Sobre brincar de casinha

PITACO NOVO
PITACO NOVO
Published in
3 min readJun 27, 2020
Imagem: YouTube/ Palácio Aquático da Ariel da Princesas Disney Pequena Sereia -Brinquedonovelinhas com bonecas)

Por Valsui Júnior

Quando eu era criança, ganhei dos meus pais uma casinha da Pequena Sereia. Tenho uma memória afetiva muito grande com relação a ela. Chamava meus vizinhos para brincar, criava uma família de ursos de pelúcia nela e, basicamente, meu maior sonho era poder viver lá dentro para sempre. Era algo que eu queria desde sempre: poder ter uma casinha e poder cuidar dela da melhor maneira possível.

Talvez seja meu ascendente em Câncer, talvez seja minha lua na casa 4, mas é fato que anos mais tarde eu vim a descobrir que isso era algo muito incomum para crianças da minha idade. Ou melhor, para meninos. Meninos gostam de brincar com action figures, meninos gostam de aventuras que tragam adrenalina, meninos gostam de velocidade, guerra e competição.

Mas tinha algo estranho comigo. Eu não gostava nem me sentia à vontade com nenhuma dessas coisas. Para ser bem sincero, até causavam alguma ojeriza em mim. No colégio, durante as aulas de Educação Física, preferia atividades em que a competição era preterida pelo entretenimento de compartilhar alguma atividade com colegas. E isso, de fato, foi moldando minha personalidade ao longo dos anos.

O que, de certa forma, também explicava minha preferência pelas amizades femininas ao invés das masculinas. Quando entrei no ensino médio, isso foi se tornando cada vez mais óbvio para mim e para as pessoas que estavam ao meu redor. Afinal, é durante essa fase que somos debutantes no mundo público e começamos a ter melhor percepção do mundo ao nosso redor.

Quando pensava em escolher uma carreira, nenhuma que envolvesse o mundo corporativo me atraía, por causa daquela estranha ideia de que esse universo era um tanto competitivo. Na busca por arquétipos, encontrei nas artes e nas ciências humanas um gosto que também me definiria. Passei a estudar filosofia e ciências sociais por conta própria, porque aquilo de certa forma também explicava quem eu era.

Longe ainda dos estudos de gênero, mas mais próximo de encontrar uma sexualidade a qual era orientado, finalmente encontrei algumas respostas para as dúvidas que eu tinha desde que era criança e que me faziam tão diferente dos outros meninos. Na sociedade em que eu nasci, os homens eram criados não para “ter uma casinha” ou para cuidar dela, não para ter uma família, não para demonstrar afeto ou qualquer outro tipo de sentimento, mas sim para serem líderes, conquistar posses, desafiar limites, serem disruptivos, visionários, pioneiros, descobridores.

Às mulheres, era sim delegado o papel de protetoras do lar, cuidadoras, generosas, ligadas às artes e humanidades, intuitivas, afeiçoadas a relações, à decoração da casa, ao recheio à “estrutura” que o arquétipo masculino oferecia. Portanto, era estranho um homem brincar de casinha, afinal, era isso que teoricamente a mulher fazia — e era treinada desde cedo para fazer. Não foi à toa que a primeira pergunta que minha mãe me fez quando assumi minha sexualidade era se eu gostaria de eventualmente transicionar meu sexo. Porque demonstrar afeto, especialmente entre homens, é algo que só uma “mulher” desejaria fazer.

Agradeço muito aos meus pais por aquela casinha da Pequena Sereia. Não porque era um presente que passei horas a brincar, mas porque hoje em dia enxergo que aquilo era um símbolo do que eu poderia ser e que me foi dado quando era criança. Não, não foi a casinha da Pequena Sereia que definiu minha orientação sexual. Se, eventualmente, a mim não tivesse sido dada essa casinha, eu acharia um jeito de me encontrar no amplo espectro da sexualidade humana.

Mas é fato: essa casinha hoje me traz várias reflexões, sobre os papéis de gênero na sociedade, sobre os arquétipos que são construídos no momento que nascemos em torno do nosso sexo biológico, e sobre esse momento tão único da história da humanidade em que figuras de autoridade ainda questionam essas verdades que em algum momento já foram absolutas. Mas independente disso, sinto que é preciso dizer: meninos podem brincar de casinha, sim, e vão continuar brincando.

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