Jerusalém, suicídio e Realidade

Como as imagens criadas pela Literatura estão mais próximas do Real do que imaginamos.

Victor Matheus
Pirata Cultural
4 min readOct 31, 2017

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Fonte: Tumblr

Existe um escritor o qual não me recordo — e você não pode me julgar por isso levando em consideração que esse é um texto também sobre esquecimentos — que afirmou que a Arte existe porque a vida não basta. Quando ouvi essa frase pela primeira vez, no primeiro ano da graduação, fiquei horas pensando sobre seu sentido. Hoje percebo que poucas frases na vida me marcaram tanto quando essa. Desmistificando a afirmação, ela basicamente expõe que a vida nunca será suficiente para explicar todas as questões da própria vida.

Daí a necessidade artística. Daí a Literatura.

O falar sobre o que não se fala é uma das principais características do fazer literário. O que gera (e ainda bem que gera) textos riquíssimos sobre loucura, drogas, violência, amor, morte, imperfeição. É amparado pela temática do “não-aceito”, da questão “o que exatamente é erro?” e, por último, mas não menos importante, pela marca da dor na humanidade que Gonçalo Tavares, escritor português contemporâneo, decide escrever seus livros. E é com base nesses três pontos que Jerusalém se desenvolverá.

O livro escrito em 2004 conta a história de seis personagens principais: Mylia, uma esquizofrênica; Theodor Busbeck, médico renomado e marido de Mylia; Ernst Spengler, esquizofrênico e amante de Mylia; Kaas, filho da relação entre os dois esquizofrênicos; Hinnerk, ex-militar, marcado pela guerra, psicológica e fisicamente; e, por fim, Hannah, uma prostituta. As personagens e seus encontros irão, de acordo com a diegese, se aproximar e distanciar, reforçando a afirmação de Guimarães Rosa: o grande movimento é a volta.

O foco aqui, no entanto, não é o fazer artístico de Tavares como um todo (infelizmente, talvez). O foco desse texto recai sobre uma personagem e a ação cometida — ou quase cometida — por essa personagem. Ação esta que tem sua importância assinalada ao iniciar o livro. Ernst Spengler nos insere no universo de Jerusalém de maneira chocante: prestes a se atirar da janela do sótão onde vive.

A volta ao passado após esse episódio nos ajuda a entender os motivos de Ernst, ao mesmo tempo que conhecemos os dramas e experiências pessoais dos outros protagonistas. Essa entrada na vida da personagem vai nos revelar um Ernst vítima de abusos, quando internado a fim de tratar sua esquizofrenia; um Ernst apaixonado, logo sucedido por um Ernst melancólico e com saudade do passado devido ao rompimento com Mylia; um Ernst com necessidade de afeto e contato humano; e, ainda, um Ernst negligenciado pela sociedade após sua liberação do hospital psiquiátrico.

O mais interessante na narrativa de Tavares é observar como a doença de Ernst ocupa segundo plano quando comparada às situações as quais a personagem é submetida no decorrer de sua vida. Os tratamentos (e as rudezas por trás deles, como Ernst evidenciará), a efemeridade das relações humanas, sejam elas amorosas ou não, e a exclusão social sofrida por Ernst toma, em sua vida, um espaço maior que o da “loucura” (e coloco o vocábulo entre aspas porque sempre fica um questionamento: o que seria a loucura propriamente dita?).

Ao final da história, observamos um Ernst vazio graças ao modo com que a sociedade e suas relações o puxam e empurram. As cicatrizes que o estar vivo gera na personagem são inúmeras, o que o leva a acreditar que o suicídio é a única solução. A tentativa é, no entanto (e felizmente), interrompida graças a um telefonema.

A síntese acima e a compreensão da história de Ernst e suas causas são necessárias e nos levam a pensar em outros pontos, que poderiam facilmente ser resumidos em: até que ponto a literatura de Tavares se prende na ficção e até que ponto ela se encaixa na realidade? Afinal, o que observamos na obra é um indivíduo excluído de tal forma que acredita não possuir mais bases fixas. A sociedade não o inclui, as pessoas a sua volta não o abraçam e ele mesmo passa a questionar-se sobre sua “autopresença”.

É justamente essa a imagem que — trazendo para um contexto com maior consumo — a série de TV americana Os 13 Porquês irá retratar. Não é uma mera coincidência, claramente. Durkheim afirmará que a tendência suicida e o desejo de morte são inversamente proporcionais à interação de determinada pessoa com a sociedade. Não podemos negar que questões como suicídio, depressão e saúde mental estão sendo cada vez mais debatidos. No entanto, e acredito que este seja o apogeu ao qual eu almejava, o questionamento que fica (e que deve ficar, porque sem o incômodo nós não mudamos nada) é sobre o quão prático tem sido esses debates. E quando digo prático não me refiro a acessibilidade, mas sim ao caráter de realizar as ações e realmente mudar nossas maneiras de nos portar frente a situações que envolvam saúde mental.

Talvez a vida não seja mesmo explicável pela própria vida, mas talvez (e muito provavelmente) ela não precise ser. E não há nada de errado em não a entender. O grande movimento é a aceitação: aceitação de que somos muito mais complexos do que o correto, o explicável, o socialmente requerido. Todo o orgulho do mundo em ser quem somos. E toda a força do universo para não desistir disso.

Comecei esse texto citando um literato e termino esse texto citando outro literato. “O que proponho não é que se pense ilogicamente sobre uma coisa lógica, mas sim que se pense logicamente sobre uma coisa ilógica”. Ensinaram-me certa vez que as barreiras e conceitos existem para ser quebrados: assim faremos.

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Victor Matheus
Pirata Cultural

na impossibilidade da vida ser um musical sigo estudando Letras, dando aulas, pesquisando e escrevendo.