confidente e amante das voltas que o mundo dá

coisas de carolina
Pirata Cultural
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6 min readJan 10, 2020

Durante o reencontro, ela me encarava com aqueles grandes olhos cor de mel e eu ficava repassando nosso último encontro mentalmente. Três anos atrás nós estávamos nos olhando ao lado do portão de embarque 5 do Eurico de Aguiar, enquanto eu esperava a chamada para meu voo para Chicago.

Nosso aniversário de dois anos de namoro tinha acontecido no mesmo dia em que eu recebi a proposta de trabalho em uma agência americana e eu não podia continuar comemorando sem contar.

Ela estava no nosso banheiro, tirando a maquiagem que usou no nosso jantar de comemoração em seu restaurante favorito, com velas, rosas e vista espetacular. Eu estava deitada na nossa cama, usando uma camiseta surrada e calcinha, observando aquela mulher. Como eu iria contar do telefonema para ela? O que ela diria? Ela me deixaria? Eu seria fisicamente incapaz de viver sem ela do meu lado. Não dava.

Amor. — ela virou seu rosto perfeito para mim e eu perdi toda a coragem que tinha dentro de mim. Respirei fundo. — eu… recebi uma proposta para trabalhar como diretora de arte na Hava, em Chicago. Casa paga, viagem paga, salário ótimo. — tentei analisar sua expressão mas ela era imutável, quase uma boneca, me olhando fixamente. — Desculpa falar isso no nosso aniversário, mas eu não aguentava mais esperar.

Mariana saiu do banheiro, pegou sua bolsa e se sentou ao meu lado. Começou a mexer muito na bolsa — ela adora carregar tralhas desnecessárias em bolsas gigantes, assim como eu -, tirou uma caixinha de presente com um bilhete em cima e ficou segurando, como se fosse um segredo.

Eu ia esperar a gente ir dormir pra te pedir pra abrir isso, porque eu estava completamente sem coragem. — ela sorriu e, finalmente, desviou o olhar de mim, segurando a caixinha com uma força quase desnecessária — Mas, essa notícia exige que isso seja feito agora. Abre. — ela finalmente me passou a caixinha. Eu a peguei e fiquei analisando. Não podia ser o que eu estava pensando, a Mariana odeia aliança, acha que é um sinal claro de possessão.

Abri a caixinha. Era uma aliança. De ouro. Fina. Com a minha pedra favorita perfeitamente cravada como se fosse um diamante. Eu senti que a Mari me encarava e eu que estava vermelha. Ia dizer algo mas ela me interrompeu:

Eu te amo, Cecília. Desde a primeira vez que a gente se viu. Eu ia te pedir em casamento de um outro jeito, muito menos fofo, mas você me deu essa notícia e eu não pude me segurar — ela começou a chorar um pouco, ainda meio vermelha da surpresa e sorrindo. Eu não falava nada, só chorava mesmo. — Menina, eu quero que você voe. Ser diretora de arte fora daqui, em alguma agência grande, sempre foi seu sonho. Você batalhou a vida toda por isso e eu seria imbecil se não ficasse genuinamente feliz por ti. Eu quero dividir tudo contigo. As aventuras, o ódio, o amor, o tesão, a felicidade, a depressão, a rotina. Tudo, pequena. — a essa altura do campeonato eu já não conseguia pensar em mais nada.

Parecia que o mundo estava completamente vazio, exceto por nós duas. Nossos vizinhos de porta, que estavam conversando e ouvindo música alta, desligaram o som e pararam de falar. O vento que entrava pela janela do quarto parou. Os carros da rua pararam de buzinar. Nada existia além de nós.

É óbvio que eu aceito, Mariana. — eu finalmente consegui dizer em meio as lágrimas. O mundo ainda era total e completamente nosso. — eu não consigo imaginar uma vida sem você do meu lado. Não faria sentido viver isso sem você.

O mundo voltou ao normal. Nos abraçamos e nos beijamos em meio as lágrimas de ambas. Transamos como se nossa vida dependesse daquilo. Transamos no chão, na cama, no banheiro, na sala, na cozinha, no corredor, na área de lavar. Transamos como se nossa alma dependesse única e exclusivamente disso. Transamos como se fosse a única coisa possível a se fazer naquele momento.

Duas noites depois reunimos os amigos e familiares em nossa casa para um jantar e para contar as novidades. Optamos por não contar sobre Chicago ainda, porque Mari não havia conversado com o chefe, então não tínhamos certeza do que seria a vida. Minha mãe ficou extremamente feliz, meu pai meio desconfiado, os pais delas completamente empolgados fazendo planos, nossos amigos dando ideias e dizendo que a gente demorou demais pra decidir casar. Nós duas com um sorriso de orelha a orelha. Nada atrapalharia nossa felicidade.

