Nietzsche e as três metamorfoses do espírito

A importância de aprender a dizer não no caminho para a maturidade

Nathan Gonçalves
Pirata Cultural
6 min readMay 2, 2018

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Zarathustra by Islingt0ner on Deviantart

No clássico Assim Falou Zaratustra, Nietzsche fala no primeiro capítulo sobre as três metamorfoses que deve passar o espírito rumo à liberdade. A partir da leitura e reflexão sobre o texto e algumas falas de Joseph Campbell em O Poder do Mito, pude fazer algumas considerações que vou compartilhar.

“Qual é a coisa mais pesada, ó heróis?” — pergunta o forte espírito que suporta cargas -, “para que eu possa colocá-la sobre mim e me alegrar por minha força?

O espírito na sua primeira forma é como o Camelo. Servil, reverente, submisso. Ele anseia pelo peso, pela dificuldade, pois assim pode se orgulhar da sua “humildade”. O Camelo é forte, mas sua força é apenas para carregar. O que é difícil? Casar virgem? Ficar décadas num relacionamento com a mesma pessoa? Ou será buscar o maior número de relacionamentos possível, sem se prender em nenhum, visto que sentimento é coisa para fracos? Ou será se formar antes dos 25, com boa saúde, vida social, boas notas, emprego estável, alto salário e morar sozinho? Ou será manter contato com um ex que te fez mal para se mostrar maduro? Ou será ainda seguir valores milenares de livros milenares descontextualizados resistindo aos progressos da sociedade?

Sim, o Camelo se orgulha da dificuldade. Ele vive da forma que aprendeu a viver: obedecendo. E a vida pra ele é assim mesmo, tem que ter esforço, dificuldade, peso. Sacrifício é o caminho pra felicidade. A recompensa vem depois. No fim de semana ou na outra vida. Como é lindo o estudante que passou em primeiro lugar em Medicina após estudar 14 horas por dia! O Camelo só quer que as coisas continuem como estão. Mas sua liberdade é tão fugidia, seja na Igreja ou no bar... E assim o servil Camelo segue para o deserto, e algo dentro dele começa a se transformar.

“Mas, no deserto mais remoto sucede a segunda transformação: ali o espírito se transforma em leão; quer capturar a liberdade e ser senhor em seu próprio deserto.”

Surge o Leão, o espírito fortalecido de tanto carregar pesos agora renasce como um guerreiro. Quanto mais pesadas forem suas cargas, mais forte (revoltado) será o Leão. E no deserto ele encara seu Deus, aquele que para ele foi o grande e único Senhor, o enorme dragão chamado “Tu deves”. Em cada escama do dragão brilha em dourado “Tu deves”. “Valores milenares brilham nessas escamas e assim fala o mais poderoso dos dragões: ‘O valor de todas as coisas — reluz em mim.” E o leão ruge: “Eu quero!”. Para Nietzsche, o objetivo do Leão é matar esse dragão. É dizer não ao que ele representa. É despertar uma vontade de liberdade dentro de si e rugir contra o que te limita.

Mas será possível nós, que vivemos em sociedade, acabar com todos os valores já criados em nome da nossa liberdade? Acredito que não, isso seria de um idealismo liberal irresponsável. Não, não é possível matar Tu deves, mas dá pra arrancar umas boas escamas dele sim. Valores desgastados, ensinamentos que servem para nos tornar obedientes, servis, incapazes de criar valores próprios. Mas o Leão também não é capaz de criar valores próprios. Ele é um destruidor, tomado pela ira de seus anos de servidão. A tarefa dele consiste em dizer Não. Em se levantar contra os ídolos, os deuses, os senhores. Mas se eles forem destruídos, que restará de nós? Mais um ideal inalcançável criado por algum pensador revoltado? Por sorte ou azar, Tu deves (as obrigações) não pode ser morto. Mas deve, sim, ser enfraquecido, descer do trono e se tornar mortal, histórico, criticável, temporário, construído e em construção. E após “matar” Tu deves, o Leão precisa se transformar novamente.

“Mas dizei, meus irmãos, o que a criança pode fazer que mesmo o leão não conseguiria fazer? Por que o leão predador tem ainda de se tornar uma criança?

A criança é inocência e esquecimento, um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado Sim.”

