobre vaporizadores, não há um controle de qualidade específico. Recentemente, Israel produziu um vaporizador com finalidades estritamente medicinais, ainda há o Volcano e o Craft de uma empresa alemã, que receberam um certificado de vaporizadores com finalidades medicinais. Existe muita dúvida. A Anvisa ainda não fez uma regulação de maneira específica, até aconselham mas não há uma resolução. Outros governos, como o do Reino Unido, já fizeram um relatório consistente sobre o benefício de se substituir o fumar pelo vaporizar. Além disso, se deve ficar atento com os sabores de óleos ou extratos utilizados, principalmente em narguiles eletrônicos e vaporizadores usados para o tabaco. Algumas essências podem, no aquecimento, gerar uma substância nociva para o organismo. A molécula chamada diacetil, um odor ou flavour, que dá o cheiro da manteiga e é usado muito em pipoca. Os vapores da manteiga, em quantidade, podem causar doença pulmonar. A conhecida “doença do pipoqueiro”. Se houvesse apenas o propilenoglicol, a base para diluir o óleo, junto com a nicotina, seria melhor.

Como seria uma legalização de drogas interessante para a sociedade?

Como fazer a legalização da maconha? Uma forma regulada como é o tabaco? Ou como o álcool, que é uma putaria? Com campanhas para cooptar jovens consumidores, colocar uma bunda na televisão para vender o produto, associar o consumo dele a momentos de alegria, estereótipos de beleza, ídolos nacionais do esporte? Não gostaria que as drogas ilícitas fossem tratadas de maneira puramente mercadológica. Acho interessante a situação do vinho, existem as mega produtoras e existem produções locais. Se as leis conseguissem ser direcionadas para um consumo local, aquecer a economia local, pode ser benéfico para o próprio capitalismo. Devia ser possível que usuários de alguma substância tivessem mecanismos de produção caseira ou de cultivo. Existe um cálculo que 25% da produção vai para 75% dos usuários e os outros 75% de produção vão para os outros 25% de usuários. Então esse um quarto de produção vai para as massas e esses outros três quartos são direcionados ao usuário, seja o maconheiro, o beberrão, ou o tabagista. Seria interessante construir mecanismos para que um maior volume da produção fosse retirado da esfera do mercado. Isso funcionaria para outras drogas também. Um laboratório de cocaína cooperativado, um laboratório de síntese de drogas sintéticas, como o MDMA, feito por um grupo que não precise ser abarcado pelas companhias farmacêuticas.

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