A linha grossa ficará depois da chuva passar

São Paulo, anos oitenta

Sergio de Fiori
Pirata Cultural
2 min readJan 25, 2020

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Photo by Geetanjal Khanna on Unsplash

Sentado no campo meio de terra, meio de areia, os dedos muito sujos, desenhava umas curvas no chão — pareciam colinas — no meio da algazarra do quinto ano. Tinha o mesmo nome, ou quase, da menina mais velha, repetente, que era uma das únicas ainda em pé, junto ao bebedouro. Bruno e Bruna. Bruna tinha seios salientes como… colinas, e pele num tom meio terra, meio areia.

“Bruno e Marquinhos, vamo lá pegá as bolas!” Era o Professor que, erguendo o queixo anguloso do bebedouro, parecia um dobermann em cujos lábios escorria um fio de água. Bruno levantou orgulhoso, Marquinhos levantou ligeiro, e seguiram o homem, sob olhares de ciúmes.

O Professor andava na frente e, conforme entraram na sala de equipamentos, foi ficando mais sisudo: “Hoje tem novidade, beisebol” — ao que os moleques reagiam com mais excitação a cada passo. Não havendo ninguém por perto, o Professor empunhou um taco impressionante para os meninos: coisa de profissionais. “Agora é sério”, e apontou para uma bancada ao lado de Marquinhos. “Sobe aí, você primeiro”.

Bruno empalideceu, assistindo à cena o mais quieto que conseguia. Conseguia ver as costas magras de Marquinhos, cuja cabeça chegava no umbigo do professor. Não entendia o que falavam, esforçando-se por não respirar nem se mover, quem sabe tudo terminaria rápido. Mas os dois permaneciam num quase diálogo, o Professor com o taco enorme apontado para cima e Marquinhos, tão miúdo, em pé.

“Então vem você” apontou para Bruno. Bruno fingiu que a bancada não existia, fingiu que não precisava responder, fingiu que tudo ia terminar logo, fingiu que Marquinhos não estava lá, mas os olhos do professor sugavam-no, e de sua boca de cão de guarda saíam coisas incompreensíveis. Viu-se na guerra, viu-se inferiorizado. Chorou, esqueceu Marquinhos.

Num sorriso de dobermann, tudo terminou. Bruno, olhos e nariz molhados, já adorava o Professor: “tinha sido brincadeira!” Era uma espécie de cachorro menor, hierarquicamente inferior. Carregando sacolas, tacos e bolas, fizeram o caminho de volta, de segredos, Bruno de um lado, Marquinhos do outro.

Chegaram ao campo sob palavras de incentivo do Professor e chuva mansa, que limpou na cara de Bruno o brilho de lágrimas com remela. Ainda no bebedouro, e com os lábios molhados, Bruna exibia peitos já respingados e, quando cruzou olhares com o Professor, fingiu ser por acaso.

O resto do quinto ano jogava beisebol — fingiam ser americanos. Menos Bruno: de volta ao chão, riscava uma linha grossa, que fingia ser taco, que fingia ser outra coisa, sobre as curvas suaves das colinas que a chuva dissolvera em terra e areia.

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