Reflexões sobre a homossexualidade no Brasil

Mês do Orgulho LGBTI+ com Devassos no Paraíso

Sandro Aragão
Pirata Cultural
10 min readJun 3, 2019

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Esse texto será composto por retalhos de reflexões — e de partes do primeiro capítulo da minha dissertação — a partir do livro Devassos no Paraíso (2018), de João Silvério Trevisan. Irei comentar/expor da parte I a parte VIII do livro, a partir dos capítulos que são mais interessantes para pensar como o olhar sobre a relação entre pares foi sendo construída desde que os europeus pisaram pela primeira vez no Brasil.

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Bem, então comecemos: como já é do conhecimento da maioria, quando os Portugueses chegaram aqui — e invadiram — o primeiro contato com os índios foi de estranheza. Os europeus se utilizaram de diversos adjetivos para classificar os povos que já viviam no que futuramente se tornaria o Brasil: ingênuos, dóceis, selvagens. Porém, além desses adjetivos, houve outro que permeou a troca entre a cultura cristã e as culturas indígenas, e que se referiam a naturalização das relações homoeróticas em algumas tribos: devassidão pagã. Trevisan expõe diversas pesquisas do século XVII que relatam o amor entre iguais em diferentes tribos indígenas, além de apresentar registros sobre índios que assumiam funções/se travestiam de formas tidas como femininas —o contrário, de mulheres assumirem papéis tidos como masculinos, também ocorria — e, em geral, os integrantes da aldeia aceitavam sem grandes questões. Nessas pesquisas, aparentemente, o espanto se dava mais pela forma natural como os índios tratavam esse tipo de relação do que pelo ato em si, já que para os cristãos dessa época a sodomia /pecado nefando — forma como era chamado o pecado da homossexualidade/relação sexual através do anus — era considerado um dos piores delitos contra Deus.

Se é verdade que o comportamento dos indígenas causou espanto nos europeus, também é verdade que causou fascinação. Não atoa, conforme o tempo foi passando, os brasileiros ficaram conhecidos como devassos no paraíso, já que aqui, aparentemente, as leis de Deus eram mais flexíveis que nos países da Europa. Fato que comprova isso são os dados da Inquisição: o pecado de sodomia ficava em segundo lugar. Há histórias, inclusive, de relações sexuais entre mulheres ocorrida dentro do convento, e até mesmo — fato que acontece, bem como sabemos, até hoje — de padres incapazes de anularem seus desejos por outros homens, causando escândalo dentro da igreja.

Para tentar controlar a profanação brasileira, a Inquisição instaurou um clima de medo e tensão no país. Era necessário que todos se vigiassem, e caso alguém, mesmo sabendo de algum ato pecaminoso, deixasse de denunciar, também corria o risco de ser punido. Os Inquisitores pareciam gostar tanto de confissões detalhistas que trouxeram à superfície verdadeiras histórias de amor entre iguais, como no caso de Diogo Afonso e Fenão do Campo. Os dois mantiveram essa relação durante um ano, encontrando-se sempre que podiam para conversar e se amar. Porém essas “lindas histórias de amor” só se davam nos relatos, pois a forma como tratavam o pecado da homossexualidade não era tão romantizado assim. Nem mesmo uma grande paixão sensibilizava os inquisitores. Geralmente o tribunal ouvia as testemunhas de defesa e as de acusações para analisar o caso, porém, para os casos de sodomia, bastava uma testemunha de acusação para incriminar o acusado, pois “a punição desses casos era ‘de primeira necessidade numa república cristã’ ” (TREVISAN, p. 149).

Enfim, a Inquisição chegou ao fim e a ciência começou a ganhar espaço frente ao discurso religioso no século XIX. Nesse período foi criada a nomenclatura homossexualismo para designar os/as homens/mulheres que se relacionavam com pessoas do mesmo sexo. Dessa forma, a relação entre pares deixou de ser um pecado/crime e se tornou patologia.

Com independência recém-inaugurada, o Estado começou a intervir nas péssimas condições sanitárias do lar patriarcal no Brasil. Acreditava-se que a família já não era capaz de cuidar bem de seus filhos sozinha. Com isso, apareceu a figura do médico-higienista, que começou a entrar no interior das famílias com prescrições cientificas e cuidados mais eficazes do ponto de vista da medicina e da educação.

Com livre trânsito nesse espaço outrora impenetrável à ciência, o médico-higienista acabou impondo sua autoridade em vários níveis. Além do corpo, também as emoções e a sexualidade dos cidadãos passaram a sofrer interferência desse especialista, cujos padrões higiênicos visavam melhorar a raça e, assim, engrandecer a pátria (TREVISAN, p. 168).

Foi também nesse momento que o prazer passou a fazer parte do sexo, ao contrário do período colonial em que a igreja ditava que o ato sexual servia apenas para reprodução. Essa medida visava diminuir as chances de traição por parte do marido para a produção de filho mais saudáveis.

