Um Espetáculo de Hipermasculinidade

Alberto Luis Araújo Silva Filho
Pirata Cultural
Published in
6 min readFeb 27, 2020

A crise política mundial é um reflexo de uma crise das masculinidades ainda incipiente. Compreender os incômodos dos homens que sempre dominaram o mundo com as transformações da contemporaneidade é compreender boa parte da virulência das mobilizações em tempos de Whatsapp e fake News.

O senador Cid Gomes avança com uma retroescavadeira para deter supostos PMs “grevistas”; policiais amotinados atacam outros policiais em serviço no mesmo estado da cena. As milícias e facções se proliferam, marcadas pela irmandade e pela fraternidade masculinas. Já em um reality show de repercussão nacional, um participante diz que “tem que legalizar o porte de armas” para fazer frente a uma moça que cantava em um dos cômodos da casa em que os participantes ficam confinados.

O presidente da República e os seus filhos dia após dia fazem declarações machistas — a mais recente contra uma jornalista da Folha de São Paulo — e na história recente foram recorrentes as declarações homofóbicas vindas do poder central, como a de que famílias homo afetivas são lixo ou a de que o Brasil não pode ser o país do turismo gay, além, é claro, de discursos de ódio incitando abertamente a violência contra essa população em anos passados por parte do atual mandatário[1]. E de maneira geral, enquanto as taxas de criminalidade tem uma redução, a quantidade de feminicidios bate recorde.

Ao Norte, os EUA possuem como hóspede na Casa Branca um bilionário de extrema direita que pouco antes das eleições teve vídeos onde atacava a dignidade feminina sendo revelados. Tanto ele quanto seus seguidores usam de estereótipos machistas clássicos tais quais de “louca” ou “descontrolada” para desqualificar mulheres da oposição em cargos públicos, como a democrata Nancy Pelosi ou figuras em ascensão como a esquerdista Alexandria Ocasio-Cortez. Lá também, clínicas de aborto são atacadas e leis duríssimas que atacam os direitos reprodutivos são aprovadas na federação, bem como políticas a favor das mulheres transexuais, herdadas da era Obama, são revogadas da noite para o dia.

Na Espanha, o Vox (corrente política emergente) milita abertamente para revogar leis de proteção às mulheres e contra a violência de gênero, alegando que elas criminalizam os cidadãos do sexo masculino, em um país em que as feministas ganham espaço e relevância inclusive nos cargos de governo. Já na Bolívia, mulheres indígenas são arrastadas pela rua por conta do histórico de apoio ao reformismo de Morales que até pouco tempo ocupava o poder. Nos crescentes fóruns da internet, ataques às minorias são incentivados por celibatários involuntários e frustrados.

Nos dois lados da linha do Equador, uma reação está em curso: ela se volta contra as indesejáveis, ou seja, todas aquelas que ameaçam a estabilidade patriarcal. Daniel Welzer-Lang, sociólogo norte-americano, dizia que a “construção do masculino” se dá pela “dominação das mulheres” e pela “homofobia”[2]. Nada mais verdadeiro.

A masculinidade para se constituir precisa de permanente afirmação. A sua essência é precária e os seus significados voláteis. Quando estamos tratando de certo tipo de masculinidade hegemônica (branca, rica e heterossexual) a coisa piora de figura. Vemos o quão necessário é que ela se imponha, mesmo que pelo uso da agressão física, moral e psicológica. Faz parte da sua atividade a espetacularização, o grito da superioridade, o domínio político e econômico.

Somente com a virilidade exacerbada é que os problemas da nação serão ordenados e resolvidos, em todas as esferas. À direita e à esquerda, sexismo e demais discriminações marcam presença. Mas é no conservadorismo que elas fazem à tônica, ditam as regras, são a agenda programática. Só existe uma determinada retórica para certos lideres em ascensão porque ela é marcada, em primeira instância, pelo abuso da toxicidade com relação a todos aqueles que não são o homem ativo, provedor, proprietário, branco e autoritário. E lógico: do “bem”.

