Sobre referências culturais LGBT+

E a não-necessidade da centralidade da homofobia

Nathan Gonçalves
Pirata Cultural
5 min readMay 10, 2019

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Minha primeira referência LGBT+ na cultura pop, se me lembro bem, foi o James, de Pokémon. Não há nada até agora que oficialize que ele era um homem LGBT+, mas tinha algo nele que era diferente, e que me atraía. Talvez eram as poses que ele fazia segurando uma rosa vermelha. Ou talvez o fato de, nos cômicos disfarces da Equipe Rocket, por várias vezes ele protagonizar uma identidade feminina, enquanto a Jessie era a figura masculina.

Também posso pontuar, como referências daquela época, o Shun, de Cavaleiros do Zodíaco, eternamente zoado de viado pelos meninos. Tirado a armadura rosa, existiam outras características em Shun que o contrastava perante outros cavaleiros (todos belos exemplos de heterossexuais): era racional, delicado, evitava resolver conflitos através de lutas e dependia dos outros para resolver seus problemas. Longe da fórmula dos animes shounen de um protagonista que tira poder sabe-se lá de onde, mete a porrada em todo mundo e salva o dia.

Embora Shun possa ser considerado um ícone LGBT+ da cultura pop, ele não o é oficialmente. E esse cenário, felizmente, está mudando. Hoje, os desenhos conseguem tratar de expressões de gênero e sexualidade diversos com certa naturalidade e — o mais importante pra mim — sem precisar ficar explicando essas questões na história.

É o caso de She-Ra (a nova versão), da Netflix. Saiu a segunda temporada recentemente e (ALERTA DE SPOILER) no último episódio Adora e Cintilante procuram por Arqueiro, que decidiu de uma hora pra outra se afastar da Rebelião. Ao chegarem numa mansão onde está o Arqueiro, elas conhecem os pais do menino: dois homens! É, com certeza, a cena que mais marcou nesse 2019 até agora.

Foram alguns segundos de silêncio, boca entreaberta, olhos arregalados, olhando pra tela e esperando alguma explicação, algum comentário, algum espanto, alguém que ficasse tão surpreso quanto eu. Nada. Simplesmente trataram com normalidade. Com a normalidade que deveria ser tratada dois homens formarem um casal e ter filhos. E é exatamente esse tratamento que eu desejo ver se tratando de personagens LGBT+ na cultura pop.

No caso de Steven Universe, Garnet é uma fusão de duas gems, Rubi e Safira, que se fundem “sem querer querendo”. Elas chocam as gems que estão em volta, que até então nunca tinham visto uma fusão de gems diferentes e, ainda por cima, de hierarquias tão distintas — Rubi é uma soldado, Safira é da nobreza. Quando Garnet é acolhida por Rose Quartz, que se emociona ao ver a fusão, ela pergunta: “O que eu sou?” E Rose responde: “Sem mais perguntas. Nunca mais questione isso… você é a resposta!”

É verdade que aparecerá ainda uma ou outra gem que ficará incomodada com o fato de Garnet ser uma fusão, mas nada que ganhe centralidade durante o desenho. Garnet simplesmente é o resultado do amor entre dois seres, sendo assim, feita de amor (e mais forte que você…).

Saindo dos desenhos, uma outra referência que posso citar é da série (também da Netflix) Amizade Dolorida, que trata de um homem gay que vira ajudante de uma amiga da época do ensino médio. A questão é que essa amiga trabalha como dominatrix, então você imagine as situações em que o protagonista se insere… A homofobia aqui é tratada de uma forma, a meu ver, mais branda e mais criativa.

Há uma cena em que ambos estão atendendo um cliente que sente prazer em ser humilhado, particularmente quanto ao tamanho do pênis dele. Nosso homem gay é questionado então se este era o menor pinto que ele já tinha visto, afinal, ele é um homem gay, já deve ter visto vários. Essa ideia do gay como alguém que transa com meio mundo — que para mim se caracteriza como uma ideia homofóbica — aparece outras vezes na série, sem que isso também vire algo central no enredo, que é mais criativo e mais interessante.

Por último, cito a série Special (mais uma vez, do Netflix). Ela já chama atenção por tratar de homem que, além de gay, é uma pessoa com deficiência (disability person). Para Ryan, nosso protagonista, ser deficiente apresenta mais barreias do que ser gay. O relacionamento com a mãe, por exemplo, gira em torno da autonomia de Ryan de ser capaz de fazer as coisas por si próprio, já que a mãe o trata, não por maldade, como alguém incapaz, ou como uma criança.

E é exatamente a deficiência, que ele esconde por um bom tempo no trabalho, a causa maior de preconceito, e não a sexualidade. A “saída do armário” de Ryan é se assumir como uma pessoa que possui paralisia cerebral, e enfrenta preconceitos dentro da própria comunidade LGBT+ por conta disso.

Não me entenda mal, de forma alguma acho que a homofobia é um assunto que deva ser ignorado. A questão é que ela já está bastante visível pra nós, não é mesmo? Temos um homofóbico na presidência do Brasil, e outro na dos EUA, e outro na Rússia… O discurso de ódio contra pessoas LGBT+ tem espaço na sociedade, de forma que reproduzi-lo pode te gerar milhões de seguidores e um apelido de “mito”.

Eu sei que a sociedade é homofóbica. Eu sei que existem inúmeras pessoas que acham que somos abominações, pervertidos, doentes e que vamos arder no inferno. E isso não precisa ser esfregado na minha cara a todo momento. Eu não preciso ser lembrado dos problemas de assumir uma identidade LGBT+ quando entro na internet pra me entreter. Na verdade, eu muitas vezes estou buscando exatamente o contrário.

E isso porque inúmeras vezes, quando uma obra ficcional trata a questão LGBT+ com centralidade para o preconceito sofrido por essa população, há finais tristes, há “pranto e ranger de dentes”. E é claro que isso tem efeitos (não estou afirmando que são propositais) bem ruins em nós. Será que não teremos felicidade? Será que nunca seremos tratados como pessoas normais? Será que não merecemos finais felizes? Será que nossa vida gira em torno do ódio que as pessoas nutrem por nós?

Ao assistir uma série, desenho ou filme que tenha personagens LGBT+ ou temática LGBT+, eu espero ver mais do que esteriótipos e homofobia. A nossa realidade não trata apenas da homofobia, existem várias outras questões que perpassam a vida de uma pessoa LGBT+ (e que nem sempre tem a ver com a sexualidade ou identidade de gênero dela).

Ver a identidade LBGT+ ser tratada de forma natural, sem que a história gire em torno disso, ver personagens LGBT+ felizes, fugindo de esteriótipos (muitas vezes homofóbicos), levando vidas que até então só personagens heterossexuais tinham o direito de viver, me dá ânimo, me revigora, me permite sonhar. Talvez seja só um mecanismo de fuga; talvez seja uma busca por inspiração; muito provavelmente é um pouco dos dois.

A gente vive um momento muito difícil, muito intolerante à diversidade. Confesso que não consigo acompanhar mais o estado de coisas em que se encontra o Brasil com a mesma energia de antes. Eu estou em busca de histórias que me mostrem outras perspectivas de vida; que se tornem minhas referências. E talvez isso nos dê a energia necessária para resistir num mundo que pode se apresentar tão hostil: ir atrás de histórias felizes.

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Nathan Gonçalves
Pirata Cultural

Sobrevivendo à quarentena com jogos, desenhos e histórias em quadrinhos. Mais textos disponíveis em: https://bosquecultural.blogspot.com/