“Belfast” organiza memórias de infância do diretor em narrativa genérica

Erick Rodrigues
Pipoca & Projetor
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3 min readMar 30, 2022
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“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. A frase, do escritor russo Liev Tolstói, ajuda a entender a opção do diretor e roteirista Kenneth Branagh por revisitar memórias que carrega da infância e organizá-las em uma narrativa cinematográfica. Por trás de situações que, a princípio, parecem específicas, podem haver sentimentos que qualquer pessoa, não importa o lugar do mundo, é capaz de compreender. É possível perceber essa característica em “Belfast”, ainda que a proposta fique prejudicada pela construção genérica da história.

Ambientando na Irlanda do Norte, no final da década de 60, o filme acompanha Buddy (Jude Hill), um garoto de nove anos que vive no centro de um conflito histórico do país. As ruas da capital, Belfast, se transformam em verdadeiras praças de guerra por conta da animosidade e da violência provocadas por um grupo de protestantes que deseja expulsar católicos da região.

Esse conflito, de características políticas e sociais, passa a afetar diretamente a família de Buddy. Além de tornar as ruas mais perigosas, o pai do garoto (Jamie Dornan) é constantemente coagido a participar das ações contra os católicos, mesmo não tendo nenhuma restrição à permanência deles na região. Por trabalhar em Londres e viajar com frequência, a esposa dele (Caitríona Balfe) e Buddy passam a ser alvos das ameaças do grupo.

A gravidade da situação faz com que a família cogite ir embora de Belfast, como fizeram centenas de pessoas na vida real, inclusive o próprio diretor, que saiu da cidade com a mesma idade que Buddy. Mesmo diante desse cenário, o protagonista do longa encontra espaço para viver a infância e aproveitar a convivência com os avós (Ciarán Hinds e Judy Dench).

“Belfast” é a organização de algumas das memórias mais marcantes de Branagh do período que antecedeu a partida dele da cidade. Ainda que fale sobre um episódio muito específico, o longa demonstra a intenção de se apegar aos sentimentos que surgem dessa experiência particular. O espectador pode se conectar, por exemplo, com o afeto que envolve a família de Buddy e com o olhar lúdico do garoto sobre a vida, além de perceber e relacionar os conflitos com discursos de ódio e intolerância que vemos hoje.

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Apesar desse valor, a organização das memórias de Branagh em uma narrativa é feita de forma genérica, sem um aprofundamento do contexto e do olhar dos personagens sobre a situação. Isso não está relacionado ao fato de a história ser contada sob o ponto de vista de uma criança, uma vez que é possível pontuar complexidades mesmo quando a ingenuidade infantil conduz a trama, como é o caso, por exemplo, de “Projeto Flórida”, filme do cineasta Sean Baker.

Mesmo que a visão predominante seja a do garoto, que representa um alter ego de Branagh, “Belfast” se prejudica, também, pela escolha do roteiro por diluir a potência do drama em muitos personagens e nas maneiras como eles reagem a tudo. É preciso dizer, ainda, que a estética e as referências usadas pelo cineasta para compor as imagens acabam deixando no espectador a sensação de que tudo aquilo já foi visto.

Além de Jude Hill, os destaques do elenco são Caitríona Balfe e Ciarán Hinds. Judy Dench, indicada ao Oscar pelo papel, deixa a impressão de que não precisou se esforçar muito para compor a personagem e que a presença dela na categoria do prêmio foi um exagero. Jamie Dornan também parece fazer o básico.

Vencedor do Oscar de roteiro original, uma das escolhas questionáveis da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood neste ano, “Belfast” tem a clara pretensão de ser universal a partir de memórias muito particulares. Mas, a organização genérica dessas lembranças e a superficialidade dos personagens, causada pela diluição da potência dramática, limita a conexão do espectador nessa revisita que o cineasta faz à própria história.

BELFAST

ONDE: nos cinemas

COTAÇÃO: ★★ (regular)

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