O paganismo contemporâneo e a população LGBT+

A Wicca como uma alternativa de cosmovisão para pessoas LGBT+

Nathan Gonçalves
Pirata Cultural
6 min readJun 20, 2018

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Forest witch

O Brasil é um país esmagadoramente cristão, embora o sincretismo religioso tenha criado em algumas partes e indivíduos uma espécie de cristianismo “flexível” (onde religiões de matriz africana, gurus indianos e ensinamentos budistas convivem com Cristo). O cristianismo é uma religião baseada em um antigo livro muito grande, cheio de histórias de guerras e intrigas. Mas lá pro final desse livro há uma pequena parte - onde aparece o personagem mais importante dele - que fala sobre amor.

O cristianismo então, fundamentado nessa pequena parte do livro, seria uma religião do amor. Entretanto, alguns dos porta-vozes dessa religião, ao se dirigirem a comunidade LGBT+ no Brasil, encarnam uma religião de ódio e segregação. Mesmo quando algumas igrejas aceitam acolher essa comunidade, há um caráter paternalista, uma ideia de cuidado, uma caridade cristã enviesada como se dissesse: “mas você sabe que está errado, não sabe?”.

Nesse cenário de exclusão, jovens LGBT+ têm buscado nas religiões de matriz africana e no paganismo o contato com o sagrado. O universo denominado Wicca tem sido foco de interesse de muitas pessoas que buscam o paganismo. Neste texto, buscarei fazer uma reflexão sobre a relação entre pessoas LGBT+ e a Wicca como uma cosmovisão e uma alternativa válida para essa população experienciar o sagrado.

Segundo Osório (2004), “a bruxaria wicca se propõe a ser uma releitura de práticas pagãs europeias anteriores ao cristianismo, especialmente aquelas de origem céltica” (p.158). Tendo surgidos nos EUA nas décadas de 50 e 60, a Wicca chega ao Brasil nos tempos da New Age (Nova Era, anos 80) e se populariza nos anos seguintes com o uso da internet. Nos países anglo-saxões ela não é vista exatamente como religião, já no Brasil: “a noção de Wicca como prática religiosa vem se cristalizando por estar relacionada à ideia da necessidade de lutarem contra o preconceito, na busca por uma liberdade ‘religiosa’” (CORDOVIL, 2017, p.87).

A(s) sexualidade(s) na Wicca

A sexualidade na Wicca recupera sua essência pré-cristã, de fertilidade, cuidado e conhecimento de si. Ao longo de sua história, marcada pela contemporaneidade com a contracultura, os movimentos feminista e pela liberdade sexual, a Wicca passou a defender bandeiras que dialogam com as pautas da população LGBT+: a valorização e empoderamento da mulher e do feminino e a visibilidade e o respeito às sexualidades desviantes.

Portanto, a Wicca não é apenas uma expressão religiosa do retorno à uma vida harmônica com a natureza, celebrando a Terra, como também um ativismo político em busca de uma sociedade mais justa. Se a tradição cristã nos coloca acima da natureza, como seus domadores, envergonha a nudez e torna diversas sexualidades como pecado, a Wicca traz uma visão radicalmente diferente. Para Cordovil (2017, p.92):

“Dentro dessa cosmovisão, magia e sexualidade são percebidas como práticas e saberes acionados no cotidiano. A sexualidade integra discussões, vivencias e práticas pagãs em todas as esferas, desde os eventos mais públicos até a vida privada e pessoal de cada adepto. O wiccaniano é confrontado cotidianamente com formas mais libertárias de vivenciar sua vida íntima, amorosa e sexual”.

E mais:

“Os wiccanianos consideram que toda forma de restrição ou moralismo no que tange a sexualidade é um empecilho à plena realização humana. O que não significa que não devam existir regras e uma ética relacionada ao cuidado com o corpo e ao exercício da sexualidade” (CORDOVIL, 2017, p.95).

Nesse ambiente de aceitação das sexualidades (no plural), a população LGBT+ é acolhida sem as tradicionais restrições que outras religiões fazem, tais como “pode ser homossexual, só não pode praticar”, ou “Deus odeia o pecado, mas ama o pecador”.

Wicca e as relações de gênero

O artigo de Andréa Osório, Bruxas Modernas: um estudo sobre identidade feminina entre praticantes de wicca, mostra que, na Wicca, as diferenças de gênero não são contrárias as da sociedade em geral (a mulher como emotiva, a importância da figura dela no papel de mãe, etc.) mas o valor atribuído a essas diferenças é invertido: as mulheres seriam mais aptas a magia que os homens, portanto, mais valorizadas.

