“Cruella” foge do óbvio com história de origem sem justificativas e de personalidade

Erick Rodrigues
Pipoca & Projetor
Published in
4 min readMay 31, 2021
Divulgação/Disney

Histórias de origem, especialmente de personagens nada virtuosos, tendem a buscar justificativas para atitudes e personalidades condenáveis. Costuma ser um caminho tentador, uma forma de fornecer aos espectadores uma desculpa para o fato de sentirem empatia ou fascínio por figuras detestáveis. É muito bom terminar de ver “Cruella”, a mais recente reinvenção dos clássicos da Disney, e perceber que o filme optou pelo menos óbvio e resolveu apresentar ao público um universo mais rico e cheio de personalidade.

Antes de se transformar na vilã que roubava cachorros para fazer casacos de pele, Cruella era Estella (Tipper Seifert-Cleveland), uma menina de personalidade rebelde e agressiva. Por ter nascido com um cabelo preto e branco, sempre foi alvo de comentários maldosos, mas nunca os deixou sem resposta. Catherine (Emily Beecham), a mãe, tentava domar a fúria da filha sem sucesso.

Órfã depois de uma tragédia, Estella vai morar nas ruas de Londres, onde conhece Horário (Paul Walter Hauser) e Gaspar (Joel Fry), que vivem de furtos e acolhem a garota como parte do bando. Já adulta, Estella (Emma Stone) consegue uma oportunidade para trabalhar na loja mais famosa da cidade e chama atenção da Baronesa (Emma Thompson), uma temida estilista de alta costura.

Percebendo o potencial da funcionária para criar modelos, a Baronesa passa a encarar Estella como uma protegida, mesmo sem abrir mão do jeito esnobe e dos comentários impiedosos. Uma descoberta coloca as duas personagens em uma guerra e faz a protagonista assumir a personalidade de Cruella, um nome promissor que leva anarquia ao mundo da moda e ameaça a influência da concorrente.

Não é do interesse de “Cruella” oferecer ao espectador justificativas que possam desculpar as escolhas que transformaram Estella em uma icônica vilã. O roteiro traça um caminho mais difícil e, ainda que mostre as agruras da vida da personagem, não tenta colocar Cruella De Vil como uma vítima, ao contrário do que acontece, por exemplo, em “Malévola”. Quando criança, a protagonista tinha a perversidade abafada pela educação e o amor da mãe, que tentava manter os instintos cruéis da garota sob controle. Sem ninguém para contê-la, Estella vira Cruella e deixa sair o mal, potencializado por ambição, sofrimento e um desejo de vingança.

Divulgação/Disney

O que sempre faltou aos filmes do projeto de reinvenção dos clássicos Disney, tem aos montes em “Cruella”: personalidade. Dirigido por Craig Gillespie, o mesmo de “Eu, Tonya”, e roteirizado por Tony McNamara, responsável por escrever o ótimo “A Favorita” e a série “The Great”, o filme traz as melhores qualidades desses profissionais. É uma história ousada, inclusive para os padrões do estúdio do Mickey; que coloca mulheres fortes e complexas no centro das ações; é luxuoso nos figurinos e na direção de arte; e que encontra na Londres dos anos 70, da cultura punk e do new wave, a ambientação ideal.

Diante de “Cruella”, parece absurdo que a Disney tenha ficado tão presa à tradição dos originais até aqui. É evidente que esse apego à fórmula trouxe lucros para o estúdio, mas, tirando uma ou outra exceção, nunca uma reinvenção de clássico teve uma personalidade tão bem marcada a ponto de isso favorecer criativamente a história.

A trilha sonora é parte fundamental da construção de personalidade do filme. As músicas de Connie Francis, Nancy Sinatra, The Doors, Nina Simone, The Clash e Blondie, para citar apenas algumas, foram muito bem escolhidas e ajudam a contar a história. Ainda que alguns possam considerar a escolha das canções como manjada, é inegável que elas funcionam.

Nada fácil era a tarefa de Emma Stone em viver uma personagem tão identificada com Glenn Close, atriz que interpretou a vilã no live-action de “101 Dálmatas”, mas a intérprete tirou de letra. Amparada por roteiro e direção consistentes, ela se joga na proposta ousada e parece se divertir em cena. Além dos bons coadjuvantes, é preciso destacar o desempenho de Emma Thompson, que compõe a rival ideal para Cruella. Os diálogos entre as duas personagens, bem escritos e encenados, sempre ganham um tom delicioso de duelo.

“Cruella” não é perfeito. Algumas características de personagens e conflitos soam como clichês, mas é muito satisfatório perceber que até nisso o filme funciona bem. Ousado e com muita personalidade, características que faziam muita falta às reinvenções das histórias Disney, o longa foge do óbvio na construção da protagonista, que não tem a origem ou as atitudes justificadas por sofrimentos ou injustiças. Cruella De Vil sempre existiu, ainda que antes fosse conhecida como Estella. Bom para o público, que tem acesso a um universo mais rico e menos tradicional do que aqueles vistos em roteiros requentados.

CRUELLA

ONDE: nos cinemas e no Disney+ (requer pagamento adicional)

COTAÇÃO: ★★★★ (ótimo)

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