Chloé Zhao: os primeiros filmes da vencedora do Oscar e promessa da Marvel

Erick Rodrigues
Pipoca & Projetor
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7 min readMay 25, 2021
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A diretora chinesa Chloé Zhao conseguiu vitórias históricas com o filme “Nomadland”, o trabalho mais recente da cineasta. No Oscar 2021, saiu da cerimônia com três estatuetas, incluindo a de melhor filme. Premiada pela direção do longa, ela se tornou a segunda mulher a vencer na categoria em 93 anos, a primeira de origem asiática. Com a produção, também ganhou outros prêmios, incluindo o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Há dez anos uma diretora não vencia a competição.

Não é difícil entender as qualidades de “Nomadland” que se reverterem em prêmios, muitas delas, inclusive, marcas registradas da diretora. Baseado no livro homônimo da jornalista Jessica Bruder, o filme é um mergulho profundo na realidade dos Estados Unidos pós-crise econômica de 2008 e em um estilo de vida que passou a ser a única opção para muitos. Fern (Frances McDormand), a protagonista, é uma das únicas personagens fictícias do longa. Quase todos que cruzam o caminho dela não são atores e, conduzidos por Chloé Zhao, levam às telas versões das próprias vidas nômades que levam pelas estradas norte-americanas.

Não foi a primeira vez que a diretora tentou borrar a linha imaginária que delimita ficção e realidade. Essa é uma característica presente nos dois trabalhos que antecedem “Nomadland”. Depois de filmar alguns curtas-metragens, Chloé Zhao estreou como diretora de longas em 2015, com “Songs My Brothers Taught Me”. Ela, no entanto, passou a chamar mais atenção do público e da indústria do cinema dois anos depois, quando lançou “Domando o Destino”.

Além de embaralhar o real e o ficcional, buscando sempre um tom naturalista para as histórias, a cineasta também se destaca pelos retratos que faz da vida no interior dos Estados Unidos, levando para o centro das narrativas personagens muito ricos e que raramente encontram espaço em Hollywood. Com isso, Chloé Zhao demonstra conhecer e se interessar pela realidade do país onde escolheu viver, depois de nascer em Pequim, morar na capital chinesa até os 14 anos e de passar um período na Inglaterra.

A relação da cineasta com o país onde nasceu é tumultuada e ganhou desdobramentos recentemente. O sucesso de “Nomadland” foi alvo de censura na China, com menções à vitória da diretora sendo apagadas das redes sociais. A imprensa local também não repercutiu os feitos de Chloé Zhao. As reações foram provocadas por uma entrevista concedida por ela à revista “Filmmaker”, em 2013, quando chamou a terra natal de “um lugar onde há mentiras por toda parte”.

Nos Estados Unidos, estudou na Universidade de Nova York, onde conheceu o diretor de fotografia Joshua James Richards, que se transformou em um parceiro de trabalho e de vida. A contribuição dele é muito importante para o resultado final dos três filmes que a cineasta lançou até aqui. Abraçando a proposta naturalista da parceira, Richards encontra as luzes e cores ideais para dar um clima íntimo e contemplativo às narrativas.

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Songs My Brothers Taught Me

É interessante observar o caminho coerente e de muita personalidade trilhado pela cineasta através da filmografia dela. A sensibilidade e o olhar para personagens pouco comuns na indústria já ficavam evidentes no primeiro filme, “Songs My Brothers Taught Me”.

No longa, o espectador acompanha o dia a dia de dois irmãos em uma reserva indígena, localizada no estado norte-americano da Dakota do Sul. Johnny (John Reddy) começa a fazer a transição da adolescência para a fase adulta e planeja deixar o local para viver em Los Angeles, ao lado da namorada.

Com o irmão mais velho na cadeia e uma mãe emocionalmente ausente, Johnny se transforma no porto seguro da irmã Jashaun (Jashaun St. John). A morte do pai, que não participou da criação deles, marca um ponto de virada na relação dos dois.

Lidando com a intensidade dessa fase de amadurecimento, Johnny passa a concentrar esforços em conseguir dinheiro para deixar a reserva. Ciente da decisão do irmão, Jashaun também embarca em uma jornada de crescimento e tenta estabelecer conexões que, de alguma forma, possam suprir a ausência do irmão. A ligação entre eles é tão forte que a garota parece, inclusive, adotar certa distância de Johnny para evitar sofrimento.

A vida na reserva indígena é um pano de fundo importante para “Songs My Brothers Taught Me”. A relação entre os irmãos está inserida em um cenário complexo, que parece perdido no tempo e no espaço, apesar dos elementos que permitem caracterizar a trama como contemporânea. A população que mora praticamente esquecida ali convive com a pobreza e outros problemas sociais, como a violência e o alcoolismo, que afetam muitas famílias da região.

