“Drive My Car”: cada cura a seu tempo

Erick Rodrigues
Pipoca & Projetor
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4 min readMar 26, 2022
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É impossível encontrar quem nunca tenha ouvido frases como “o tempo é o senhor da razão”, “o tempo cura tudo”, “ cada coisa a seu tempo” ou “é preciso dar tempo ao tempo”. A sabedoria popular usa esses e, muito provavelmente, outros ditos para defender que os nossos problemas e aflições sentimentais passam ou se transformam com o caminhar dos dias. Alguns questionam se há períodos definidos para cada sofrimento, mas a verdade é que não há medição temporal para isso. “Drive My Car”, filme do diretor japonês Ryûsuke Hamagushi, quer mostrar exatamente que as dores são jornadas particulares, por mais que elas se esbarrem, e que a cura chega quando é hora.

No longa, Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) e Oto (Reika Kirishima) são casados há anos e vivem numa rotina produtiva de trabalho. Ele é um ator e diretor de teatro, e ela atua como roteirista de televisão. O casal constrói um hábito íntimo e curioso: durante ou depois do sexo, Oto deixa a criatividade aflorar, desenvolve histórias e as conta ao parceiro. No dia seguinte, a esposa nunca lembra do que criou e recorre à memória impecável do marido.

Um dia, o adiamento de uma viagem de trabalho faz Kafuku voltar para casa antes do esperado e ele flagra a esposa transando com Kôji Takatsuki (Masaki Okada), um jovem ator que estrela uma das obras assinadas por Oto. O marido escolhe não falar sobre o que viu e tenta levar a vida normalmente até o dia que a parceira pede para ter uma conversa com ele.

Antes que o casal tenha essa oportunidade de diálogo, Oto morre. Kafuku, então, se fecha para processar o luto. A história tem um salto temporal e, dois anos depois, ele é convidado para dirigir um espetáculo em um festival de teatro. Por determinação dos organizadores, Kafuku passa a ser acompanhado por Misaki (Tôko Miura), uma motorista silenciosa e também afetada por traumas profundos.

Para desenvolver “Drive My Car”, cujo roteiro é uma adaptação de um conto de Haruki Murakami, Hamagushi não apela em nenhum momento para a pressa. O diretor entende que, para falar sobre jornadas dolorosas e que precisam de tempo para cura, é necessário mostrar uma evolução meticulosa, quase imperceptível em alguns momentos. Por falar em meticulosidade, Kafuku e Misaki carregam essa característica e se pegam a ela para lidar com as questões que os afligem. Eles concentram as energias em detalhes, hábitos e habilidades para, de alguma forma, conseguirem suportar a realidade.

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Tanto o roteiro quanto a interpretação dos atores deixam evidentes as angústias, as situações mal resolvidas e tudo aquilo que os personagens não conseguem dizer. Mesmo nas sequências silenciosas, a atenção do espectador fica sempre monopolizada pelos “ruídos” do universo de pensamentos revirados que surge da dor de cada um deles.

Não é mero acaso que “Drive My Car” tenha uma relação direta com “Tio Vânia”, texto teatral do dramaturgo russo Anton Tchekhov que é montado no filme e cujas falas são repetidas à exaustão por Kafuku, em um ritual que mantém as memórias dele ligadas à esposa. As obras têm em comum, além do choque causado pela ruptura de uma rotina estabelecida, a dura necessidade de se continuar a viver.

A história, conduzida por Hamagushi sem açodamento, tem quase três horas e não dá para ignorar que um poder mínimo de síntese que diminuísse essa duração em meia hora seria bem-vindo. É injusto dizer, no entanto, que “Drive My Car” é um filme cansativo, uma vez que o diretor consegue preencher cada segundo e manter o espectador interessado pela trajetória dos personagens.

Com quatro indicações ao Oscar 2022, “Drive My Car” é um filme feito de introspecção e paciência. Não há período certo que possa ser cronometrado no relógio ou contado nas folhas de um calendário para que a dor ceda lugar a outros sentimentos. Perdas, assuntos malparados e questões não verbalizadas podem deixar a vida em suspenso e não há regras e nem duração estabelecida para essas aflições. As jornadas são íntimas e solitárias, mesmo quando requerem ajuda ou encontram identificação. Cada um se cura a seu tempo.

DRIVE MY CAR

ONDE: nos cinemas e, a partir de 1 de abril, na MUBI

COTAÇÃO: ★★★★★ (excelente)

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