Disgraça do Natal

Breno P. Andrade
Pirata Cultural
Published in
5 min readDec 10, 2018

Disgraça com “i” mesmo. Cês sabem que esse negócio de alegria em família é invenção capitalista pra fazer a gente descontar nossa frustração do ano todo na comida, né? Magia do Natal é o cacete!

Esse negócio de que “dezembro é só festa” parte do princípio de que a vida de todo mundo é perfeita que a reunião com a família é a forma perfeita de celebrar isso.

Quer dizer, essa época é até boa pela grana extra do 13º, mas só por isso.

Eu costumo dizer que dezembro é o mês em que temos o clímax das interações humanas. Nas empresas, os times são mais pressionados ainda a bater suas metas. Nas ruas, as pessoas correm pra finalizar a burocracia que ficou pendente do resto do ano. Nas casas, as pessoas se reúnem em torno das comemorações de fim de ano, unidos por uma “alegria por estar em família”. E é nesse ponto que quero chegar.

Dezembro vem com aquela sensação de retorno às origens, visitar e receber parentes, estar em casa com a família. Claro que há famílias que se dão muito bem e eu fico muito feliz por elas. Mas a gente não pode dizer que dezembro é uma época boa por conta de família porque muitos de nós temos família que não querem o nosso retorno ou nem temos família para retornar.

Permito-me a descrever que pode ser agonizante ter que, por mais um ano, enfrentar um lar que não quer você lá. Nem todos temos pais que nos aceitam por quem somos e por quem queremos ser. Quantas crianças são criadas dentro de um molde e se veem sem saída quando percebem que não se encaixam ali? É estranho estar nessa posição e ver que você não precisa fazer nada para que te julguem mal.

É você o problema. Simplesmente por ser você. Por querer o que você quer.

E não encaixar no molde é imperdoável. Você tem que ser aquilo e viver com o perigo de começaram a ignorar sua existência, do nada. Não importa que você veja as coisas de outra maneira simplesmente porque há maneiras diferentes de ver as coisas. A sua visão, a sua realidade, o seu ser não merece espaço. E por isso, muitos pais se acham no direito de colocar para fora de casa.

Expulsar seus filhos. Seus bebês. De casa.

Do lugar onde eu deveria me sentir protegido. Afinal eu estou “em casa”.

E é para esses lares que precisamos muitas vezes voltar em dezembro. E voltamos. Voltamos porque muitas vezes ainda acreditamos que essas são as pessoas nos amam bem lá fundo. Voltamos porque há essa pressão social de que Natal tem que ser em família.

“Mas como assim você não vai passar Natal com a sua família?”, escutamos quando dizemos que esse ano vai ser diferente..

E quando retornamos e nos reunimos com aquelas pessoas em volta de uma mesa com um peru em cima, voltamos àquele ambiente hostil, onde fazem questão de nos fazer ouvir comentários e piadinhas que tentam nos diminuir. Mas tudo meio disfarçado de uma alegria em estar em família, que esconde a opinião das nossas famílias sobre nossas vidas.

Ouvimos que gay tem que morrer.

Que precisamos seguir o Jesus deles pra ser alguém na vida.

Que negro precisa voltar pra senzala.

Que tem primos ganhando “8k” por mês.

Que não vamos conseguir nada na minha vida cursando essa faculdade.

Que precisamos casar e formar família.

Que mulher tem que ser dona de casa mesmo.

Que eu não sou uma pessoa presente em casa e que meus amigos são os culpados.

Que eu fui doutrinado na faculdade por professores comunistas.

E vários outros “quês” que chegam a deixar o ambiente claustrofóbico.

Muitos de nós somos forçados a retornar a lares que não nos querem. Para ver parentes que no fundo nos desejam longe ou até pior: nos desejam mortos. Para ouvir piadinhas preconceituosas bem na nossa frente, como se fosse normal diminuir alguém.

Muitos de nós ainda não tem consciência da força interior e esquecem que não estão sozinhos.

Quem sofre preconceito desde criança têm dentro de si um guerreiro, essa persona feroz que te defende e te faz ficar vivo numa sociedade que nos deseja o pior. Essa faceta que aparece quando alguém tenta roubar a sua vez de falar. Esse espírito que está em constante luta por algo extremamente simples e que todos nós merecemos: respeito.

A diferença entre cada um de nós dentro de cada comunidade em que participamos está no tempo em que cada um levar para aceitar que essa persona existe e aceitá-la como parte de si mesmo.

Outra questão relevante é que existem tanta gente na mesma situação. Essas pessoas que podem ser verdadeiras famílias para outras pessoas pois elas compartilham a mesma dor: a de um lar que te renega. Conheço muitas pessoas que moram com amigos, que arrumaram um jeito de sair de casa fazendo intercâmbio ou entrando numa universidade em outra cidade. Muitos querendo sair de casa para ter uma chance de viver suas vidas independente do que foi planejado por nossos pais. Isso porque nós somos seres racionais e tomamos nossas próprias decisões. Não precisamos nos encaixar no molde de ninguém e nossas famílias deveriam respeitar qual forem nossas decisões justamente por serem nossas famílias.

Afinal, a magia do fim de ano não é essa? Celebrar a união da família?

Família é aquele conjunto de pessoas que queremos manter perto porque elas somam ou até multiplicam na nossa vida. Família é formada por pessoas que se respeitam e se amam independente de qualquer decisão. E tenho certeza de que todo mundo, mesmo inconscientemente, sabe que isso é que é família.

Ficamos felizes que há famílias de pais e filhos possuem essa relação de respeito. Mas isso não pode ser uma “bandeira” de todas as festas de fim de ano.

Assumir a persona e procurar quem está na mesma situação é, para muitas pessoas, ter uma família. Uma família que está junta durante 11 meses do ano, mas que em dezembro precisa ser substituída pela outra “família”, aquela com quem supostamente precisamos passar o Natal.

Acaba que, no final de tudo, o Natal acaba tendo o efeito contrário para muitas famílias.

Feliz Natal invertido!

Pelo menos tem comida. Amém, peru! (rs)

Que suas festividades sejam com a família que te acolhe, te aceita e te respeita.

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Breno P. Andrade
Pirata Cultural

Latino-americano. Mestrando em História. Bacharel em RI ávido pelas entrelinhas. Reflexões totalmente pessoais sobre o que der na telha. Escrita como terapia.