se for, vá na paz

marcela teodoro
Pirata Cultural
Published in
4 min readJan 10, 2020

para além dos números: Bacurau (2019), filme de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um primor do cinema nacional pela sua forma e seu conteúdo. destaque especial para a atuação de Silvério Pereira, que interpretou o guerrilheiro queer Lunga.

Bacurau (2019) / Reprodução

mesmo que de forma não sinalizada e subentendida, a trama é dividida em três partes, que se conectam e dão sentido, mesmo que só lá no finalzinho, ao conceito proposto e ao enredo. então, para aqueles que esperam cenas rápidas, viradas simultâneas e agitação o tempo todo, é melhor segurar a emoção e seguir a trilha silenciosa.

em um primeiro momento, todas as personagens do filme têm suas vidas apresentadas ao espectador. a médica cansada de trabalhar em um lugar sem condições básicas para que seja possível exercer a profissão, o professor que se esforça para dar o melhor aos seus alunos, pais e mães trabalhadores integrais cansados, velhos em tempo de se aposentar, mas que não param de trabalhar, afinal, precisam continuar vivendo, o político que só dá as caras quando convém, o guerrilheiro que vive escondido, a cafetina e seus garotos e garotas de programa que estão ali para divertir e fazer uma grana.

e além das figuras que têm suas histórias emaranhadas ali, o vilarejo é, aos poucos, apresentado também. a dinâmica de vida dos moradores é peculiar e eles, desde o início, se mostram organizados e coesos para que suas pacatas vidas possam seguir por ali sem amolações ou interferências indesejadas.

depois da apresentação do vilarejo, o segundo ato começa. e aí as coisas mudam um pouco e isso pode ser notado desde a atuação das personagens até o clima geral em que o filme se transforma. no interior do sertão brasileiro, o povoado de Bacurau se vê cercado e apagado do mapa. para além da metáfora de que, assim como tantos rincões do país, o vilarejo é esquecido, Bacurau realmente fica sob ameaça e cerco fechado, invisível e sem sinal nos aparelhos eletrônicos que serviam de comunicação entre eles e o restante da região. o clima de suspense deixa tudo meio thrash-thriller e não dá pra prever muito bem como será a virada final do filme, e para alguns isso pode até suprimir as expectativas. mas, sério, não pare por aí.

Sonia Braga (no centro) em cena de Bacurau (Foto: Victor Jucá/Divulgação)

por fim o terceiro ato começa e o vilarejo se mostra organizado, coeso e pronto para a ação direta. invisibilizados e esquecidos, eles se mostram certos de que a única forma de sair da situação em que foram colocados é organizando toda a comunidade e, literalmente, elaborando a resistência. atacados por atiradores, que têm como passatempo utilizar suas armas e encontraram no vilarejo um alvo perfeito para suas brincadeiras bélicas sádicas, o povo de Bacurau se organiza para garantir sua sobrevivência.

Silvero Pereira como Lunga em Bacurau (Foto: Victor Jucá/Divulgação)

Bacurau é o Brasil que todo mundo ignora. as personagens construídas são aquelas invisibilizadas. a preta, o gordo, a velha, a travesti, o garoto de programa, a família pobre. é a rotina nua e crua de uma gente que é esquecida. deve ser por isso que muita gente estranhou o filme. em nenhum momento protagonizou quem sempre foi protagonista. o protagonismo ali foi a vida real, seja ela considerada utópica ou distópica.

Bacurau é resistência, é ação direta. Bacurau é o retrato de uma realidade visceral, que não precisa de alegorias e meias palavras. o diálogo, em sua forma não-brutal, que dá voz por meio de frases e ações de paz e amor, não tem vez no filme, as palavras de ordem vazias tampouco. o vilarejo entendeu seu inimigo violento e se organizou para driblá-lo, sem meias palavras ou distrações, na mesma moeda, afinal, era a única forma de derrotá-lo.
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o hype já passou, mas assista Bacurau. e se assistiu e ainda não entendeu, assista de novo. vale a pena encarar o solo quente, árido e silencioso para chegar ao vilarejo. e se for, vá na paz.

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