“Marighella”: resistir é preciso

Erick Rodrigues
Pipoca & Projetor
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5 min readNov 17, 2021
Divulgação

O guerrilheiro Carlos Marighlella, ferrenho opositor da ditadura militar que se instaurou no Brasil por mais de 20 anos, não só se imbuiu da missão de combater a violência do regime como também lutou para “furar” a barreira que impedia que a população em geral tivesse acesso a informações reais sobre o que acontecia no país. A batalha que o revolucionário tomou para si acaba dialogando com a cruzada que o diretor Wagner Moura lidou para conseguir estrear o filme sobre esse personagem no Brasil de 2021.

Em “Marighella”, longa inspirado na biografia escrita por Mário Magalhães, o recorte temporal escolhido é o período entre 1964 e 1969. Poeta, deputado federal e ativista, Carlos Marighella (Seu Jorge) entra na luta armada contra o regime militar por acreditar que esse é o único caminho para combater o autoritarismo do governo, aparelhado e fortemente armado. Colocado na clandestinidade, o guerrilheiro é perseguido pelo delegado Lúcio (Bruno Gagliasso), personagem que concentra diversas referências e personalidades que perseguiam brasileiros que lutavam contra a ditadura no período.

A escolha pela luta armada obriga Marighella a se afastar do filho. Ele também abandona Lara (Adriana Esteves), a mulher pela qual é apaixonado, e, ao lado de Branco (Luiz Carlos Vasconcelos), se une a um grupo de jovens idealistas para combater a ditadura, que agia sem piedade para tentar sufocar qualquer reação que ameaçasse o projeto dos militares. Entre os apoios que o guerrilheiro abarca está o de um grupo de religiosos dominicanos que adere à causa da Ação Libertadora Nacional (ALN), comandada pelo protagonista.

Logo de cara, “Marighella” apresenta ao espectador o que, no decorrer da exibição, se mostra um diferencial do longa. O público vê o plano-sequência de um assalto a um trem, onde o grupo de Marighella rouba armas do governo para a causa. A câmera “nervosa” do diretor e a ausência de cortes deixam clara a intenção de Moura em construir uma história de ação, colocando quem assiste quase que como um participante. Um convite à imersão nesse grau e o tom de thriller não são comuns em filmes históricos ou biográficos, mas resultam em uma proposta das mais interessante.

Tentar derrubar a blindagem feita pelo regime para alienar a população aparece como uma das missões de Marighella. Acreditando que o povo entenderia e apoiaria a causa se soubesse da violência e da constante violação de direitos, ele tenta driblar a censura do Estado e a mídia conservadora para difundir a mensagem de resistência do grupo. Com esse ideal, se estivesse vivo hoje, o revolucionário estaria inconformado de ver brasileiros que não só escolhem negar que houve uma ditadura no Brasil, mas também defendem um retorno da mordaça e da truculência, sem ter, é bom que se diga, a real noção do que tudo isso representa.

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É impossível não associar essa luta de Marighella aos percalços que Wagner Moura encontrou para lançar o filme no Brasil. Entre a exibição no Festival de Berlim, em 2019, à estreia em circuito comercial, foram dois anos de obstáculos impostos pelos dirigentes da Agência Nacional de Cinema (Ancine), órgão de financiamento do cinema nacional usado como arma contra a obra, e adiamentos causados pela pandemia da covid-19. Assim como o protagonista da história, o diretor travou uma batalha contra tentativas de censura, o que só deixou mais evidente a semelhança entre as situações, dadas, claro, as devidas proporções. O diálogo que se estabelece entre passado e futuro não fica restrito a esse tema e também é possível fazer outras associações entre aquele período de repressão e a escala autoritária que vemos acontecer atualmente.

Entre as críticas que “Marighella” recebia antes mesmo de estrear, estava a de que o filme tenta santificar a figura do revolucionário. Esse posicionamento não corresponde ao que é mostrado no longa. Moura, que também assina o roteiro, ao lado de Felipe Braga, procura dar ambivalência ao protagonista, expondo a complexidade dele, especialmente em relação à violência e ao afastamento do convívio com a família. A construção do personagem que vemos na tela estimula questionamentos do espectador o tempo todo sobre as escolhas do revolucionário, no entanto, não faria mal ao roteiro um mergulho mais profundo nessas questões.

Assim como não é verdade que a obra impõe ao público uma espécie de canonização do protagonista, também não é justo dizer que o filme faz isso em relação a conceitos morais e ideológicos. A história fornece informações e contrapontos que permitem, por exemplo, que o espectador decida quem são os verdadeiros patriotas, sem precisar, com isso, anular uma posição bem marcada.

Seu Jorge encontra ótimo equilíbrio entre a introspecção e a intensidade para viver Marighella. O tom de voz firme e, especialmente, o olhar do ator são características marcantes na construção do personagem. Luiz Carlos Vasconcelos, sempre muito bem; Adriana Esteves, Herson Capri, Humberto Carrão, Bela Camero e Jorge Paz também são bons nomes do elenco. Bruno Gagliasso, como o inspetor que caça o guerrilheiro, exagera no tom ao imprimir a fissura do agente da ditadura, mas, ao mesmo tempo, o contexto da história permite entender a escolha por esse tipo de interpretação.

Entre os que, em 2021, negam a existência de uma ditadura no Brasil, defendem discursos de ódio e contestam informações e trabalhos científicos, é esperado que um filme como “Marighella” seja alvo de críticas e julgamentos precipitados. Não é justo dizer, no entanto, que o longa tenta impor uma imagem de mito perfeito e inalcançável ao revolucionário e, muito menos, sobre os acontecimentos. Mesmo seguindo esse caminho, a obra não se furta a mostrar uma posição bem marcada sobre a importância da resistência no combate ao autoritarismo e à censura. Contra regimes nada simpáticos ao real conceito de democracia, pela liberdade, pelo futuro de uma nação e em nome do cinema brasileiro, resistir é preciso.

MARIGHELLA

ONDE: nos cinemas

COTAÇÃO: ★★★★ (ótimo)

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