Domingos Oliveira e o fascínio contagiante pelas relações humanas

Erick Rodrigues
Pipoca & Projetor
Published in
4 min readMar 25, 2019

Sempre fui um admirador do cinema brasileiro, de uma sétima arte que transmita nossas cores, costumes, sentimentos. Pode parecer contraditório, mas é do olhar para um contexto aparentemente particular que se descobrem os pontos em comum, a universalidade, a humanidade. Foi em uma época de curiosidade pelo nosso cinema que cheguei a “Todas as Mulheres do Mundo”, até hoje considerado um clássico da filmografia nacional e a grande obra do cineasta Domingos Oliveira, que morreu no fim de semana, aos 82 anos. Quem vê o filme pode pensar que, à primeira vista, trata-se apenas de um retrato do Rio de Janeiro boêmio da década de 60, mas, na verdade, o diretor usou essa ambientação para começar a discutir o tema que seria recorrente ao longo da carreira dele: as relações entre as pessoas.

“Todas as Mulheres do Mundo” foi criado a partir dos pensamentos de Oliveira sobre uma única mulher. O amor do cineasta pela atriz Leila Diniz, com quem foi casado anos antes do longa ser lançado, serviu para alimentar a história de Paulo (Paulo José), jornalista que se apaixona por uma mulher e faz de tudo para conquistá-la. O maior desafio dele, no entanto, é deixar de lado o estilo de vida boêmio, marcado por festas e muitas amantes, para mergulhar de cabeça naquele relacionamento.

Para o posto de protagonista feminina, o diretor precisava de uma atriz que fosse capaz de hipnotizar o espectador. Só assim seria possível transmitir a intensidade dos sentimentos vividos por Paulo. Domingos Oliveira chamou, então, Leila Diniz, justamente a musa inspiradora de tudo aquilo. O resultado disso é exatamente o pretendido: a câmera do cineasta parece estar fascinada pela atriz, que, com talento e beleza, contagia o espectador também.

Com muito humor, “Todas as Mulheres do Mundo” fala sobre a relação de um casal em particular, que passa por diversas etapas. O esforço da conquista é seguido pelo entusiasmo dos primeiros momentos juntos, que, por sua vez, é um período sucedido pelo desgaste da convivência. Depois, surgem a insegurança, o ciúme, o erro e o perdão. No fim, o longa iniciado a partir de experiências pessoais, serviu para falar de muitas pessoas, de sentimentos e experiências que podem surgir no mundo inteiro.

Mais do que falar sobre a nobreza e a intensidade dos sentimentos, Oliveira usa o filme para colocar uma lente de aumento sobre as fraquezas do ser humano. Vivendo uma relação arrebatadora com Maria Alice (Leila Diniz), Paulo, na verdade, sente medo de ser magoado, de não conseguir lidar com as responsabilidade de um casamento, de uma família. Por conta disso, a tentação de seguir a vida de mulherengo boêmio, em certo momento, fala mais alto. E, tal qual centenas de seres humanos, o jornalista só percebe e valoriza tudo aquilo quando perde.

Escolhendo fazer um filme contemporâneo para a época, o diretor optava por ambientar “Todas as Mulheres do Mundo” em um Rio de Janeiro cantado em muitas músicas e descrito em obras literárias. A boêmia da noite, a dinâmica de uma tarde na praia, o ritmo particular de uma cidade que é feita de concreto e areia, bossa nova e samba, terno e bermuda, amor e traição. O retrato, visto hoje, é capaz de causar saudosismo até nos espectadores que sequer viveram naquele tempo.

Domingos Oliveira criou protagonistas masculinos ao longo da carreira, mas vai ser lembrado como um diretor inspirado pela alma feminina. Deu vida ou retratou mulheres fortes, sedutoras, inteligentes, complexas, perturbadas, duras, reais. Maria Alice, Glorinha, Júlia, Eugênia, Isabel, Diana, Dona Mocinha. Todas elas vivendo separações, amizades, amores, carreiras, maternidades, casamentos, solidões, angústias, saudades. Como muitos artistas, teve musas. Além de Leila Diniz, mostrou o companheirismo e a inspiração que tinha pela também atriz Priscilla Rozenbaum, com quem ficou casado até o fim da vida.

A importância das mulheres, no entanto, sempre esteve inserida em um contexto maior. Oliveira passou a vida fazendo filmes sobre os sentimentos humanos, as dificuldades de se relacionar com os outros, a cumplicidade entre pais e filhos, a importância das memórias, a força do amor. Os títulos das obras dele eram, muitas vezes, autoexplicativos: “Amores”, “Separações”, “Juventude”, “Infância”, “Carreiras”, “A Culpa”, “Feminices”.

O cineasta nem sempre teve recursos para produções caprichadas, cenários sofisticados e atores festejados. Nessas oportunidades, ele mostrava que nada disso era necessário, porque o fundamental sempre estava ali: a humanidade.

Domingos Oliveira começou no cinema com um filme aparentemente muito carioca, que retratava, em um primeiro momento, apenas uma história de amor que ele tinha vivido. Tudo isso, na verdade, era só a matéria-prima para algo maior. Falando de ideias, sentimentos e angústias recorrentes a ele, o cineasta acabou demonstrando um fascínio contagiante pelo ser humano e, como poucos, soube valorizar todas as mulheres do mundo.

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