Foi em “Songs My Brothers Taught Me” que Chloé Zhao começou a executar a ideia de incluir a realidade em uma narrativa ficcional. O elenco é composto por não-atores que vivem na reserva e a rotina deles alimenta diretamente a história, que transforma todo o rico material captado em reflexão e poesia. É impressionante o resultado que a diretora consegue extrair dos escolhidos para protagonizar a trama, especialmente se levarmos em conta a falta de experiência com a arte de interpretar. Por outro lado, sobra a eles vivência e propriedade para falar daquela realidade.

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Domando o Destino

Chloé Zhao continuou aprimorando esse trabalho com não-atores no filme seguinte, “Domando o Destino”, lançado em 2017. A diretora sai da reserva indígena para retratar o universo dos caubóis norte-americanos, mas passa longe dos estereótipos que rondam essas figuras. O foco aqui é a fragilidade de um deles, Brady Blackburn (Brady Jandreau), um personagens criado a partir de inspirações reais.

Blackburn, reconhecido como um nome em ascensão no mundo dos rodeios, sofre um acidente e descobre que nunca mais poderá participar de montarias ou competições. Muito relutante, desafia as ordens médicas e chega a arriscar a própria saúde para subir novamente em um cavalo. O protagonista sente que a vida só faz sentido se aquele sonho puder ser realizado plenamente.

Tentando negar a mudança de rota que a vida impôs, o caubói se coloca em um estado de inércia e expectativa. Reluta em buscar novas ocupações alimentando a ilusão de que voltaria aos rodeios. Ignora, inclusive, os apelos da família, preocupada com o ímpeto do protagonista em sacrificar a própria vida por aquele sonho. Aliás, qual é o ponto em que um sonho se transforma em um mero capricho, uma simples teimosia?

A resposta a essa pergunta aparece quando Blackburn é obrigado a lidar com o ferimento do cavalo que comprou de um conhecido. Em uma das sequências mais bonitas do filme, o espectador é levado a uma reflexão sobre a capacidade do ser humano de sobreviver às adversidades, se adaptar, buscar novos caminhos, desafiar sentenças que parecem definitivas.

Em “Domando o Destino”, tradução pouco criativa para o título original “The Rider”, Chloé Zhao aprimora o estilo que adotou no filme anterior. Filma quadros bem abertos, que destacam o isolamento dos personagens, mas também gosta de detalhes, olhares. Sabe construir silêncios que dizem muito. Faz da parceria com o diretor de fotografia oportunidades para criar pinturas.

Analisando a filmografia de Chloé Zhao, é possível enxergar com nitidez a trajetória da diretora até a consagração em “Nomadland”. Ainda é uma escada com poucos degraus, mas muito sólida. “Songs My Brothers Taught Me”, “Domando o Destino” e o mais recente vencedor do Oscar de melhor filme trazem belos visuais e são obras relevantes, que têm algo a dizer. Fazem mais sentido ainda quando vistas perto uma da outra, na ordem que parecer melhor, experiência que destaca a coerência da diretora.

Chloé Zhao nas filmagens de “Songs My Brother Taught Me”, “Domando o Destino” e “Nomadland” — Divulgação

Aposta da Marvel

Com um trabalho muito autoral até aqui, Chloé Zhao chamou a atenção da Marvel e foi escolhida para dirigir “Eternos”, cujo lançamento está previsto para novembro. O longa é considerado importante para a fase quatro do universo cinematográfico criado pelo estúdio, que encerrou ciclos em “Vingadores: Ultimato” e agora vive uma espécie de recomeço ou reorganização.

As primeiras imagens de “Eternos” foram divulgadas nesta segunda-feira (24) e, pelo trailer, já é possível perceber características da diretora nas cenas. A aposta da Marvel em Chloé Zhao não deixa de ser curiosa, já que, de uma forma geral, o estúdio busca certa uniformidade para a construção desse universo de heróis.

É bem verdade que outros diretores com personalidades evidentes já estiveram à frente de filmes da Marvel e conseguiram imprimir algumas marcas, como Taika Waititi e James Gunn, mas não deixa de ser instigante a escolha pela cineasta, que sempre primou por narrativas naturalistas e contemplativas. Chloé Zhao chega à Marvel muito premiada, mas como será a recepção do fãs ardorosos do estúdio? Saberemos em novembro.

SONGS MY BROTHER TAUGHT ME

ONDE: Mubi

COTAÇÃO: ★★★ (bom)

DOMANDO O DESTINO

ONDE: Telecine Play

COTAÇÃO: ★★★★ (ótimo)

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