Reflexões sobre o amor, o “outro” e o “eu”

Sandro Aragão
Pirata Cultural
Published in
6 min readOct 14, 2019

“O amor acontece nos desvios”. Ouvi essa frase em uma aula de filosofia e nunca mais a esqueci. Apesar de não saber se a frase pertence a algum teórico ou ao meu antigo professor, creio que ela sirva como um bom ponto de partida para as reflexões que buscarei fazer aqui.

Mas antes de discorrer sobre o assunto, quero deixar claro que a criação desse texto parte de dois pontos. O primeiro se refere a uma postagem que fiz recentemente no Medium, e que também fala sobre afeto, mas de um ponto de vista mais pessoal/empírico. O texto é o “Teríamos nós medo do amor?”. O segundo ponto tem a ver com uma disciplina que fiz semestre passado sobre o afeto na contemporaneidade — tendo como campo de estudo a literatura — , e que me proporcionou o contato com os livros teóricos que dão base a tudo que pretendo discutir aqui.

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Bem, voltando ao amor que acontece nos desvios, eu diria que hoje paira sobre as pessoas o medo de seguir por um caminho que as tire de um lugar aparentemente mais estável — e, consequentemente, mais “seguro”. Bauman diz que “amar se caracteriza sempre como um ato arriscado, perigoso, pois não conhecemos de antemão o resultado final das nossas experiências afetivas: só é possível nos preocuparmos com as consequências que podemos prever, e somente delas que podemos lutar para escapar”

Tanto Bauman como Byung-Chul Han (teórico coreano com quem tive contato recentemente, através da indicação de um amigo querido) irão afirmar que esse medo vem por influencia do pensamento capitalista, pois em uma sociedade capitalista não há espaço para uma relação afetiva em que haja aprofundamento, já que essa forma de relação pode gerar dor, e dor gera falta de produtividade. Ou seja, as pessoas buscam fugir de qualquer sentimento que gere tristeza, já que nos é constantemente ensinado que precisamos estar bem, que precisamos estar produtivos, o que nos faz, geralmente, não saber lidar com sentimentos negativos.

Outra questão que o pensamento capitalista cria é o de objetificação do “outro” (estou chamando aqui de “outro” aquele que não é o “eu”, pois a nomenclatura “outro” traz consigo a ideia de “desumanização”, já que esse “outro”é destituído da possibilidade de ser pessoa aos nossos olhos) e da valorização de si. Expondo de forma mais explicativa: a partir do momento que há o foco naquilo que eu, apenas eu, desejo e tenho prazer, o “outro” passa a ser um mero objeto para suprir os meus desejos. E quando falo desejo não estou apenas me referindo ao sexo. Falo do desejo como um todo: de afeto, de carinho, de toque, de presença. Dessa forma, esse “outro” acaba sendo como um“produto” que usamos conforme a nossa necessidade. A questão é que quando essa necessidade passa, ou esse “produto” dá defeito, a gente simplesmente descarta e troca por outro que pareça mais “interessante” no momento.

Por esse motivo, e alguns outros, Byung-Chul Han diz que “Nos últimos tempos tem-se propalado o fim do amor. Hoje, o amor estaria desaparecendo por causa da infinita liberdade de escolha, da multiplicidade de opções e da coerção de otimização. Num mundo de possibilidade ilimitadas, o amor não tem vez. […] Hoje está em curso algo que sufoca essencialmente o amor, bem mais do que a liberdade infinda ou as possibilidades ilimitadas. Não é apenas a oferta de outros outros que contribui para a crise do amor, mas a erosão do Outro, que por hora ocorre em todos os âmbitos da vida e anda cada vez mais de mãos dadas com a narcisificação do si-mesmo”.

Com essa citação, eu gostaria de seguir por dois caminhos:

a) Voltando a questão do medo de amar, além do temor referente ao sofrer que pode ocorrer com o término, e do não controle quanto a como terminara a relação amorosa, há também o medo de se ver no lugar de objeto. Veja bem, o indivíduo tem medo de se perceber no mesmo lugar em que coloca o “outro”, o que acaba por justificar que o movimento de objetificação é também para que haja um distanciamento seguro do “outro”, em que a possibilidade de dor, e consequentemente a possibilidade de sofrer por ser utilizado como objeto, diminua.