Na Wicca, a Deusa e o Deus possuem tanto a relação de mãe e filho (ela o teria gerado) quanto a de casal. A Deusa teria dado origem ao Deus assim como todo homem se originou do ventre de uma mulher. “Por isso, nos rituais, o lugar de destaque e liderança deve ser, tradicionalmente, de uma mulher” (OSÓRIO, 2004, p. 158).

O binarismo de gênero é reafirmado pelo próprio instrumental mágico, já que há objetos que representam as divindades (ou essências) masculinas e femininas, que são usados em rituais onde os participantes personificam essas divindades (ou essências).

Para Rocha e Oliveira (2014), na Wicca, a binaridade de gênero, que seria a representação dos princípios cósmicos masculino e feminino, gerou um atrito entre os praticantes homossexuais e pessoas trans. Entretanto, os estudos Queer vêm adentrando o paganismo e esse binarismo tem sido questionado. O culto a divindades queer (como o deus azul Dian Y Glas), andróginas, homossexuais e transexuais na atualidade é mais um dos pontos de inclusão da população LGBT+ na Wicca.

Por mais que hajam avanços no sentido da inclusão dessa população entre os praticantes da Wicca:

“há também a persistência em esteriótipos de gênero essencialistas de seus membros ou a execução de práticas mágicas baseadas em crenças na divisão de capacidades espirituais exclusivamente de homens ou mulheres” (ROCHA e OLIVEIRA, 2014, p.121).

Ainda que seja um ambiente de valorização da mulher (cis, já que o útero é o centro da magia), a Wicca pode ser um lugar de reafirmação dos papéis de gênero num sentido cósmico, sagrado, embora de inversa valorização desses papéis: a colher de pau, o caldeirão e a vassoura não são instrumentos de submissão da mulher ao mundo da casa, mas do seu poder como bruxa, como pessoa naturalmente (por conta do útero) mágica (OSÓRIO, 2004).

A Wicca vem se tornando mais inclusiva

O estudo de Osório (2004) mostra que, sendo um espaço de valorização do feminino, os homens que praticam a Wicca são, em sua maioria, homossexuais. Ela argumenta que os homens que frequentam a Wicca: “terão que ser homens pós-revolução feminista” (p.161).

Se o perfil dos homens praticantes da bruxaria wiccana é majoritariamente homossexual, isso se dá, a meu ver, entre outros fatores anteriormente expostos, a homens gays aceitarem com maior facilidade a valorização feminina e as mulheres ocupando posições de poder do que os homens hétero, que costumam aceitar como exemplo e liderança apenas outros homens hétero.

O Deus cornífero

Os estudos Queer afetam o paganismo questionando o binarismo de gênero sacralizado que existe em suas práticas, como bem mostra o estudo de Rocha e Oliveira (2014). Eles mostram que, dentre as principais modificações que vem ocorrendo no paganismo contemporâneo, “um fenômeno crescente é o de sacerdotes homens gays substituindo as sacerdotisas mulheres heterossexuais” (p.121).

Isso pode se dar tanto a partir da visão de que o homem gay teria uma “essência feminina”, portanto pode performar o papel da Deusa nos rituais, quanto a uma maior flexibilização dos papéis ritualísticos nas práticas pagãs.

A Wicca é uma alternativa viável para viver o sagrado sem os constrangimentos que as pessoas de sexualidades desviantes costumam sofrer em religiões mais comuns, especialmente as abraâmicas. Ademais, a Wicca está em acordo com lutas contemporâneas, como a ambientalista, a feminista e a LGBT+. Uma maior fluidez dos papéis de gênero, tornando os pólos masculino e feminino menos rígidos, e até reconhecendo outros pólos além desses, pode tornar o paganismo no geral a opção religiosa mais praticada e defendida pelos jovens LGBT+ num futuro próximo.

Referências

CORDOVIL, D. Sexualidade, Espiritualidade e Conjugalidades na Wicca Brasileira. Relig. soc. [online]. v.37, n.1, pp.85–103. 2017.

OSÓRIO, A. Bruxas Modernas: um estudo sobre identidade feminina entre praticantes de wicca. Campos v.5, n.2, pp.157–172. 2004.

ROCHA. E.; OLIVEIRA, E. Influência dos Estudos Queer no paganismo contemporâneo. Gênero e Direito, v.3, n.1, pp.114–123. 2014.

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Nathan Gonçalves
Pirata Cultural

Sobrevivendo à quarentena com jogos, desenhos e histórias em quadrinhos. Mais textos disponíveis em: https://bosquecultural.blogspot.com/