Quem tem medo do feminino?

Antonia Moreira
Pirata Cultural
Published in
5 min readJan 8, 2019
Photo by Sharon McCutcheon on Unsplash

Júlio tem apenas 9 anos. Vive em um bairro de classe média baixa no interior de São Paulo, numa cidadezinha tão pequena quanto seu conhecimento sobre o mundo. A mãe de Júlio ficou desempregada durante a última recessão, ela trabalhava na fábrica de latas da cidade vizinha e, para pagar as contas após sua demissão, começou a vender roupas. Vendia belos vestidos, roupas infantis, blusas e calças jeans vindas diretamente do Brás, na capital do estado.

Júlio descobriu seu primeiro vestido em primeiro de setembro. Naquele dia sua mãe levara uma porção de roupas para amigas no centro, o pai trabalhava e Júlio ficou sozinho. Mesmo com 9 anos isso já era comum em sua vida. Entediado, foi até o quarto que funcionava como loja e ficou curioso por um vestido laranja, com uma faixa de bolinhas na cintura e um efeito balonê interessante. Ele vestiu, sem ver mal algum. A saia do vestido era deliciosa para girar, girar, girar… O chão do quarto era de um vermelhão de quando a casa foi entregue pela prefeitura e era deliciosa para deslizar de chinelo como em pistas de patinação no gelo dos filmes americanos.

Por uma hora Júlio patinou, se imaginou como um atleta nas Olimpíadas de Inverno e depois como uma ricaça visitando Nova Iorque no inverno. Depois desse dia, sempre que estava sozinho, Júlio repetia a brincadeira. Nunca ninguém lhe disse que era proibido, mas sem questionar muito tomou aquela gozação como seu segredinho sujo.

Júlio passou a imitar as vilãs de novela, como Paola Bracho e Norminha. Até tentava mostrar para seus amigos seus gostos peculiares, e alguns davam risadas de suas tentativas de fazer um vilã fumante de cabelo de toalha.

Um dia seu pai chegou cedo do trabalho e o viu com a toalha verde enrolada na cabeça. Júlio era a Katy Perry e seus dois amigos eram espectadores. A mãe estava ocupada dentro de casa e os garotos no quintal riam sem preocupação. O pai de Júlio olhou aquilo com estranheza. “O que você tá fazendo com essa toalha na cabeça, moleque?”. Júlio travou com o tom do pai, sabia que tinha sido pego fazendo algo errado. O pai rapidamente foi até o garoto e tirou a toalha de sua cabeça. “Isso não é brincadeira”, disse, jogando o pano em cima da máquina de lavar.

Os garotos riram. “Seu pai te acha um viado!”. “Um o quê?”. Foi a primeira vez que Júlio ouviu a palavra “viado”, com i mesmo. Ele não entendeu e demoraria mais alguns anos até entender o que era aquela palavra.

Meses mais tarde o garoto descobriu os saltos altos da mãe e quis colocar. Andou pela casa batendo tamancos e sentiu-se bem. Descobriu seus batons e experimentou. Mais uma vez, sentiu-se bem. Cada símbolo de sua mãe que colocava em seu corpo o fazia sentir bem, embora sabendo que o que fazia era errado.

Toda vez que sentia medo, se lembrava de uma história. Na festa junina do bairro Júlio viu uma varinha mágica iluminada sendo vendida por um senhor. Pediu 5 reais ao pai que entregou de bom grado a grana. Comprou a varinha e brincou de Harry Potter a noite toda com seus amigos, por mais que quisesse mesmo era ser a Hermione.

Ao encostar na mesa do pai, que por sua vez estava acompanhado de seus amigos de bar, um deles logo disse “olha seu dinheiro era pra comprar varinha de luzinha, que coisa menina”. O pai, que a princípio nem tinha visto mal naquilo, o repreendeu “você tem seus brinquedos, por que precisa dessa coisa?”. Júlio olhou bem para sua varinha e não entendeu. Saiu correndo antes que pudesse ouvir qualquer outro comentário.

Júlio cresceu com essas respostas difusas, onde descobria prazer em coisas erradas e em coisas que nem parecia serem erradas, como uma varinha, mas eram. Aos poucos, seus segredinhos, que até compartilhava com alguns amigos mais próximos, ficaram realmente escondidos. Até dele mesmo.

Quando sua voz começou a engrossar e pêlos incômodos começaram a aparecer Júlio era uma rapaz bem menos feliz do que a criança fora um dia. Seus amigos garotos todos, sem exceção, haviam indo embora de sua vida. Só tinha amigas, que pareciam mais simpáticas a suas estranhezas, por mais que ainda não tivesse coragem e nem mesmo quisesse lembrar do tempo que usava um vestido laranja de balonê no quarto/loja de sua mãe.

Com seu pai só conversava o estritamente necessário, tinha medo de que seu jeito incomodasse; às vezes, escondido, ouvia o pai comentando que tinha algo errado com ele. Da mãe também ouviu que não deveria deixar a mão caída enquanto conversava, e esses comentários sobre coisas que ele não tinha controle se acumulavam.

À noite, quando o pai voltava do trabalho, só o via depois de seu banho, próximo do jantar. Sentava-se comportadamente e falava pouco, apenas sobre o dia na escola, muitas vezes aumentando qualquer animação que teve para gerar interesse nos pais.

Essa relação persistiu. Quando Júlio já sentia prazer em se tocar e sabia que seus desejos estavam direcionados mais aos garotos da turma, do que as garotas, neste ponto tinha ainda menos interesse em conversar com o pai. Até mesmo com a mãe.

Aos poucos Júlio foi desapegando, preferindo companhias femininas mais independentes e que não cobravam dele certa postura, certo jeito.

Aos 18 Júlio saiu de casa. Passou na faculdade e nunca pediu autorização ou dinheiro. Seus pais ficaram orgulhosos. Só não sabiam que Júlio só voltaria para aquela casa 10 anos depois.

Júlio virou Júlia, casada com Márcio. Seus pais ficaram chocados, choraram e gritaram. Júlia ficou impassível. Foda-se eles, eu me dei ao trabalho de vir comunicar minha mudança.

De fato, a relação dessa família nunca mais foi a mesma, e sob a vergonha da filha Júlia, pai e mãe se reclusaram e perguntaram-se até a morte: o que haviam feito de errado?

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Antonia Moreira
Pirata Cultural

Bixa travesty em demolição. Redatora e produtora cultural.