Lúcifer, e o paraíso perdido

Alberto Luiz
Pirata Cultural
Published in
5 min readJan 27, 2020

De que importa o lugar onde resido, se sou sempre o mesmo e o que devo ser? Aqui, ao menos, seremos livres! Mais vale reinar no inferno do que servir no céu. — Lúcifer, John Milton

Lúcifer, ilustração de Pablo Auladell, Editora Darkside¹

Poucos personagens da literatura ocidental são tão controversos quanto a velha serpente, o dragão, o pai da mentira, o enganador, o querubim da guarda ungido, ou Lúcifer. Mesmo que sua presença nos textos sagrados se resuma muitas vezes a uma sombra que sussurra aos ouvidos as tentações, o antagonista da presença do divino, aquele que se rebelou contra sua autoridade e foi derrotado em um primeiro momento não descansou, nem se deu por vencido, pelo menos na literatura. Sua influência na cultura ocidental, nunca deixou de ser intrigante e forte. Ainda hoje o personagem vive aparecendo, seja nas desculpas dissimuladas de uns ou em camisetas, séries, filmes, copos e livros.

Em 1674, o poeta inglês John Milton, publica a versão final do seu mais famoso trabalho: O paraíso perdido, um poema épico dividido em doze cantos, de versos livres. Milton um antimonarquista, protestante e puritano constrói em seus versos o que as escrituras cristãs renegaram a imaginação, a guerra do paraíso. Como Milton constrói seu poema tendo referência os grandes poemas épicos de Homero, Virgílio segue a mesma estrutura, ele canta as musas, pedindo para que elas lhe ajudem a contar a estória que ele se propõe. Como sabemos todo poema épico, Odisseia, Ilíada, A divina comedia ou a Eneida etc… tem seu herói, e sua tragédia. Por exemplo Homero ao escrever a Ilíada narra a o episódio de fúria de Aquiles durante o cerco a Troia, Dante, canta a tragédia da perda do amor. Milton escolhe inusitadamente como herói trágico, ou anti-herói o próprio Lúcifer. Essa opção proporciona um dos mais épicos spins-off dos textos sagrados, influenciando a cultura ocidental até hoje.

Lúcifer, ilustração de Pablo Auladell, Editora Darkside

Então, poderíamos pensar que Milton repete a formula maniqueísta cristã: o bem supremo vs o mal absoluto, para construir seu personagem e dar a ele um fundo moralizador? — Não! Pelo contrário, a cada canto que lemos camadas são ingressadas ao personagem principal do poema. E, ao invés de encarnar o Mal absoluto, Lúcifer é humanizado ao ponto de podermos dizer: ele é tão humano que, nós carregamos também suas angústias. E, diferente de um filho pródigo ele não deseja voltar a casa paterna, mas fundar seu império e reinar pela astúcia e pela revolta.

“Ó, sol, quanto ódio agora me inspiram teus raios!
Como eu era glorioso quando me elevava sobre tua esfera!
Até que orgulho e ambição lançaram-me ao abismo, por declara
guerra ao rei do céu!
Criado fui por ele como ser superior. Estar ao seu serviço não era difícil…
Mas a bondade dele só rendia em mim malícia.
Como suportar tal dívida infinita de gratidão? Pagar e pagar e ainda sim
seguir devendo.

Ó, por que não me criou um anjo inferior? Assim não haveria nascido em mim, quiçá², a ambição de superá-lo.
Não haver-me-á misericórdia?
Não, não pode haver.”
— Lúcifer, John Milton

Lúcifer, em um momento de autorreflexão questiona a sua própria existência, e entendemos um pouco as questões do personagem. Não, havia outro caminho para seguir, pela própria natureza de seu poder, servir a Deus não era o problema, o problema era ser tolhido. Em certo momento da narrativa de Milton, Deus apresenta ao anjos a encarnação de seu filho e ordena aos anjos que deveriam servi-lo como serve ao onipotente. Para Lúcifer isso era de mais, a servidão imposta agora também se estendia ao messias.

O messias, ilustração de Pablo Auladell, Editora Darkside

Intrigante, quando em nenhum momento vemos o personagem se tratar como bom, ou se vender como tal. Ele encarra seus atos como uma extensão da sua própria natureza, da sua própria potência e abraça a consequência dos seus atos. Como em certo momento após a queda ele convoca os anjos que caíram com ele dizendo: Ergam-se agora, fiquem prostrados eternamente. Há uma consciência mortal no personagem, consciência da sua existência, consciência dos seus limites frente o seu inimigo. E essa consciência brutal o leva por um caminho sem arrependimentos, continuando o verso anterior ele exclama:

Para tanto seria preciso arrependimento e submissão…
Jamais pode renascer verdadeiramente ali onde as feridas
de ódio mortal penetraram tão fundas. Disso ele também sabe.
E está tão longe de conceder-me a paz quanto eu de mendiga-la.
Assim, adeus, esperança!
Adeus, medo!
Adeus, remorso.

Ó, mal, graças a ti, reinarei
quiçá, em mais da metade do universo!
E o homem e esse novo mundo virão a confirmar.
— Lúcifer, John Milton

Em certo momento, ao encontrar os humanos no jardim, ele observa sua condição e em algum momento podemos perceber um prenuncio de compaixão pela condição:

“Por que terá o onipotente proibido a eles os frutos?
Acaso é crime saber? Sua felicidade terá base na ignorância? — Lúcifer, John Milton

Lúcifer, ilustração de Pablo Auladell, Editora Darkside

Mas, logo em seguida ele articula seu plano, e o preço que o homem vai pagar pelo conhecimento é abitar com ele (Lúcifer), no reino criado pelo onipotente. E assim ele faz, incita Eva a comer do fruto do conhecimento, e o mito da queda do homem nós conhecemos. Satã, agora devidamente reconhecido pelos anjos que guardavam o jardim, se demonstra extremamente irônico ao zombar de Gabriel, e dos demais anjos que o cercavam. Tal carisma, e ironia do personagem faz com que a perca do paraíso seja um preço aceitável pelo conhecimento, e o exílio um valor pequeno pela consciência brutal da existência.

Não há final feliz para nenhum personagem da epopeia de Milton. Deus tem sua criação desvirtuada, o casal é expulso do paraíso, Lúcifer é castigado pela queda do homem, a moralidade cristã do puritano inglês não poupa o fim dos personagens, como Mozart, em seu Don Giovanni, não poupa o devasso de sua condenação. Entretanto cabe a continuidade da história, pois o castigo impetrado pelo onipotente não finalizou os atos, e os poemas se o texto de Milton fosse elevado a sacralidade seus cantos não cessariam no decimo segundo, por outro lado seus personagens estariam vivos até hoje. A crise existencial de Lúcifer, é a crise existencial de séculos, as dúvidas e astucia de conquistar pela razão o que a força não pode mover, ainda é o que move o ser humano.

“Mais vale reinar no inferno do que servir no céu”.

¹ MILTON, John. O paraíso perdido. John Milton/Pablo auladell; trad. Erico Assis — Rio de Janeiro. Darkside Books, 2018

² Quiçá: possivelmente, mas não com certeza; talvez, porventura.

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Alberto Luiz
Pirata Cultural

Doutorando em filosofia, ouvinte de música indie. Um colecionador de histórias cotidianas. Escrevendo sobre filosofia, arte, e outros devaneios.