Agora que é capaz de dizer Não, o espírito pode dizer Sim. Mas o Camelo não sabe dizer Sim? Sabe, mas seu Sim é fraco, impotente, pois ele não sabe dizer Não. E aquele que não sabe dizer Não não tem um Sim verdadeiro. O Sim da criança é o Sim à vida. A criança é capaz de criar novos valores, pois ela é como o Sol, e quer criar um mundo que gire em sua volta. Para Nietzsche, o valor supremo: criar além de si mesmo. A pureza de não carregar valores de outrem nem de ser um destruidor revoltado. A originalidade, a autonomia, a independência, a liberdade.

Não é aceitar o mundo tal qual ele é. É, após se levantar contra ele, construir a partir de si o novo. Sem idealismo, é como o estudante que não deixa a faculdade tomar sua vida, organizando horários mais saudáveis para cumprir suas tarefas sem que isso lhe custe todo seu tempo; ou como o jornalista que, pedindo demissão de um jornal comprado que dita o que deve ser escrito por cada profissional, se associa a outros jornalistas e cria uma nova publicação, livre da interferência de velhacos e onde o talento de cada um pode aflorar. É buscar o prazer no que se faz através da pureza da ideia que outrora se tinha.

Joseph Campbell, meu antropólogo favorito, tem uma interpretação interessante desse capítulo de Assim Falou Zaratustra. Ele fala sobre isso no capítulo Sacrifício e Felicidade, da série Poder do Mito. Para ele, as três metamorfoses são as fases da vida. O Camelo é a criança, e o peso que ele recebe são as instruções para ter uma vida decente. O Leão é a adolescência, a rebeldia, o dizer não aos ensinamentos e morais sociais. E claro, matar “Tu deves”, isto é, as obrigações, algumas milenares, outras, tendências do jornal da manhã. Por fim, a maturidade é a criança. O criador de seu próprio sentido, aquele que vive de acordo com sua própria dinâmica. “O ‘Tu deves’ é a força civilizadora que transforma o animal humano em um ser humano civilizado”, diz ele. A criança não perde o que ela aprendeu com as imposições sociais, ela só não necessita mais delas.

A importância de aprender a dizer não, de ter seu momento de Leão e se rebelar contra as obrigações, é ser capaz de dizer um sagrado Sim. Podemos resumir o sagrado Sim à vida a partir de uma experiência de Campbell na Índia. Lá, o Sim é bastante conformista, diferente do falado por Zaratustra. Em um dos capítulos de O Poder do Mito ele relata a pergunta magistral que fez ao sábio indiano Krishnamenon, quando ele sentou frente a frente do guru em Trivandrum, e a mais magistral ainda resposta que recebeu:

“Uma vez que para o pensamento indiano todo o universo é divino, é uma manifestação da própria divindade, como podemos dizer não a qualquer coisa deste mundo? Como podemos dizer não à brutalidade, à estupidez, à vulgaridade, à irresponsabilidade?” E o sábio respondeu: “Você e eu devemos dizer sim.”

Há uma controvérsia entre o Sagrado Sim indiano e o Sagrado Sim nietzschiano. Para Nietzsche, o espírito que se tornou criança (que atingiu a última metamorfose) não vai aceitar o mundo tal qual ele é, pois, como vimos, esse seria um Sim impotente. O fato de ela ser um sagrado Sim a vida não eliminou sua capacidade aprendida anteriormente de dizer Não. Na verdade, ela ser um Sagrado Sim à vida é resultado da sua capacidade anterior de dizer Não, que por sua vez foi conquistada a partir das imposições que ela soube suportar. Por isso Nietzsche considera as três fases importantes rumo à maturidade.

A criança vai criar a partir de si mesma um mundo próprio, e esse é seu Sim à vida, é esse desejo de criar, de conhecer, de viver intensamente. Sem carregar pesos de gerações passadas, sem ter que viver lutando contra obrigações eternas e sem ver tudo como uma manifestação do divino. Aqui, não conta o que dizemos à brutalidade, à estupidez ou à vulgaridade, mas o que consideramos por brutalidade, estupidez e vulgaridade, visto que a criança cria seu bem e seu mal, seus próprios valores. O ser humano que atingiu a maturidade, se isso for possível, é a roda que gira em torno de si mesma.

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Nathan Gonçalves
Pirata Cultural

Sobrevivendo à quarentena com jogos, desenhos e histórias em quadrinhos. Mais textos disponíveis em: https://bosquecultural.blogspot.com/