Rútilo nada: a solidão que não resplandece

Sandro Aragão
Pirata Cultural
Published in
8 min readMay 6, 2019

Esse texto terá como base o livro Rútilos (2003), de Hilda Hilst, para refletir sobre o sentimento de perda e solidão. Dessa forma, já deixo avisado que será um texto com caráter pessoal, pois parte, primeiro, do fato desse ser um dos livros que mais me afetam; e, segundo, por conta dos sentimentos vividos pelos personagens irem de encontro com a forma como eu também sinto, em parte, o mundo.

O livro conta a história de Lucius e Lucas. O primeiro é um homem de trinta e cinco anos, jornalista e filho de um banqueiro; o segundo é um jovem de vinte e cinco, estudante de história e poeta. Em meio a narrativa fragmentada, nós conhecemos o desenlaçar da paixão de Lucius por Lucas, que, segundo a voz do protagonista-narrador, é retribuida pelo jovem poeta. O pai, banqueiro, não aprova o romance dos dois, e em diversos momentos repreende Lucius pelo envolvimento.

Diante de todos os conflitos que permeiam o sentir dos dois personagens, Lucas acaba se suicidando, deixando como explicação do ato uma carta para Lucius.

Fotografia de José Ailson Nascimento. Instagram: instagram.com/um_ze/

Porém, antes de chegarmos ao final, comecemos pelo início da novela. Hilda Hilst abre sua história da seguinte forma:

Os sentimentos vastos não têm nome. Perdas, deslumbramentos, catástrofes do espírito, pesadelos da carne, os sentimentos vastos não têm boca, fundo de sortunez, mudo desvario, escuros enigmas habitados de vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpo morto” (p. 85).

Logo de início percebemos uma grande carga dramática na narrativa, descrita por Lucius ao se deparar com o corpo morto de Lucas. Para Lucius, as palavras deixam de dar conta do sentimento em seu peito frente a figura do amado sem vida, seus sentimentos deixam de ter nome e se tornam um enigma diante das experiências da vida. Era necessário, para ele, “inventar palavras, quebrá-las, recompô-las”, para assim conseguir se ajustar de forma mais digna diante de suas feridas.

Lucius, inflamado por sua angústia, se joga em cima do caixão levando sua boca em direção a de Lucas. O protagonista sente, de imediato, mãos o puxando, e lembra da presença de seus familiares, de sua filha, dos amigos. Diante de sua ação, ele ouve palavras como “constrangedor, louco, demente, absurdo, intolerável”, e reflete sobre como existem “Humanos” que são feitos “de fúria e desesperança”, e que vivem “apenas para nos fazer conhecer o nome da torpeza e da agonia” (p. 85), pessoas essas que ele nomeia como “supostos éticos Humanos” — essas figuras, inclusive, nos lembra, e muito, os conservadores que defendem a família em nosso país. O protagonista-narrador, na sucessão dos fragmentos, traz à memória seu pai:

“então anos de decência e de luta por água abaixo e eu um banqueiro, com que cara você acha que eu vou aparecer diante de meus amigos, ou você imagina que ninguém sabia, crápula, canalha, tua sórdida ligação, e esse moleque bonito era o namoradinho da minha neta, então vocês combinaram, seus crápulas, aquele crapulazinho namorou minha neta para poder ficar perto de você. gosta de cu, seu canalha? gosta de merda?” (p. 87).

Lucius, então, se volta para quando ainda não conhecia o seu próprio desejo. Para quando era desconhecido e estranho para si mesmo. Para quando viu Lucas pela primeira vez:

“Move-se. Olha os meus livros. O indicador e o médio alisam as lombadas. Vejo-o de costas agora, é sólido, crível, nada de angélico ou inefável, e um novo ou talvez um antigo e insuspeitado Lucius irrompe, dois escuros e contraditórios, aguçado e leves, violentos e sórdidos” (p. 88).

É interessante a forma como Lucius fala do aparecimento de seu desejo por Lucas, não o colocando como algo natural e calmo, mas sim como um conflito dentro de si que rompe com qualquer barreira antes imposta. É um desejo que se dá de forma ambivalente, trazendo a experiência do prazer e do nojo.

“Viscoso. Cintilante. Pela primeira vez o meu olhar encontrava a junção do nojo e da beleza. pela primeira vez, em toda a minha vida, eu, Lucius Kod, 35 anos, suguei o sexo de um homem. Deboche e clarão na lisura da boca” (p. 96).

A experiência do personagem, cabe dizer, me trouxe à memória o sentimento do primeiro beijo que dei em um rapaz: uma mistura de repulsa e prazer. Há, no personagem, assim como houve em mim, uma mudança no parâmetro daquilo que era tratado como belo. Para Lucius, antes de Lucas, a beleza do seu desejo por um homem era o nojo. Mas agora, aquilo que era nojo, se tornou beleza: “o que era antes de ti a beleza para mim? O que era o nojo? beleza…” (p. 90).

Fotografia de José Ailson Nascimento. Instagram: instagram.com/um_ze/

Lucius, então, termina sua narrativa e dá início a carta que Lucas deixou antes de se suicidar:

“Lucius,

os dois homens me tomaram como duas fomes, duas mandíbulas. Um clarão de dentes. Sorriam enquanto tiravam as camisas. Vagarosamente desabotoaram os botões. Cheguei a sorrir porque os gestos eram como que ensaiados, lentos… lentos.. idênticos” (p. 97).