Distanciando-se do discurso religioso e se aproximando do discurso da ciência, os cidadãos deveriam obedecer não mais a Deus, mas sim ao médico, imperando nesse momento um padrão de normalidade. Isso fez com que se abrisse uma brecha para que a psiquiatria pudesse entrar em cena e aprimorar o controle da ciência sobre as práticas sexuais que se desviassem daquilo que era tido como “normal”.

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No Brasil, a partir do olhar patológico para a homossexualidade, iniciou-se um movimento de afirmar que a cura para esse “desvio sexual” se dava a partir de uma boa educação que fortalecesse o caráter, reiterasse a virilidade e ensinasse a respeitar a pátria, além de, claro, haver os tratamentos hormonais e as intervenções psiquiátricas. Durante o século XX, o médico Aldo Sinisgalli pedia que fosse criado um centro de tratamento (uma espécie de manicômio para “invertidos sexuais”) para homossexuais, pois assim qualquer pessoa que cometesse o ato seria internada para reabilitação. Porém, um ato curioso é que ele fazia a seguinte ressalva:

para os ‘invertidos honestos’; como ‘esses procuram dominar os seus instintos anormais e satisfazem seus anormais desejos com recato’, não merecem qualquer punição, já que não são responsáveis por sua doença; ainda assim, dizia ele, ‘o Estado poderia coagir esses indivíduos a tratamentos adequados (TREVISAN, p. 183).

Dessa forma, fica evidente duas coisas: primeiro que, por mais que a medicina tentasse dizer que a homossexualidade era uma patologia, ainda assim era olhada pelo viés da criminalidade, como se o indivíduo que tivesse desejo pelo mesmo sexo estivesse cometendo algum ato ilícito; segundo que o “problema” da homossexualidade consistia somente para aqueles que a expunham publicamente. Ou seja, o homossexual recatado, ou higienizado, que vivia socialmente sem agredir a norma, não era merecedor de punição alguma, ainda que, mesmo assim, necessitasse estar sob vigília socialmente.

Ser LGBT no Brasil era — e ainda é — tão problemático que até mesmo partidos progressistas tinham medo de serem vinculados a nossa causa, sendo tratada como uma reivindicação menor frente a luta do proletariado. Um caso interessante foi quando Lula, em 1989, concorreu à presidência. Seu vice, Fernando Gabeira (do Partido Verde), apoiava os direitos dos homossexuais, e isso causou tanto burburinho dentro do partido e entre seus aliados (como, por exemplo, PSB [Partido Socialista Brasileiro] e PCdoB [Partido Comunista do Brasil] )que o PT retirou Gabeira da chapa.

Durante as décadas passadas do século XX, houve um grande avanço na visibilidade dos gays (cabe dizer que as lésbicas ainda eram mais invisibilizadas nesse processo), principalmente dentro das artes. Em 1970 ocorreu o que Trevisan chama de “Boom Guei”, em que já aparecíamos de forma mais digna no cenário musical, em peças teatrais, na literatura. Porém, como que se viesse para jogar um balde de água fria nessa progressão, aparentemente, positiva, em 1980 houve a eclosão da Aids.

Essa doença ficou conhecida popularmente como o “câncer gay”, tendo em vista que os brasileiros acreditavam que sua disseminação se deu como uma punição divina à prática homossexual. Nesse momento, a aparente abertura quanto a aceitação homossexual se fechou, e voltou ao tempo em que o preconceito era esbravejado aos quatro cantos sem nenhum tipo de pudor, inclusive, com grande aceitação pública.

Com o aumento de infectados, em sua grande maioria homens gays, o discurso médico se assimilava muito com os dos mesmos profissionais do fim do século XIX e início do século XX: era necessário exilar os causadores da doença para proteger a população desse grande mal, já que os culpados se sentiam satisfeitos em difundir o HIV sem nenhum tipo de preocupação. Conforme expõe Trevisan (2018, p. 413):

O dr. Amato conclamava aos órgãos de saúde e higiene para agirem com ‘a ênfase devida’, ao invés de ‘apoiar irregularidades, como os atos sexuais anormais e os vícios’. Afinal, ‘aceitar que cada um tem o direito de fazer o que desejar com o próprio corpo é convicção plena de responsabilidade’, dizia ele. E terminava sugerindo ironicamente que se deveria passar o cuidado dos doentes para os defensores desse direito, ou seja, as ‘organizações de homossexuais, bissexuais e drogados’.

Discursos como esse ganhou eco durante a epidemia, tendo inclusive sugestões de castração, proibição da homossexualidade e fechamento de locais voltado para o público gay. Todo esse pânico criado em torno da doença fez com que saunas fossem fechadas, prostíbulos tivessem uma diminuição drástica de clientes e homens gays deixassem de se relacionar com outros homens para se casarem com mulheres, simulando assim uma vida heterossexual. Começou-se um movimento de negar os próprios desejos.

