“Argentina, 1985” e a responsabilização daqueles que cometem crimes contra a humanidade

Erick Rodrigues
Pipoca & Projetor
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4 min readNov 1, 2022
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Um golpe de Estado, em março de 1976, depôs a presidente María Estela Martínez de Perón e instaurou uma ditadura militar na Argentina que perduraria até 1983. Ao longo desse período, mais de 30 mil pessoas foram mortas ou desapareceram pelas mãos do regime. Com a eleição de Raúl Ricardo Alfonsín, em setembro de 1983, a democracia foi restaurada no país e uma das primeiras decisões do novo governo foi levar a julgamento os comandantes das Forças Armadas que participaram do golpe.

“Argentina, 1985”, filme do diretor Santiago Mitre, abrange todo o processo de julgamento e condenação dos militares que orquestraram e comandaram a ditadura argentina ao longo de sete anos. Depois do burburinho causado pela decisão de Alfonsín e da falta de ação do Tribunal Militar, o Ministério Público assume a função de julgar os comandantes e o trabalho de acusação vai parar nas mãos do promotor Julio Strassera (Ricardo Darín), que hesita diante da responsabilidade, mas leva adiante a tarefa.

Strassera não demora a perceber o quão desafiador e perigoso é o trabalho de colocar os comandantes das Forças Armadas do país no banco dos réus. Além da hostilidade de uma parte da população favorável ao regime, o promotor enfrenta, também, ameaças dos militares e dos setores ligados à ditadura, sem contar o receio de ser usado como instrumento para promover uma encenação e acabar perpetuando a impunidade.

Esse cenário hostil contribui para que o promotor tenha dificuldade de formar a equipe que iria ajudá-lo a levantar testemunhas e provas que fossem capazes de condenar os militares. Diante da negativa dos profissionais mais experientes, Strassera se une a Luis Moreno OCampo (Peter Lanzani), um advogado em começo de carreira, e a um grupo de jovens que reconhece a importância da função.

A inexperiente, porém dedicada, equipe recebe um prazo quase que impossível para reunir todo o material antes do julgamento. Em cerca de quatro meses, eles precisam estar preparados para apresentar no tribunal as atrocidades cometidas pelos militares ao longo da ditadura, contextualizando a responsabilidade de cada um dos comandantes nas ações criminosas que resultaram em tantos mortos e desaparecidos.

A narrativa escolhida para “Argentina, 1985” é muito tradicional, o que, nesse caso, não é um problema. Essa opção não surge de uma falta de inspiração ou da busca por uma fórmula confortável, mas sim da necessidade de deixar que a história dominasse todas as atenções, que a força dela predominasse. O objetivo acaba alcançado e não apenas por essa escolha correta, mas também pelo roteiro consistente e que procura um naturalismo na construção das falas, fugindo do tom declaratório.

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O filme também acerta na retratação de Strassera e evita a construção de uma imagem de herói destemido. O promotor, que questiona e é assombrado pela falta de ação contra a ditadura durante o regime, é hesitante e sente medo quando a tarefa é designada a ele, percebendo os perigos que ela representaria para a esposa e os filhos, além das consequências que tudo aquilo traria em caso de fracasso. Strassera sente o peso da responsabilidade e essa humanização envolve o espectador na jornada do personagem.

Essa atribuição de humanidade não fica restrita ao promotor. OCampo, mesmo plenamente convicto, também sente medo e, de alguma forma, se deixa afetar pelos conflitos que o trabalho traz para dentro da família dele, formada por militares históricos e simpáticos ao regime. Essa característica aparece, ainda, nos integrantes da equipe formada por Strassera e na família do promotor.

O grande mérito de “Argentina, 1985” é mostrar claramente ao espectador os efeitos da ditadura sobre o individual e o coletivo, além de exaltar a importância da responsabilização dos agentes diretamente envolvidos em todas as torturas, mortes e no cerceamento de liberdade que caracterizaram o regime.

Uma associação com a realidade brasileira é inevitável e o filme faz pensar nas consequências da impunidade, concretizada pela Lei da Anistia, para o cenário político e social do Brasil. Convivemos até hoje com os fantasmas desse período pelo fato de não termos responsabilizado devidamente aqueles que cometeram esses crimes contra a nação e a humanidade. Isso explica porque ainda há tantas “viúvas” da ditadura por aí lamentando e pedindo a volta do regime.

Escolhido para representar o cinema argentino no Oscar do ano que vem, “Argentina, 1985” é um filme muito intenso e necessário. O longa destaca que o passado não deve ser varrido para debaixo do tapete. É preciso encará-lo, aprender com os erros e aplicar a justiça para responsabilizar aqueles que deliberadamente cometem crimes contra a humanidade. Se isso não é feito, uma fresta sempre fica aberta para que outros iguais tentem passar. Refletir sobre isso e cobrar providências são, inclusive, atitudes que não devemos abandonar, pois continuam sendo fundamentais para o futuro que temos pela frente.

ARGENTINA, 1985

ONDE: Amazon Prime Video

COTAÇÃO: ★★★★ (ótimo)

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