Lucas inicia a carta falando de quando foi sequestrado por dois homens. Amarrado pelos pulsos, acreditando que tudo não se passava de uma brincadeira, pergunta aos dois o porquê e quem mandou. Nesse momento, Lucas, além de ser agredido fisicamente, é também estuprado pelos criminosos.

No decorrer da carta, enquanto descreve o momento em que foi violentado, o amado de Lucius reflete sobre sua existência, e constata a sua falta de significado no mundo: “a futilidade de todos os olhares que um dia recebi, a futilidade de todas as falas que um dia ouvi” (p. 98). Tudo o que até então lhe tinha acontecido parecia ter perdido o sentido, o contato com os outros para Lucas se reduz a um único significado: fútil.

“Antes da sombra, Lucius, quero dizer da dor de não ter sido igual a todos. Minhas alma velha buscava entendimento. Quero dizer da dor mas não sei dizer” (p. 98).

Lucas, então, expõe sua maior dor: a solidão. O sentimento de não-pertencimento permeia a sua vivência, como se o seu estar no mundo estivesse atravessado pelo desencaixe. Essa questão fica ainda mais evidente no parágrafo final do livro, como veremos um pouco mais adiante.

Após realizarem o “serviço”, os dois homens saem e o pai de Lucius entra no quarto: “vai ter tudo comigo, moço. Afaste-se de meu filho” (p. 98). Nesse momento da história a gente percebe o porquê de Lucius nomear as pessoas que estão contra seu romance com Lucas de “supostos éticos Humanos”, pois seu pai, o que mais reprimia a paixão do filho, tinha também desejos homoeróticos por Lucas.

“Posso te tocar um pouco, menino?

Eu estava de bruços e suspendi a cabeça para ver. A boca do teu pai tremia. Ele beijou minha boca ensaguentada. Eu sorri. De pena da volúpia” (p. 99).

Fotografia de José Ailson Nascimento. Instagram: instagram.com/um_ze/

Dessa forma, me parece que temos três solidões nessa narrativa. A de Lucius, que viveu encarcerado dentro de si por causa dos outros durante anos, e quando finalmente conseguiu fugir daquilo que o prendia, de sua oquidão, se viu abandonado por conta da morte de seu amante: “te seguindo sigo apenas a mim mesmo” (p. 95). Com a morte de Lucas, Lucius se perde de si mesmo. Lucius se vê novamente só.

A do banqueiro, pai de Lucius, que mais preso que o filho, só se permite externalizar seu desejo longe dos olhos da sociedade, a partir da dor do outro. Esse personagem cria uma mascara tão espessa que só descobrimos a outra parte da sua motivação de afastar Lucius de Lucas no fim do livro.

E, por último, e com quem realmente me identifico no livro, a de Lucas, que se dá a partir do sentimento de desencaixe frente aos outros.

Ao meu ver, o único momento em que Lucas se sentiu mais parte do mundo foi quando deu seu primeiro beijo em Lucius — e, aparentemente, seu primeiro beijo em alguém do mesmo sexo — descrito da seguinte forma:

“Quando nos beijamos naquela antiquíssima tarde, a consciência de estar beijando um homem foi quase intolerável, mas foi também um sol se adentrando na boca, e na luz azulada desse sol havia uma friez de água de fonte, uma diminuta entre as rochas, e beijei tua boca como qualquer homem beijaria a boca do riso, da volúpia, depois de anos de inocência e austeridade” (p. 99).

Para mim, esse é um dos fragmentos mais bonitos da novela, pois demonstra o sentimento de Lucas, quanto a descoberta do desejo por outro homem, de forma muito delicada. Eu consigo sentir, através da construção das palavras, a dimensão que esse primeiro beijo teve para o personagem.

Porém o romance entre os dois não foi o suficiente para que Lucas se desgarrasse da sua sensação de estrangeiro no mundo. Quando o jovem poeta é violentado pelos dois homens a mando do pai de Lucius, e vê sua vida ameaçada por querer viver um amor que não lhe era permitido, os sentidos — ou os não-sentidos — ganham uma dimensão que Lucas parece não suportar: “há um acúmulo de significados tomando conta das coisas neste instante, as coisas estão crescendo de significado. […] Por que tudo brilha e é mais? Apenas por que me despeço?” (p. 99). E Lucas, “até um dia. Na noite ou na luz”, não sobrevive a si mesmo: “Sabes por quê? Parodiando aquele outro: tudo o que é humano me foi estranho” (p. 103).

Por fim, um dos poemas que Lucas deixou junto com sua carta para Lucius:

(III)

Muros prisioneiros de seu próprio murar.

Campos de morte. Muros de medo.

Muros silvestres, de ramagens e ninhos:

Os meus muros de infância. Esfacelado.

Muros de água. Escuros. Tua palavra:

Um mosaico de vidro sobre o rosto altivo

Devo me permitir te repensar?

Arquivo pessoal

E a solidão, assim como os que impediram a vivencia do amor entre os dois rapazes, apertou o gatilho que fez Lucas se suicidar.

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Sandro Aragão
Pirata Cultural

Professor de Língua Portuguesa, doutorando em Teoria Literária, fotógrafo e mais algumas coisas que não dá para dizer em 160 caracteres.