Retornei a ligação e aceitei o emprego. Minha partida foi adiantada e eu teria que viajar em um mês. Não era tempo suficiente pra casar, nem pra Mari arranjar um emprego ou juntar dinheiro para começar a vida lá e planejar uma mudança completa. Os problemas começaram a aparecer.

Me sentei com a Mari para conversarmos sobre o que seria de nós, sobre como as coisas seriam feitas daqui pra frente. Eu viajaria em um pouco menos de 30 dias e nós não tínhamos falado sobre isso, não tínhamos nada acertado ou planejado. Decidimos tudo: Mari conseguiu se realocar para Chicago na multinacional que trabalhava, meu emprego estava garantido, com casa e tudo.

No dia do embarque, com tudo pronto, acordei muito mais cedo que o previsto com Mariana soluçando ao meu lado. A abracei e entre os solavancos do choro, minha mulher me disse que não poderia viajar comigo. Que sentia muito, mas que o chefe dela havia mudado de ideia sobre a realocação e promovido ela a diretora de operações da América Latina, o que a obrigava a ficar na cidade. Choramos juntas, agarradas como se fossemos um corpo só. Prometi pra ela que eu seria feliz, pedi que ela também fosse. Implorei pra que ela não se prendesse a mim, mas que falasse comigo quando necessário. Deixei claro que não havia mágoa, que eu a entendia, pois estava indo atrás do meu futuro também.

Ela me levou no aeroporto e nós ficamos nos olhando na porta de embarque do portão 5 do Eurico Aguiar, enquanto eu espero a última chamada pelo meu voo. Quando finalmente ouvi a voz metálica chamando os passageiros, nos largamos, demos um beijo apaixonado, surramos que nos amávamos mais que tudo no mundo e eu fui embora sem olhar para trás.

Hoje, três anos depois, Mariana está na minha frente, me encarando com seus grandes olhos cor de mel e as mãos no bolso. Sem dizer uma única palavra, ela se ajoelhou e tirou a mesma caixinha que eu havia visto três anos antes do bolso e a estendeu para mim.

A caixa tinha um bilhete preso no laço, exatamente do mesmo jeito que já teve no passado.

No pequeno papel estava escrito:

Leia em voz alta.

Cecília, eu escrevi esse bilhete sabendo que um dia você voltaria para mim. Eu te vi andando por Vitória um dia desses. Eu sabia que você havia voltado para continuarmos exatamente de onde paramos.

Ceci, minha Ceci, você aceita se casar comigo?

Abri a caixa e encontrei exatamente a mesma aliança que vi três anos atrás. Eu chorava tanto, que nem havia percebido que Mariana estava de pé, chorando, esperando minha resposta.

A abracei, nos beijamos, eu gritei que sim. Gritei que a havia esperado por esse tempo todo, gritei que a vida em Chicago foi ótima mas vazia sem ela. Gritei que eu sempre quis me casar com ela, gritei que a amava incondicionalmente desde a primeira vez que coloquei meus olhos nela. Gritei e gritei e gritei.

Voltamos para a nossa casa, nosso canto, nossa vida, nossas lembranças. Avisamos os amigos e a família que estávamos de volta, mais felizes e juntas do que nunca, nos casamos com as duas vestidas de noiva e uma festa em um lugar paradisíaco de Vitória, com tudo que tínhamos direito.

Hoje em dia, 45 anos depois, essa é a história que ela mais gosta que eu conte. Hoje, 45 anos depois, enquanto assisto ela tomar água de canudinho de um copo de plástico deitada em uma cama de hospital, ela não fala, mas sorri com os olhos. Hoje, 45 anos depois, depois de tê-la visto tomar água de canudinho em copo de plástico do hospital, se alimentar por uma sonda e não conseguir mexer nenhum músculo de seu corpo, eu conto essa história pra ela antes de dormir, mesmo que ela não esteja aqui pra escutar.

Hoje, 45 anos depois, eu me sento no chão da sala abraçada com o travesseiro dela, para contar nossa história aos nossos dois netos e nossa filha grande e criada, como se você fosse se sentar ao meu lado para contar os detalhes que eu esqueci.

Hoje, 45 anos depois, eu sorrio toda vez que alguém diz o nome Mariana, porque você foi, é e sempre será o grande amor da minha vida, independente de onde esteja.

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textos autorais sobre coisas que podem ou não ser realidade. um conto aqui, um poema ali, uma história de duas páginas aculá. sei lá. — carolina.