Crítica: Coringa

Cainan Silva
pipocainan
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4 min readOct 7, 2019

Ninguém vê quando o palhaço chora. Poderia resumir Coringa com essa frase, se ele fosse, claro, um filme que pudesse ser resumido de qualquer maneira. A única forma de compreender o que o diretor pretende é mergulhando na conflituosa mente de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix). Ao longo de cerca de 2h20m, acompanhamos o caminho que o protagonista percorre até tornar-se o principal arqui-inimigo de Batman. Indo na contramão dos outros filmes inspirados em histórias em quadrinho, no longa de Todd Phillips, temos a Jornada do Vilão.

Apesar de não ter como prioridade ser uma adaptação de quadrinhos, é possível encontrar algumas referências a essas histórias e ao próprio Batman. Thomas Wayne (Brett Cullen), o pai de Bruce, é um dos personagens de destaque do longa. Ele pretende ser eleito como prefeito de Gotham e apresenta-se como um salvador para a cidade em crise. Thomas representa a figura do homem rico e vira alvo de manifestações e da insatisfação das classes mais pobres. Em meio a esse caos, surge a figura do Coringa. Um símbolo da revolta contra os ricos que têm ignorado os problemas que a população tem enfrentado.

Embora o Coringa cause toda essa comoção, o homem por trás da maquiagem se vê como uma vítima da sociedade. Arthur se sente invisível, em uma cidade dominada pelo pânico, com lixo, ratos e pichações por toda a parte. Seus transtornos mentais o colocam numa posição de fragilidade e uma sequência de infortúnios servem de motivação para ele seguir um caminho violento. Além desses motivos que o tornam relacionável com o público, ainda temos a atuação de Joaquin Phoenix. Sim, a risada dele impressiona, é fato. No entanto, o que derruba o espectador é o olhar do ator. A forma como ele consegue transitar entre a raiva, o medo e a dor sem alterar sua expressão facial é arrebatadora. Joaquin consegue fazer com que seja possível sentir compaixão pelo personagem, em alguns momentos, mesmo reprovando suas ações e objetivos. Poucas vezes assisti a uma atuação tão magistral.

Em certo momento do filme, Arthur confessa sempre ter achado que sua vida era uma tragédia, mas diz agora saber que é uma comédia. E a comédia, de fato, está presente no longa. Só que ele é tão impressionante e inesperada como todo o resto do roteiro. Quem imaginaria que um palhaço levaria uma arma para um hospital infantil? O roteiro prega peças com os arquétipos criados em nossas mentes sobre determinados personagens e nos deixa sem saber até onde vai a realidade e onde começam as invenções da mente do personagem. As formas na narrativa que o diretor encontra para representar esse contraste são dignas de aplauso, como, realmente, aconteceu ao final da sessão. No entanto, por manter um nível alto de qualidade por, praticamente, todo o longa, em alguns momentos, o roteiro deixa a desejar. Cenas como quando Arthur consegue entrar, com facilidade, em um evento que deveria estar sendo fortemente protegido, incomodam, mas não afetam o resultado final do longa.

A trilha sonora acompanha, também, a forma gradual como Arthur vai enlouquecendo e se transformando no Coringa. As canções vão mudando de tom e se tornando mais sombrias. Percebemos isso em momentos-chave do filme, como quando o protagonista pinta seus cabelos de verde, ao som de That’s Life de Frank Sinatra, ou na cena — já icônica — da dança na escadaria enquanto toca Rock N Roll (Part 2) de Gary Glitter. Já a trilha original, composta por Hildur Guðnadóttir, com o uso do violiono, contribui para aumentar a tensão do filme e quando combinada com as expressões faciais de Joaquin se torna assustadora.

O longa nasceu em meio a polêmicas e por isso é difícil não falar sobre elas. Alguns chamam o filme de irresponsável e o acusam de glorificar a violência. Entendo que seja possível ter essa interpretação após assistir a Coringa, mas discordo. Em uma das cenas mais emblemáticas do longa, é possível ler no diário de Arthur que a pior parte de ter um transtorno mental é que as pessoas esperam que você aja como se não o tivesse. Vale a reflexão. Não acho que a intenção do diretor tenha sido criar uma série de justificativas para as ações indefensáveis do Coringa, mas mostrar partes da nossa sociedade que muitas vezes preferimos não enxergar para não termos que lidar com o problema. Dizer que Coringa é filme do ano ainda é pouco, pois desconfio que continuaremos falando sobre ele por muito mais tempo que isso.

Excelente

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Cainan Silva
pipocainan

Há muito tempo eu já sabia que nem tudo é céu azul, que há também melancolia na vida de cada um