O pioneirismo nas obras de Maria Firmina dos Reis

Considerações sobre o livro Úrsula e outras obras.

Victor Ramos
Pirata Cultural
5 min readJan 28, 2019

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imagem: plenarinho.leg.br — Câmara dos Deputados

Maria Firmina dos Reis inaugura no Brasil a tradição dos romances abolicionistas com o livro Úrsula, publicado em 1859. Por ser mulher e negra, sua contribuição foi esquecida por muitos anos, tendo seu trabalho resgatado há pouco tempo e seus romances reeditados; Úrsula (1859), A Escrava (conto publicado no jornal na época — 1887), Gupeva (1861) e a antologia poética Cantos à beira-mar (1871).

Em seus trabalhos Maria Firmino dava voz a personagens negros, fato inédito até então em livros do gênero, humanizando-os e fazendo deles heróis, enquanto os donos de fazenda como verdadeiros vilões.

É o que acontece em Úrsula: Fernando é dono de fazenda, cruel com todos ao seu redor e sem piedade, não existe nele nenhum traço que desperte compaixão no leitor. Quando ele se apaixona pela protagonista descobrimos seu forte sentimento de posse em relação a tudo e todos e isso inclusive é o que leva à sua ruína. A autora consegue construir essa relação de forma magistral, associando a maldade àqueles que são contra as ideias abolicionistas e que se mantinham e lucravam com o sistema escravocrata.

Já os mocinhos, ainda que típicos de livros associados ao romantismo, trazem um certo companheirismo com os negros escravizados. Logo na abertura do romance Tancredo é salvo de uma situação de quase morte por Túlio, até então escravizado. Por gratidão e compaixão Tancredo devolve a liberdade e se mantém grato a ajuda do rapaz, em troca o agora liberto Túlio se compromete a continuar ao lado do mancebo em suas aventuras.

Isso mostra como a autora estava preocupada em construir relações opostas e colocar o tema da escravidão em debate; aqueles que nutriam compaixão pelos negros escravizados sendo os mocinhos inspiram compaixão no leitor, já aqueles que concordam com o sistema escravocrata despertam o nosso desprezo.

É importante frisar que na época de publicação do romance ainda não se falava de maneira tão abrangente sobre os movimentos abolicionistas. O poema “Navio Negreiro” de Castro Alves, por exemplo, ainda não tinha sido publicado (sendo apenas em 1869) e a Lei Áurea foi assinada apenas em 1888.

Além de Túlio, o romance traz ainda mais dois personagens negros: Mãe Susana e Antero, que protagonizam cenas antológicas e bastante emocionantes.No relato de Mãe Susana, capturada ainda em África e trazida a força para o Brasil sendo separada de sua filha criança, temos pela primeira vez em um livro a visão do negro escravizado sobre o sequestro e consequente escravidão dos povos africanos. A personagem sonha com sua liberdade, mas sabe que só poderia viver plenamente esse direito, que lhe foi arrancado, se pudesse voltar a sua terra natal, da qual se recorda com muito carinho.

Antero também protagoniza uma cena importante por ser a pessoa responsável por prender Túlio na casa de Fernando até que este consiga capturar seu inimigo e poder desposar a força de Úrsula. Mas, usando o ponto fraco da bebida, o herói capturado consegue ludibriar o carcereiro fazendo-o beber ainda mais até apagar e trocar de lugar com ele. Prevenindo-se para que Antero não seja castigado, o escravizado fugitivo dá um jeito de não deixar à mostra que o colega foi enganado, vítima de uma armação. Alternativa que deu certo. Antero é o único personagem que não tem final trágico.

Apesar da grande profundidade que os personagens negros têm, eles ainda demonstram enorme servidão ao seus senhores, sentimento disfarçado de gratidão por estar em uma situação um pouco melhor, não sofrendo os castigos que os irmãos de cor sofrem em outras fazendas. Infelizmente, o destino trágico acaba por atingir a todos como resultado direto das ações de Fernando, vilão da história.

“Túlio obteve pois por dinheiro aquilo que Deus lhe dera como a todos os viventes. Era livre como o ar, como o haviam sido seus pais, lá nesses adustos sertões da África.” Úrsula

A trágica história de amor entre Úrsula e Tancredo segue os moldes comuns dos livros da época, com o diferencial das questões abolicionistas e personagens negros com a mesma profundidade de personagens brancos.

Em sua carreira Maria Firmina volta a falar do tema abolicionista de forma ainda mais direta já que o movimento pela libertação dos escravizados já estava muito mais difundido na sociedade. No “Conto a Escrava” de 1887, a protagonista defende uma mulher negra escravizada que foge dos seus algozes junto com seu filho, ainda jovem. Diante do senhor de engenho essa senhora branca se apresenta como uma fiel defensora da mulher escravizada, que apesar dos cuidados acaba por falecer. Mantendo em seu teto o filho dessa mulher, a senhora se opõe a devolvê-lo ao senhor de engenho iniciando uma discussão sobre a liberdade e direitos dos negros escravizados, atitude bastante corajosa considerando a sociedade machista e patriarcal.

Essa personagem me parece ser a personificação da própria autora. Além de escritora, Maria Firmina dos Reis foi a primeira mulher a passar em concurso público para professora em seu município e já aposentada abriu a primeira escola mista para ensinar meninos e meninas pobres, fato que chocou a sociedade e devido à pressão, só se manteve aberta por pouco mais de 2 anos.

A autora também escreveu sobre personagens indígenas na obra “Gupeva”, em que um homem branco marinheiro se apaixona por Épica, mulher indígena, e na tentativa de encontrar com sua amada se depara com Gupeva, de quem ouve um relato trágico que acaba por definir o destino do casal apaixonado, assim como o do próprio Gupeva.

Maria Firmina buscava não só em suas obras como em sua vida particular dar voz aos grupos menos favorecidos, já que ela mesma pertencia a eles. Como mulher negra em uma sociedade que não abria nenhum tipo de oportunidade para quem não fosse homem e branco, como infelizmente continua sendo até hoje, a autora foi um importante ponto de apoio e voz de incentivo à luta por direitos iguais. Seu apagamento histórico é mais um reflexo do racismo estrutural no Brasil, mas com esforços e através de pesquisas e publicações acadêmicas sobre a importância do seu trabalho, além das reedições dos seus livros, Maria Firmina dos Reis volta a ocupar seu lugar de destaque na história brasileira. Conheçam e leiam Maria Firmina dos Reis.

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Victor Ramos
Pirata Cultural

iyawo omo oxalá, escritor e roteirista, mestre em cinemas e narrativas sociais (ufs)