Sintonia e a barbárie nossa de cada dia

Reflexões da série da Netflix

Nathan Gonçalves
Pirata Cultural
3 min readAug 21, 2019

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Sintonia (2019), disponível na Netflix

Vivemos uma realidade de mudança nas relações entre Estado e sociedade. O Estado, embebido na lógica neoliberal, se afasta de seu papel de regulador da vida social, de garantidor de direitos, de gerador de bem-estar. Nas demandas que ele deveria cumprir, surgem outros atores para respondê-las — o mercado, o terceiro setor, as igrejas e… o tráfico.

Nessa dura realidade, a juventude sente o peso do desemprego. Mas lá no morro, no recôndito mais abandonado, onde o poder público só aparece enquanto polícia, onde os políticos vão em anos de eleição fazer promessas, a igreja e o tráfico se fazem fortemente presentes. E muitas vezes, conjuntamente, como nos casos de crimes de intolerância religiosa perpetrados contra terreiros por “traficantes de Jesus”.

Estamos diante de uma juventude que, ao pensar no futuro, só enxerga incertezas. O tráfico oferece proteção, renda, status, sentimento de pertencimento, propósito, numa sociedade onde o Estado deixa de oferecer educação, profissionalização, lazer, cultura, esporte, saúde e assistência social.

Na luta contra o tráfico, nós, enquanto sociedade civil ou poder público, estamos perdendo. E isso é fruto de escolhas políticas, de um projeto de governo que é antipopular, que se alinha à interesses externos às necessidades reais da população para agradar seus investidores privados.

Na guerra às drogas, quem ganha é a guerra — e seus patrocinadores.

A série Sintonia (2019) da parceria Kondzilla e Netflix, apresenta parte dessa realidade vivida na periferia da cidade de São Paulo. Ela trata da sintonia entre os três personagens principais — Doni, Rita e Nando — que buscam, cada um à sua maneira, encontrar seus caminhos.

Doni, ou MC Doni, é um jovem de condição financeira ligeiramente melhor que seus amigos. De família evangélica, seu sonho é ser um cantor de funk. Rita, impedida de seguir sua vida de trambiqueira, vai buscar na igreja a resposta a seus sofrimentos. E Nando, que não parece ter muita escolha na vida, já chefe de uma família que depende inteiramente dele, mergulha cada vez mais no mundo do crime. Os três amigos, quase irmãos, seguem caminhos que se entrecruzam, cada um se virando pra realizar seus corre.

A violência permeia suas vivências: o desemprego, a vizinha barraqueira, os meninos do movimento, a polícia corrupta, o racismo estrutural, a lógica mercantil.

O maior destaque vai para a ambientação da série. Os lugares, os sons e, principalmente, os atores são incrivelmente naturais. Em vários momentos, não parece haver uma câmera ali, dada a naturalidade das atuações — e talvez até mesmo das situações. E isso tudo sem cair nos clichês. Cada personagem mostra uma faceta dessa realidade — o sonho de crescer com o funk, a fuga dos sofrimentos pela igreja e o duro mundo do tráfico.

É importante pontuar o funk como mediador das relações que ali acontecem, sendo tanto motivo de desavenças de uma família tradicional que não quer ver seu filho sendo funkeiro, como também, através dos bailes de rua, momento de descontração e sociabilidade.

Com uma estética impecável, atuações excelentes e boa trilha sonora, Sintonia trata de uma das faces da realidade — e da barbárie — que vivemos. Na fictícia Vila Áurea, o tráfico é a lei. Mesmo assim, os jovens que nela crescem são capazes de sonhar.

E talvez seja essa capacidade de sonhar — com dias melhores, com uma vida melhor, digna de ser vivida — que seja a grande mensagem da série pras periferias Brasil afora. Nesse Brasil, desgovernado por criminosos e milicianos, o tráfico vai continuar aliciando jovens que não encontram um lugar no sistema feito para os excluir.

Na lógica do encarceramento em massa, milhares de jovens negros irão continuar lotando o sistema carcerário, e adolescentes, cumprindo medida de internação, lotando o sistema socioeducativo. Na lógica do extermínio, o genocídio da juventude negra e periférica segue a todo vapor. A essa juventude, o futuro não é mais como era antigamente, como dizia Renato Russo.

Anos atrás, esses jovens sonharam em entrar na faculdade, talvez até sair do país. Hoje, muitos só querem viver.

A linha entre realidade e ficção é tênue, a série é feita para os moradores de periferia serem capazes de se identificar, de encontrar ali a vivência da sua própria quebrada. E a talvez a maior mensagem que fica para esses garotos, da ficção para a realidade, é não deixarem de sonhar.

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Nathan Gonçalves
Pirata Cultural

Sobrevivendo à quarentena com jogos, desenhos e histórias em quadrinhos. Mais textos disponíveis em: https://bosquecultural.blogspot.com/