Brasil, velhos e novos mitos

O país do futuro que vive seu passado no presente

Nathan Gonçalves
Pirata Cultural
6 min readNov 20, 2018

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Seria o Brasil pós-golpe um novo Brasil? (fonte)

Os mitos de um povo, criados a partir de seus processos históricos, são coisa viva. É processo dialético sintetizando aqui, transformando ali, conservando acolá. Os mitos vêm e vão, frutos da sociedade que os gerou.

No Brasil, velhos mitos tendem a se perpetuar, fundamentando pensamentos e ações que não condizem com a realidade do país. Podemos pensar então que esses mitos foram criados exatamente para escamotear essa realidade, para impedir de as pessoas refletirem ou se aprofundarem sobre ela.

Na política, foi eleito um homem que alguns chamam de mito. Sendo um homem bem real, com discursos bem reais, que causam danos bem reais, cabe pensar a possibilidade de sua vitória nos conduzir a uma condição de podermos finalmente — pela via mais difícil, diga-se de passagem — superar os mitos que rondam o Brasil. E quem sabe, ao encararmos esse Brasil real, poderemos ultrapassar nosso passado tão presente derrubando velhos mitos.

1- Mitos da terra brasilis e sua população

O Brasil é uma terra mítica, comparado ao Jardim do Éden pelos primeiros jesuítas. Uma nova Terra Prometida, onde vivia um povo amigável e alegre (já que os que tinham o azar de conhecer as tribos hostis e canibais nem sempre voltavam pra contar a história).

É a terra onde as três raças se confraternizaram e formaram uma população mestiça, enquanto em tantas partes do mundo fazia-se o apartheid (já que o fato de existir um mestiço sempre foi exaltado ao invés de se questionar em que condições se deu a geração desse mestiço — no caso das relações entre europeus e mulheres escravizadas ou indígenas, o estupro).

Além desses, também há o mito da nossa unidade federativa, acompanhada do cuidado de não se tratar nenhuma das revoltas regionais (separatistas ou não) pelo nome de “guerra civil”…

A terra do “samba, futebol e carnaval” é ainda bastante mitificada. Muito se fala de samba, mas pouco se fala das perseguições racistas que ele sofreu em sua aurora; muito se fala de futebol, mas pouco se faz contra os cânticos preconceituosos de muitas torcidas; muito se fala de carnaval, mas só recentemente conseguimos ampliar a discussão sobre assédio nesse feriado.

Os mitos aparecem ressaltando apenas um lado: o positivo. Isso nos remete a ideia inicial do texto de que o objetivo deles é exatamente impedir que a questão a qual remetem seja vista por outros ângulos.

2- Surge um novo “mito” e, com ele, a possibilidade de enfrentar os mitos do Brasil

Pois bem, o mais novo “mito” do país ganhou recentemente as eleições presidenciais. Os resultados imediatos a sua vitória se fazem sentir por aqueles que sempre foram os indesejados da sociedade brasileira: os pobres, os negros, as mulheres, os dissidentes sexuais e de gênero, os defensores dos direitos humanos. Os sentimentos de medo e ódio se misturam formando uma sociedade monocromática.

A eleição virou competição pessoal. Levados pela emoção, eleitores do “mito” creem que existem perdedores e vencedores, mesmo quando a confusa frase de Dilma começa a fazer sentido: “vai todo mundo perder”. Enquanto ignoram a venda da Amazônia, o sucateamento do SUS, a precarização da Educação e das relações de trabalho, riem-se do PT, o perdedor. A Lei de Gérson foi atualizada. Não basta só querer levar vantagem em tudo. Além de levar vantagem, é preciso ver o outro sofrer (ainda que você também sofra junto, já que não está tão distante desse outro).

Para muitos de nós essa face do Brasil pode parecer algo novo. Mas se fizermos um esforço para desconstruir esses mitos e essas visões fantasiosas que remetam ao Brasil e ao povo brasileiro, veremos que esse novo é velho. Para as travestis, os quilombolas, os indígenas, os militantes dos direitos humanos, esse é o Brasil de sempre. Uma máquina de moer gente.

