Aline

Antonia Moreira
Pirata Cultural
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3 min readMar 29, 2020

Aline

Desde o primeiro momento que a vi, Aline sempre tinha uma história para contar e as contava sempre olhando profundamente no olho. Ela não parecia ter aquela necessidade que muitos de nós temos de desviar o olhar e tomar um fôlego para continuar conversando.

O negócio dela era olho no olho. Nos encontramos em um ônibus, a caminho da Universidade. Aline me contou sobre como foi expulsa de casa por sua avó e do pouco que sua mãe fez para impedir.

Eu a perdoei hoje, ela diz. Entendo que ela não foi a pior naquela história toda, e afinal, o que somos nós senão seres que podem perdoar? Voltei pra casa depois de tê-las mostrado que não iria para a rua me prostituir, que não seria estatística. Somos uma geração que quer mais, sabe? A gente não vai se contentar com pouco, eu canto é sobre isso.

Ao me falar sobre seus objetivos e projetos, Aline saca da bolsa um celular, coloca pequenos fones pretos e abre o SoundCloud. Ouça, me diz. Dos fones saem uma música um tanto barulhenta. É uma demo ainda, tá? Ela canta sobre a energia feminina que habita nos corpos e como isso é tão poderoso e único.

Quero fortalecer outras como eu, como nós, entende? Me sinto viva ao cantar, ao transmitir o que tantas de nós passam.

Aline fala com uma calma e leveza, é um projeto, ela me afirma. A gente tem um projeto de poder, de vida.

Me lembro de um artigo que li há pouco tempo, tratava da construção dos termos “travesti” e “transexual” na literatura científica a partir do século XIX. Esses nomes foram dados a partir da criação dos seres mentalmente instáveis, perigosos e doentes. Antes, porém, a história era outra. Houve um tempo que o corpo que carregava signos femininos e masculinos era venerado, era místico e despertava a curiosidade.

Quem cagou tudo foi a igreja, me diz Aline quando falo sobre esse texto. Sim, o cristiano colocou tudo o que não estava em uma caixinha bem definida, o que é homem e mulher, como o demônio, e assim nasceram as demônias. Mulher de pau, homem de buceta, seres criados pelo próprio Diabo.

E como o cristianismo opera? Como faz essas coisas místicas virarem demoníacas? Foi aí que entendi o conceito de episteme, palavra que já tinha ouvido mas nunca pegado sua completude. É uma mudança de pensamento, é algo difícil de imaginar estando no aqui, agora, enquanto nosso pensamento é moldado de uma certa forma.

Mas até a forma de pensar é construída, não é natural.

Aline ri. Nada é.

Como pode ser viver em outra forma de pensar? Outra forma de ver o mundo? Como é viver outro paradigma? Me recordo da música de Aline que ouvi há pouco, o que ela fala… é outra episteme. Ela está pensando fora dos moldes de nosso tempo.

No artigo, fala-se que o processo de demonização das coisas levou séculos. Somos, então, uma peça na mudança da episteme. Algum dia nos estudarão. Imaginei humanos futuristas apontando pra uma foto em museu.

Foram aquelas lá, aquelas travestis que começaram tudo. Tudo!

A gente ri, nosso trabalho está apenas começando.

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Antonia Moreira
Pirata Cultural

Bixa travesty em demolição. Redatora e produtora cultural.