O futebol de rua e a socialização dos pobres na França

Documentário disponível na Netflix mostra a cultura em torno da modalidade que une negros, brancos e árabes

Nathan Gonçalves
Pirata Cultural
4 min readApr 22, 2018

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Bola no Asfalto, documentário disponível na Netflix

Paris é uma cidade cosmopolita. Essa palavra dá a ideia de vários povos se misturando e vivendo uma harmônica “democracia racial”. Na realidade, se povos de origens diferentes estão no mesmo lugar, sabemos que haverá suas divisões. As cidades cosmopolitas muitas vezes não passam de cidades cheias de guetos, de espaços para pessoas que não foram (e não serão) incorporadas na sociedade, que não serão cidadãs. Nelas, judeus, negros, árabes, chineses, ciganos estão geograficamente separados, e cada um sabe seu lugar. Assim é a Paris cosmopolita, cheia de guetos de argelinos, marroquinos, senegaleses, marfinenses, camaroneses e tantas mais nacionalidades em proporção aos países colonizados (leia-se invadidos) pela França.

Mas há um elemento que une esses marginalizados, e que inclusive pode ser a ponte para o reconhecimento deles perante a sociedade, o futebol. “O futebol é o esporte dos pobres”. Essa frase vem do documentário Bola no Asfalto (Ballon sur Bitume, 2016), disponível na Netflix. Nos guetos de Paris, nos subúrbios e conjuntos habitacionais, o futebol de rua é o elemento que cria liga entre os jovens, principalmente rapazes. No documentário, negros e árabes mostram a cultura do futebol de rua. Se no Brasil nos contentamos com uma bola e dois chinelos para marcar o gol, jogando descalços e sem camisa, na França o futebol de rua é levado a sério.

No futebol de rua, a maioria dos rapazes são negros. (http://generations.fr/video/autre/38316/ballon-sur-bitume-enfin-un-doc-sur-le-football-de-rue)

Não basta vencer, tem que driblar, as jogadas devem ser plásticas. As regras são informais, árbitros não são necessários. Desentendimentos acontecem, mas se resolvem naturalmente, afinal, todos ali tem a mesma origem. E a importância disso é evidente em Bola no Asfalto. O respeito às origens, carregar o nome do bairro que nasceu, o número do apartamento que morou no conjunto habitacional, manter o contato com os amigos de infância, isso é valorizado. Mostra sua autenticidade. E se tem algo que os jogadores de rua são, é autênticos. O estilo é levado muito a sério. Camisas de futebol, calças esportivas, tênis da Nike, brincos, cortes de cabelo da moda, tudo isso faz parte do futebol de rua francês. E é nele que nasceram alguns grandes jogadores, como Riyad Mahrez, argelino do Lesceister, o marroquino Mehdi Benatia, do Juventus e o francês Ousmane Dembélé, que dão depoimentos ao longo do documentário.

o rapper MHD (fonte)

Mas o futebol de rua não criou só jogadores, criou também uma série de rappers. Os que não eram tão bons com a bola nos pés expressaram o amor ao futebol de outras formas. E uma bela relação foi criada: o futebol inspira os rappers a comporem raps, os raps inspiram os jogadores a jogarem, as belas jogadas e grandes jogos inspiram novos raps, enfim, eles se alimentam mutuamente. Gradur, Niska, MHD são alguns dos que se destacaram com o microfone, e não com a bola. Mas eles são tão importantes quanto os jogadores. O estilo, a música, as dancinhas na comemoração dos gols, tudo isso faz parte do futebol de rua. “Os heróis atuais são os rappers e os jogadores de futebol”, resumiu bem um entrevistado. Esses são os dois caminhos pra quem quer vencer a pobreza, ajudar os pais e conseguir uma posição melhor na vida.

Se isso não for possível, pelo menos essa juventude não está sucumbindo à violência, às drogas, aos grupos terroristas que vivem assediando jovens insatisfeitos, dando-lhes um “propósito de vida”. Eles criaram sua própria socialização, suas regras, sua segunda família. Em meio ao racismo, marginalização e pobreza, o futebol de rua é uma cultura de alegria, de superação, de amizade. E os campos e quadras urbanas (que carregam nomes magistrais como os lendários estádios San Siro e La Bombonera) são o coração de uma juventude viva, vívida, que quer se divertir, se expressar, se vestir bem, dançar, cantar, ser gente também. Se Paris não é verdadeiramente cosmopolita, o futebol é. Ele é negro, branco, árabe, brasileiro, francês, chinês. Ele é do bilionário Real Madrid, dos moradores de guetos da França, e de quem mais quiser. O futebol é o esporte dos pobres. E nele, nossa alma se aquece.

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Nathan Gonçalves
Pirata Cultural

Sobrevivendo à quarentena com jogos, desenhos e histórias em quadrinhos. Mais textos disponíveis em: https://bosquecultural.blogspot.com/