Se há algo de positivo nesse novo “mito”, em suas ideias e falas, é a possibilidade de finalmente derrubar diversos outros mitos: a ideia de democracia racial (se alguém ainda acreditava nela), a visão do brasileiro como povo tolerante (desde que você não seja de esquerda, ou LGBT+, ou haitiano, ou venezuelano, etc), um país de um povo alegre e pacífico (que está doido pra poder se armar).

A maior característica da sociabilidade brasileira, a cordialidade, pode também ser posta em cheque. Segundo Sergio Buarque, o Brasil deu ao mundo o homem cordial, aquele que age pelo coração, pelo afeto. Nessas eleições agimos pelo medo, pelo ódio, pelo direito de poder violar direitos, mas também pela esperança, essa equilibrista. Onde estará o homem cordial nesse país em que acumulamos desafetos?

Do golpe pra cá, esses mitos ficam cada vez mais difíceis de serem sustentados. A sociedade brasileira é posta a prova e dessa vez parece difícil passar por essa situação sem enfrentar seus demônios. Não seria novidade se a polarização que se formou no país fosse esquecida em poucos anos (como foram as diversas situações traumáticas do país como a escravidão, a ditadura, o neoliberalismo dos anos 90), mas vivemos um momento ímpar para enfrentar discursos e práticas inaceitáveis que sempre existiram, mas por muito tempo viveram escondidos nos porões.

3- Velhos problemas e uma nova chance de encará-los

O Brasil nunca encarou seu passado. Hoje esse passado se faz presente, como uma assombração. Nada que estamos vendo é novo. Nova é a saída que podemos construir pra essa crise social, política e moral. Se nada do que está acontecendo é realmente uma novidade na história do país, sabemos que o resultado não poderá ser diferente do que já aconteceu. (É por isso que não se trata de torcer contra o novo presidente, mas de ver que, pela história do país, a agenda de propostas não só não resolve os problemas do Brasil como em muitos casos também os agrava).

O povo brasileiro é sociabilizado num ambiente de violência, de conservadorismo moral e político e nas mais diversas opressões. E isso vem se intensificando. As relações trabalhistas (e sociais) vão se deteriorando. As máscaras da cordialidade vão caindo. Por mais agradáveis que sejam, as visões fantasiosas do nosso país e do nosso povo precisam ser superadas. É hora de encarar o Brasil real, com toda sua feiura. O novo/velho Brasil do ame-o ou deixe-o.

Talvez tenhamos chegado ao fundo do poço. Talvez seja preciso chorar o Brasil. Mas lembremos que os sintomas precisam surgir para que a doença possa ser tratada. Que os bichos escrotos saiam dos esgotos, para que possam ir pra lata de lixo da História. Se esse Brasil do “mito” não é coisa nova, não é preciso inventar a roda pra poder enfrentá-lo.

Será que toda essa polarização também vai ser esquecida? (fonte)

Por isso é hora de continuar falando sobre a escravidão, abrindo as feridas de um povo que não se acha racista. É hora de continuar denunciando o machismo e a homofobia dessa sociedade, e de como ela faz todos os malabarismos possíveis pra se fingir de inclusiva. É hora de continuar divulgando a violência no campo, que atinge os sem-terra, os índios, os quilombolas, os pequenos produtores. É hora de falar em reparação histórica, em feminismo, em direitos dos povos originários, em direitos sexuais e reprodutivos, em reforma agrária e agroecologia, em estudos de gênero e sexualidade, em Paulo Freire, em justiça social e democracia.

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Nathan Gonçalves
Pirata Cultural

Sobrevivendo à quarentena com jogos, desenhos e histórias em quadrinhos. Mais textos disponíveis em: https://bosquecultural.blogspot.com/