Também nesse período surgiu uma grande onda de violência contra homossexuais e travestis, sendo comum frases como “mate um homossexual”, “morte aos judeus, negros e gays” ou falas como “para mim, a melhor solução é matar. Não pode machucar não. Tem de eliminar” (TREVISAN, 2018, p. 416).

Mais para o fim do século XX, com o aumento de casos de HIV/Aids em mulheres heterossexuais e com a pressão de ativistas e portadores do vírus para criação de políticas públicas para diminuir o avanço da doença, o Governo Federal criou programas de prevenção e setores especializados para atender aos portadores do vírus, aumentando a sobrevida da população que convivia com o HIV/Aids, principalmente daqueles que pertenciam as camadas mais pobre da sociedade.

Controlado esse “mal” e o pânico da população, foram galgados alguns avanços quanto aos direitos homossexuais. Trevisan (2018, p. 431), nesse último capítulo, se pergunta: “pensando em termos de balanço final, o que de fato se ganhou?”. Talvez, de forma não muito esperançosa, ele responde:

Provavelmente a comunidade LGBT ficou mais próxima da integração à sociedade, podendo imitar seus padrões, inclusive de consumo. Mas como se trata de uma sociedade injusta por base, a liberdade conquistada não é o que se esperava: está sempre vigiada, em clima de permissividade controlada (TREVISAN, 2018, p. 432).

Nesse sentido, a estrutura repressiva, quando achar necessário, pode encontrar, ou inventar, motivos para retiradas dos direitos homossexuais já conquistados. Ao ver de Trevisan, por mais que geograficamente a população LGBT pareça maior e tenha mais visibilidade hoje do que já teve no passado, esses ganhos de direitos são bastante discutíveis. Inclusive porque essa “aceitação” por parte da sociedade só contribuiu para que o direito à diferença dentro da comunidade diminuísse, criando, assim, padrões de homossexuais que são socialmente aceitos, não só para sociedade, mas também dentro da cultura gay.

Com esse caminho que fiz, é possível perceber que desde a chegada dos europeus no Brasil há uma tentativa incessante de reprimir as práticas homossexuais, criando, dessa forma, uma estrutura na sociedade em que relações homoeróticas são proibidas/mal vistas quando se dão de forma exposta — se você “quiser” ser LGBTI+, tudo bem, mas longe dos olhos públicos. Inclusive, essa parece ser uma característica do brasileiro não só referente a homossexualidade, mas tudo que envolva a discussão sobre o sexo. Há a fama de que em nosso país o povo é muito foguento (principalmente se pegarmos como base as músicas/danças populares que fazem sucesso pelo país), mas quando é preciso falar abertamente sobre assuntos que abordem relações sexuais, sobre o corpo, sobre o desejo, “todos” se tornam grandes defensores da moral e dos bons costumes. Aliás, não é nem preciso ir muito longe. Se pegarmos como exemplo os casos de homens que votaram no Bolsonaro por serem contra os LGBTI+, contra os Estudos de Gênero (a famosa “ideologia de gênero”) e contra disciplinas que discutam sobre sexualidade nas escolas, mas que quando ninguém está vendo cedem aos seus desejos por outro homem nos banheiros públicos, nos motéis, nas ruas com garotos de programas e travestis que vivem da prostituição, percebemos a incoerência discursiva entre o que se diz e o que realmente se faz.

Outra questão que fica às claras é que durante a nossa história todos os avanços que tivemos até hoje só foram possíveis porque foram cooptados pelas estruturas da normalidade — posso estar caindo aqui numa demasiada generalização. O avanço dos nossos direitos é uma conquista sim, porém uma meia conquista, pois só nos permitem casar, só nos permitem adotar filhos, só nos permitem transitar um pouco mais expostos na rua a partir do momento em que essa ação não é mais vista como um perigo para a “normalidade” social.

Eu sei que meu texto não é muito positivo, mas me parece que o nosso passado foi/é, e ainda nosso presente, construído através da dor. Não fiz esse percurso para sermos pessimistas e/ou acharmos que nada irá mudar, pois, cooptado ou não, tivemos avanços quanto ao olhar da sociedade para a homossexualidade. Porém acredito que seja melhor lutarmos e nos orgulharmos de quem somos/e do que já fomos sabendo da nossa história enquanto grupo, mais embasados de nós mesmos, do que vivermos/lutarmos sem saber.

Por fim, é importante que continuemos na luta, principalmente no cenário atual, e fazendo o que fazemos de melhor: sorrir apesar da dor.

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Sandro Aragão
Pirata Cultural

Professor de Língua Portuguesa, doutorando em Teoria Literária, fotógrafo e mais algumas coisas que não dá para dizer em 160 caracteres.