Que bom te ver aqui de novo

PITACO NOVO
PITACO NOVO
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4 min readNov 23, 2018

Por Valsui Júnior

Esses dias um amigo me perguntou quando foi a primeira vez que eu usei um computador na minha vida. Essa pergunta me fez vasculhar a mente, e acabei lembrando que havia sido em algum data por volta de 1998.

Desde então, eu conheci pessoas incríveis, tive romances memoráveis e não me incomodaria se colocassem meu cérebro em um HD e transferissem para a Internet (afinal eu já moro aqui e além do mais não teria que pagar o aluguel).

Um ano depois do meu primeiro contato com o universo cibernético, Nora Ephron lançaria um clássico melodramático de sessão da tarde, o blockbuster “Mensagem para Você”, com o casal queridinho Tom Hanks e Meg Ryan. Eu amava esse filme quando criança. Foi um daqueles clássicos hollywoodianos que moldou (bem negativamente, mais tarde eu descobriria) meu pensamento sobre relacionamentos amorosos.

Uma década mais tarde, mal sabia eu, estaria eu mesmo protagonizando o casal em frente de uma tela de computador — com muito menos firulas amorosas, claro. Sendo gay, pouco antes de me assumir para a minha família e me aventurando em descobertas sexuais. Como se vê, nada parecido com uma comédia romântica de Nora Ephron.

Parando para pensar hoje em dia, confesso que foi uma época estranha. Entrava-se em salas de bate-papo. Se o papo rolasse, as características batessem, você ia para o MSN ou para o Skype. Foi numa dessas que conheci Marcelo (nome fictício, obviamente). Ficávamos noite adentro conversando. Não era coisa de sexo, eram coisas banais da vida mesmo. Um flerte aqui e ali, mas nunca avançamos além disso.

Quem não lembra da caixa de mensagens do AOL?

Marcelo estava tentando vestibular para Ciências Sociais. Na época, eu oscilava, não sabia se fazia Arquitetura ou seguia a carreira familiar fazendo Direito — no fim nenhum dos dois romances deu certo. Falávamos muito sobre escolhas profissionais, sobre família e demais banalidades diárias. Acabou que nunca encontrei Marcelo pessoalmente.

Três anos depois, após ter terminado um relacionamento, entro no Skype numa dessas noites solitárias em que se busca de alguém para conversar. Eis que eu encontro Marcelo online. Ele me manda um tímido ‘oi’, e voltamos a papear. Marcelo agora está no segundo ano de Ciências Sociais. Gosta muito do curso. Pelo papo, vejo que ele mudou bastante. Até mesmo arriscamos falar algo em francês. Mas não nos encontramos, não deu liga.

A vida seguiu. Nunca mais havia ouvido falar sobre o Marcelo, que a essa altura já devia ter concluído o curso. Para ser sincero, Marcelo nunca mais se quer passou pela minha mente. Restaram-me poucas informações e lembranças muito pontuais sobre nossas conversas. Era de Leão, falava francês, gostava de carnaval.

Quatro anos mais tarde, depois de mais um fim de relacionamento, faço uma conta no Scruff , um app de relacionamento gay. Recebo uma mensagem. Um rosto desconhecido. Começamos a conversar, rola uma química como se já nos conhecêssemos de outras quebradas. Pergunto seu nome. Ele me fala “Marcelo”, mas no mundo existem tantos Marcelos que eu nem me dei conta. Falo meu nome para ele, que por uma maldição do destino não é nada comum. “Instigante”, ele retruca. Fico com aquilo na cabeça.

Curioso, perguntei mais sobre a vida de Marcelo. Terminou o curso de Ciências Sociais, é professor. Está agora na segunda graduação. Algo me instiga nessa conversa, e não é meu nome. Procuro no Google, Facebook, LinkedIn. Descubro. Era aquele Marcelo! Fuçando bem acabo descobrindo que Marcelo casou, separou, e se adentrou nesse cosmo imaginário que é o mundo de aplicativos de relacionamento LGBT.

Vamos ser sinceros: esse filme é a definição de ‘guilty pleasure’.

Mas já não é o mesmo Marcelo. Não é o Marcelo que via em frente a uma tela de computador, em uma sala de bate-papo ou em um programa de mensagens instantâneas. Desta vez é um Marcelo na palma da minha mão, em um aplicativo de relacionamentos, num smartphone.

No fim das contas, nunca cheguei a conhecer Marcelo, a não ser por esses aparatos tecnológicos de nossos tempos. Marcelo não passa de interações momentâneas de diferentes períodos da minha vida. Marcelo é, na verdade, um fluxo de informações que troca de roupagem de tempos em tempos. Chego até a me questionar: “Será que o Marcelo realmente existe ou é só um bot muito bem elaborado pelo Google?”. Bobagem, me advirto. A essa altura pouco importa.

“Que bom te ver aqui de novo, Marcelo”, eu penso. Mesmo que eu não necessariamente te ‘veja’ e que o ‘aqui’ nunca seja palpável. Isso tudo já não é sinal de que estamos vivos? Quem sabe um dia a gente se encontra e resolva essa trama bem mais entrelaçada do que o filme água-com-açúcar da Nora Ephron que é a vida. Ou não.

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