Os grandes empresários e executivos[3] são o suprassumo desse modelo institucional de exclusão que se reproduz na política agressiva da direita em nossos tempos (e de um certo “progressismo” que deseja “testosterona”). Mas há também os serviçais do braço armado do Estado, os componentes da repressão, muitos deles advindos da classe trabalhadora que creem que a militarização da vida social, comandada novamente por homens, é a via para educar as crianças e por os indivíduos moralmente perturbados na linha.

É da classe trabalhadora também que vem o grosso dos que frequentam os templos do evangelismo importado que se difunde entre nós. Modelos de “masculinidade cristã” pregados por pastores bolsonaristas nesses locais tendem a reforçar a sobreposição de um “masculino” bem singular sobre demais tipos de existência, não admitindo dissidências sexuais e de gênero. É a base social perfeita para a admiração do “mito”, do “pai” e do “salvador”: o colonizador e redentor que tem ocupado páginas e mais páginas da historiografia, responsável por atrocidades como a guerra, a fome coletiva e a exploração econômica desenfreada em muitas regiões. É da exalação de masculinidades restritivas que se faz a natureza do capitalismo liberal.

Essa masculinidade em altitude máxima está sendo expressa e sem analisa-la não podemos compreender o momento atual. Há resistências, mas a norma é avassaladora. Muitos são aqueles que tem procurado ajuda, terapias, rodas de conversa. Buscam se “desconstruir”. Infelizmente, não parecem fazer cócegas em termos quantitativos na população masculina ainda guiada por padrões de silenciamento, ainda resistente às mudanças advindas das transformações contemporâneas. Ainda tem sido muito difícil para boa parte dos homens heterossexuais aceitarem que as suas companheiras tem a liberdade de permanecer ou não no relacionamento. Tem sido árduo também para boa parte desse grupo dividir tarefas e seguir normas de respeito. Além do mais, não é fácil para quem sempre esteve no topo se responsabilizar por aquilo que acontece em seu próprio lar e no seu entorno.

Resguardados obviamente os devidos recortes de raça e classe, esse arquétipo de “machão” se eleva em grau substantivo quando chegamos à esfera da política na qual a masculinidade hegemônica se expressa em medidas, legislações e decretos que exponencializam a necropolítica que tudo sabe e tudo vê. Na raiva contra o valor da igualdade está um homem inconformado com “politicamente correto” e muitas vezes mulheres inebriadas com o masculinismo.

Homens ainda são maioria nos espaços de representação e controle, mas também são maioria da população carcerária, são os que mais morrem e mais matam, os que mais adoecem e os que mais sofrem acidentes. O padrão ideal do que é ser “macho” é nocivo para a sociedade como um conjunto que se vê refém das pulsões fálicas, mas é nocivo principalmente para todos aqueles que se identificam com o gênero masculino. Acostumamo-nos com a associação entre a masculinidade e a toxicidade porque os exemplos diários de ação, em micro e macro espaços, são de homens cometendo atitudes vis, em que prevalece o desrespeito e o preconceito. Desde garotos, tem sido assim educados e socializados. Para não expressarem emoções, para serem agressivos.

Isso se reflete em uma cultura deprimente em que os homens atacam e são atacados, reproduzindo comportamentos violentos onde quer que estejam, com honrosas exceções. Transformar a educação de gênero é transformar o poder. Por isso há tanto incômodo por parte dos porta-vozes da reação. Uma sociedade em que valores feministas são ensinados na escola é uma sociedade mais igualitária. Nela não há espaço para o triste show de homens fugindo da sua própria fragilidade. Nela tal fragilidade dificilmente precisa ser aplaudida. Pois as turbulências políticas de nosso tempo são turbulências de gênero.

Teresina, 28/02/2020.

[1] Além de outra dúzia de episódios de misoginia, marcadamente contra a deputada Maria do Rosário (PT-RS), que não vale a pena aqui enumerar.

[2] WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista Estudos Feministas, vol. 9, n.2, Florianópolis, 2001.

[3] Ver o trabalho de Raewyn Connell e Rebecca Pearse

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Alberto Luis Araújo Silva Filho
Pirata Cultural

Politólogo e Sociólogo por vocação, Cinéfilo e Leitor de Romances nas horas vagas, Poeta nos momentos de delírio e Perplexo com o mundo a cada segundo.