“Nomadland” borra limite entre realidade e ficção para apresentar panorama sobre vida nômade

Erick Rodrigues
Pipoca & Projetor
Published in
4 min readApr 23, 2021
Divulgação/Searchlight Pictures

Programas de TV e publicações, vez ou outra, contam histórias de pessoas que decidem largar tudo para viver na estrada, a bordo de um motorhome ou outro veículo adaptado para essa finalidade. Esses relatos costumam inspirar e até invejar quem sonha com uma vida mais livre e despreocupada. Esse, na verdade, é o ponto de vista mais romântico dessa experiência, uma sensação de liberdade amparada por dinheiro na conta e um lugar para voltar. Bem diferente é a vivência de Fern (Frances McDormand), a protagonista de “Nomadland”, filme com seis indicações ao Oscar.

A personagem colocou o pé na estrada e passou a morar em uma van adaptada, que estaciona onde for permitido e conveniente. Essa decisão, no entanto, foi estimulada por uma situação extrema, que a deixou praticamente sem saída. Por conta da crise econômica que atingiu os Estados Unidos em 2008, a mineradora que sustentava toda uma cidade, no estado de Nevada, fechou. Sem empregos, os moradores tiveram que abandonar a região e o município literalmente deixou de existir, uma vez que até o código postal de lá foi extinto.

Sem casa, emprego e economias, Fern passa a dirigir pelo interior do país. Para ter comida, gasolina e manter os poucos pertences que restaram em um galpão alugado, a protagonista se dedica a uma série de empregos informais, seja trabalhando como empacotadora na Amazon no período do Natal ou sendo monitora no mesmo pátio de trailers onde estaciona a van.

Baseado em um livro homônimo, escrito pela jornalista Jessica Bruder, “Nomadland” é uma ficção que ultrapassa para o campo da realidade. Fern é uma personagem fictícia, mas que concentra relatos e experiências de pessoas que, também devastadas pela crise econômica, não encontraram outra alternativa senão viver na estrada. Mas, não é só por isso que o filme ganha esse ar realista.

O longa da diretora chinesa Chloé Zhao já nasceu com a intenção de borrar a linha que limita ficção e realidade. Para conseguir o resultado, a cineasta cercou a atriz Frances McDormand de não-atores, pessoas que realmente mergulharam nessa rotina nômade e que aparecem dando depoimentos reais sobre as próprias vidas. É o caso, por exemplo, de Linda May, Charlene Swankie e Bob Wells, figuras que surgem e partem na vida de Fern. Tirando a protagonista, há apenas mais um ator em cena: David Strathaim, que interpreta um homem que acaba se interessando pela personagem central.

Além desse recurso, “Nomadland” demonstra não querer romantizar ou julgar as pessoas que levam esse tipo de vida. Na jornada de Fern, há espaço para experiências compensadoras, como a aprendizagem do desapego material, a liberdade invejável, os lugares maravilhosos que são visitados e as muitas pessoas que passam pelo caminho. Geralmente, são esses os pontos destacados por aqueles que sonham com uma vida livre pelas estradas.

Divulgação/Searchlight Pictures

O filme, no entanto, não se priva de retratar o outro lado da moeda. Ficam evidentes as dificuldades de ordem prática, como, por exemplo, o uso do banheiro; o frio intenso; e a busca por um lugar onde seja permitido estacionar um veículo que faz as vezes de casa. Mais do que isso, o roteiro também aborda a vulnerabilidade e a solidão brutal que rondam esse estilo de vida.

Ao longa da história, Fern tem algumas oportunidades de abandonar essa vida nômade e se estabelecer. Uma delas é oferecida pela irmã da protagonista e educadamente rejeitada. Não é difícil de entender o motivo: depois de tanto tempo, Fern não se sente mais parte do mundo tradicional, fica deslocada dentro da bolha criada pelo capitalismo. O sistema econômico excluiu ela e outros sem cerimônia; impôs condições de vida precárias, como uma aposentadoria que não permite nem acesso ao sistema de saúde; e ainda se vale da mão de obra informal dessas pessoas para manter a engrenagem funcionando.

Todos os elogios para a direção de Chloé Zhao, desde os enquadramentos que valorizam as paisagens à condução dos não-atores em cena, que tem um resultado bastante natural. Os depoimentos desses nômades da vida real, aliás, deixam os olhos de quem assiste cheios d´água. Ainda é preciso mencionar a belíssima fotografia de Joshua James Richards.

Sem nenhuma surpresa, o trabalho de Frances McDormand não é nada menos do que espetacular. A atriz, que sempre é uma força da natureza em cena, se entrega às experiências e emoções da personagem, especialmente quando ela entra em contato com os relatos dos não-atores. Há muitos momentos em que Frances diz tudo apenas com o olhar marejado ou com um sorriso tímido. É mais uma atuação belíssima da atriz.

Borrando o limite entre ficção e realidade, “Nomadland” apresenta um panorama sobre a experiência nômade e emociona muito. Fugindo do romantismo que cerca a ideia de liberdade e dos julgamentos sobre esse estilo de vida, o filme percorre uma estrada pavimentada com muitas contradições e convida o espectador a enxergar mais longe.

NOMADLAND

ONDE VER: nos cinemas, com estreia prevista para 29 de abril

COTAÇÃO: ★★★★★ (excelente)

--

--