Renato Nunes Bittencourt (Doutor em Filosofia pela UFRJ), em seu artigo Do amor socrático ao amor líquido, diz que “na conjuntura capitalista, manifestamos então esse medo de amar plenamente alguém pelo fato de não queremos vir a ser usados no máximo das nossas capacidades e sermos excluídos posteriormente, quando a relação demonstrar os seus primeiros sinais de desgaste. Afinal, não queremos ser violentados afetivamente pelo desgosto da desilusão sentimental” (BITTENCOURT, 2012, p. 49).

Essa questão é interessante porque nos leva para um outro lugar: hoje o “amor” só nos serve caso nos traga sentimentos positivos. E, segundo Byung-Chul Han, esse olhar positivado para o amor é problemático. Se nós pensarmos que a paixão é caos, e o caos é algo que traz de forma intensa sentimentos bons e ruins, não temos como acreditar que o afeto/amor irá sempre nos trazer sentimentos positivos — que fique claro que não estou falando que é necessário aguentarmos situações abusivas ou que nos coloque em um lugar degradante, de humilhação. Me refiro, mais objetivamente, sobre conflitos que surgem nas relações pelos mais diversos motivos. É necessário que aprendamos a lidar também com a parte negativa que o sentimento de amor traz, com os conflitos, com as diferenças do “outro” — quando digo diferença, não é com o mesmo sentido do bordão usado pelos movimentos sociais em que diz que “devemos aceitar as diferenças”. Mas sim de entender que é necessário olhar essa diferença nos olhos, reconhecê-la como parte constitutiva do “outro” e aceitar estar/conviver junto com ela. Digo isso porque essa ilusão de que viver o amor só nos trará bons sentimentos faz com que não saibamos lidar com outros tipos de sensações — na verdade, geralmente, não sabemos lidar com sentimentos negativos em nenhum âmbito da nossa vida. Não à toa nos estão sempre dizendo para nos mantermos alegres, quando na verdade viver é também composto por outras nuances sentimentais. Pessoas que querem se manter sempre alegres acabam por não aprenderem a lidar com outras sensações, o que se torna nocivo para ela mesma. Porém, isso é outro assunto e não temos como intenção entrar nessa questão aqui.

b) Pensando que hoje há essa “narcisificação de si mesmo” e, consequentemente, a erosão do outro, se perde algo que é fundamental para que o amor ocorra: a alteridade. Para nos relacionarmos com o “outro” e permitirmos que nos vejamos dentro e com esse “outro”, é necessário que nós paremos de apagá-lo, que nós o vejamos e nos permitamos ser vistos, que nós mergulhemos nele, e ele em nós, para que juntos nós nos descubramos “outros”.

Renato Nunes Bittencourt diz que “a relação amorosa baseada na reciprocidade e no respeito desvela o espírito de alteridade entre duas pessoas, que se compreendem e se valorizam enquanto expressões subjetivas singulares. O respeito verdadeiro pelo ser amado não brota pelo cumprimento de um formalismo contratual, mas sim pelo cuidado para com ele, nascido do sentimento de alteridade, tal como pertinentemente abordado por Edgar Morin: ‘A autenticidade do amor não consiste em projetar nossa verdade sobre o outro e, finalmente, ver o outro exclusivamente segundo nossos olhos, mas sim de nos deixar contaminar pela verdade do outro’ ”.

Em diálogo com Renato Bittencourt, Octávio Paz diz que “o amor é uma tentativa de penetrar em outro ser, mas só pode ser realizado sob a condição de que a entrega seja mútua. Em todos os lugares é difícil este abandono de si mesmo; poucos coincidem na entrega e menos ainda conseguem transcender esta etapa possessiva e gozar o amor como o que realmente é: um descobrimento perpétuo, uma imersão nas águas da realidade e uma recriação constante”.

Em contraposição as duas citações que acabei de fazer, de acordo com Byung-Chul Han, hoje buscamos no “outro” a confirmação de nós mesmos. Porém, para amar, o movimento tem de ser o contrário, pois o “outro” não nos confirma, o “outro” nos possibilita nos vermos de outra forma.

“O amor […] atravessa a morte. É bem verdade que morremos no outro, mas dessa morte surge um retorno a si mesmo”. (HAN, p. 47).

Nesse sentido, voltando ao que já falamos acima, podemos dizer que o “outro” seria como um espelho em que, dentro de seus olhos, permite que nos vejamos outro. Mas não um espelho no sentido narcísico, em que queremos nos ver refletidos no outro, mas sim um espelho que nos aprofunda, que nos “mata” para que nasçamos novo, que nasçamos outro.

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Sandro Aragão
Pirata Cultural

Professor de Língua Portuguesa, doutorando em Teoria Literária, fotógrafo e mais algumas coisas que não dá para dizer em 160 caracteres.