“Blonde” limita ao sofrimento ícone do cinema que enfrentou reduções

Erick Rodrigues
Pipoca & Projetor
Published in
4 min readOct 11, 2022
Divulgação/Netflix

A atriz Marilyn Monroe é um dos maiores, se não o maior, ícone do cinema e da cultura pop de todos os tempos. A figura dela está presente no imaginário popular, seja por ilustrar uma pintura de Andy Warhol ou pelas inúmeras cenas marcantes dos filmes que participou, como a sequência em que aparece cantando “Diamonds Are a Girl´s Best Friend”, em “Os Homens Preferem as Loiras”; ou o momento em que o vestido da atriz fica esvoaçando sob a grade do metrô em “O Pecado Mora ao Lado”.

A construção dessa imagem, que ficou cristalizada nas nossas mentes, fez parte, no entanto, dos problemas e inquietações de Marilyn. Na mesma medida em que se tornou célebre, a atriz foi objetificada pela indústria do cinema e vítima dos comportamentos mais sórdidos provocados pelo machismo que geria Hollywood nas décadas de 40 e 50, quando a estrela esteve no auge.

A forma como Hollywood tratou a estrela ocupa boa parte de “Blonde”, filme escrito e dirigido por Andrew Dominik. Baseado no romance de Joyce Carol Oates, o longa da Netflix se orienta pelo sofrimento e, mesmo quando foge do lado artístico, também aborda a vida pessoal de Marilyn sempre pelo viés da tristeza.

O filme começa quando Marilyn, ou melhor, Norma Jeane (Lily Fisher) vive com a mãe Gladys (Julianne Nicholson), que sofre de transtornos mentais. Como não conhece o pai, em determinado momento, a garota acaba em um orfanato. Um salto temporal leva o espectador, em seguida, para o início da carreira de Marilyn (Ana de Armas), então contratada de um estúdio para fazer fotos e ilustrar materiais de divulgação.

Tentando uma oportunidade como atriz e, depois, já como estrela, Marilyn é subestimada e tratada pelos homens à volta como um pedaço de carne, uma mulher desprovida de intelecto e que tem a beleza como único atributo. Isso faz com que ela seja submetida a abusos de todo tipo e ostentada como um acessório de luxo pelos machistas que controlavam aqueles ambientes.

“Blonde” também passeia pelos relacionamentos da atriz, incluindo os casamentos com o jogador de beisebol Joe DiMaggio (Bobby Cannavale) e com o dramaturgo Arthur Miller (Adrien Brody), marcados pelos rumos da carreira de Marilyn e dores que a estrela carregou ao longo da vida.

Para começo de conversa, considerar “Blonde” uma biografia é um erro, uma vez que o romance usado como ponto de partida toma muitas liberdades e imagina os sentimentos de Marilyn diante das passagens marcantes da vida dela. É ficção, por exemplo, o relacionamento triplo entre a atriz, Charles Chaplin Jr. (Xavier Samuel) e Eddy Robinson Jr. (Evan Williams), assim como o grau de intimidade da estrela com o presidente Kennedy (Caspar Phillipson).

Divulgação/Netflix

Em um primeiro momento, a produção lembra “Spencer”, do diretor Pablo Larraín, mas essa semelhança é superficial e acaba se dissipando com o caminhar do filme. Isso porque, ao contrário do longa sobre a princesa Diana, “Blonde” não se fixa em um momento específico da vida da personagem central, mas em toda a existência dela. Na hora de escolher quais passagens retratar, Dominik se guia pelo sofrimento e transforma a jornada da atriz em uma espécie de calvário.

Essa opção acaba tornando o filme longo demais e cansativo. Também ao contrário de “Spencer”, “Blonde” tem um roteiro que não consegue revelar ao espectador aspectos mais profundos da personalidade da atriz. Há muito de Marilyn, mas quase nada de Norma Jeane, aquela que sustenta e influencia a vida da estrela de Hollywood.

Limitar Marilyn ao sofrimento acaba sendo um erro grave do filme, especialmente se levarmos em conta que a atriz estava longe de ser apenas um saco de pancadas. Ela teve, é verdade, uma vida infeliz, mas enfrentou aqueles que tentaram reduzi-la a rótulos superficiais. A estrela reagiu ao desejo da indústria de vendê-la como a loira burra e sensual, rompeu contratos, exigiu escolher os trabalhos que faria e buscou estudar interpretação.

Marilyn também não foi, apenas, uma mulher triste e complexada. Além de contar com um carisma absurdo, demonstrava determinação e não era nada burra, como gostavam de rotulá-la. Era uma leitora entusiasmada, especialmente do dramaturgo russo Anton Tchekhov, e tinha uma sensibilidade aguçada.

Mesmo com esse problema do roteiro, “Blonde” tem a seu favor a interpretação primorosa e praticamente sobrenatural de Ana de Armas, que consegue hipnotizar o espectador quase que com a mesma intensidade de Marilyn. Gestos, olhares e a forma de falar revelam um trabalho de composição minucioso que merece todo o reconhecimento.

A direção de Dominik é outro ponto positivo do filme. Criativo e movido por referências, o diretor mistura atmosferas de devaneio e terror e cria belas cenas, tanto nos momentos de tensão psicológica quanto nas recriações da Hollywood daquele período. É preciso dizer que, apesar de tudo isso, há algumas sequências de gosto duvidoso que ilustram passagens sobre abortos que teriam sido feitos pela atriz.

Ainda que não carregue as obrigações de uma biografia, “Blonde” acaba limitando ao sofrimento Marilyn Monroe, uma estrela carismática e reativa. Mesmo infeliz, a atriz se levantou contra aqueles que desejavam limitá-la e, certamente, não se furtaria de fazer isso com mais essa tentativa de redução.

BLONDE

ONDE: Netflix

COTAÇÃO: ★★ (regular)

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