Sobre incertezas num ano de pós-verdade

Em contrapartida ao cenário mundial de afirmações ideológicas cada vez mais incisivas, a 32ª Bienal de São Paulo trouxe como tema a Incerteza Viva

PITACO NOVO
PITACO NOVO
5 min readDec 31, 2016

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A preponderante obra “Dois Pesos, Duas Medidas”, da mineira Lis Myrrha (Foto; Valsui Júnior)

Por Valsui Júnior

O Dicionário Oxford titulou, neste último ano de 2016, a expressão ‘pós-verdade’ (post-truth) como palavra do ano. De acordo com a definição, pós-verdade é “relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais”. De fato, em um ano que os ânimos esquentaram por conta do referendo britânico quanto à saída do Reino Unido da União Europeia, as eleições acirradas nos Estados Unidos e, mais especificamente no Brasil, o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff, a palavra não era mais do que apropriada — bastava acessar qualquer caixa de comentários em postagens no Facebook.

Ironicamente (ou não), o tema desta 32ª edição da Bienal de São Paulo foi o antônimo do que parecíamos viver num contexto mundial: Incerteza Viva. Sob uma extensa curadoria de artistas renomados de dentro e fora do Brasil, como Jochen Volz, Sofía Olascoaga e Júlia Rebouças, a bienal deste ano pretendeu tratar de um tema um tanto quanto fluido: as noções de incerteza da arte contemporânea. Tudo começava quando se chegava no pavilhão do Museu de Arte Moderna, no Parque Ibirapuera. Um visitante mais desatento, como foi meu caso, provavelmente imaginaria que a entrada custaria algum valor, mesmo que simbólico. Porém, não. A entrada era totalmente gratuita.

As portas do Museu, abertas sem qualquer restrição, se confundia com a paisagem de jovens e adolescentes que frequentam as tardes paulistas no parque. Este foi o primeiro estranhamento. Logo em seguida, a obra do artista polonês Franz Krajcberg, que reside em Viçosa, na Bahia, chamava atenção por representar uma espécie da amálgama entre o tribal e o ecológico, algo um tanto curioso para um espectador mais atento. Os troncos de árvores com altura de cerca de quatro metros diferenciavam-se entre si, ora por manterem uma unidade, ora por desfaze-la.

Não me contive e segui uma simpática mediadora que havia começado a excursão com um dos grupos. Ela nos convidava a um olhar mais primitivo para aqueles troncos, que os analisássemos de cima abaixo. A princípio algo um tanto trivial, mas que a medida que adentrávamos aquela floresta do pavilhão, mais profunda a experiência sensorial se tornava. Em determinado momento, todos do grupo estavam fixos, olhando para os troncos. Algo bastante espiritual, como um ritual xamânico perdido na selva de pedra que é São Paulo em tempos de tablets e smartphones.

Após esta incursão, fomos convidados a analisar o círculo-temporal Back to the Fields (Volta ao Campo), da inglesa Ruth Ewan. Um apanhado de sementes, ferraduras, plantas e demais acessórios que pareciam ser medievais. O círculo convidava o visitante a analisar mais atentamente o que cada um daqueles objetos significava e porquê estavam dispostos daquela maneira. Como numa roda zodiacal, cada objeto daquela circunferência fazia referência a um dia dos 365 dias do calendário gregoriano — e traçava uma relação antiga e, mais uma vez, primitiva entre a natureza e o tempo, duas significantes indissociáveis em tempos medievais. Além disso, era possível traçar uma relação de cada quarto da circunferência com as quatro estações do ano. Nossa análise foi longe — poderíamos traçar muitos daqueles adereços com os doze signos zodiacais da astrologia ocidental. A artista desenhou um verdadeiro antro aos amantes de Cronos, o deus do tempo.

Adiante, adentramos na obra da sul-africana Tracey Rose, A Dream Deferred (Um Sonho Adiado), uma referência ao poema de Langston Hughes em meados dos anos 1920. As obras, que nada mais eram do que bolas com mil e um elementos, poderiam passar despercebidas por um visitante mais desatento que quiçá as acharia um tanto sem conteúdo. No entanto, cada uma delas fazia referência a desintegração de ideias defendidos na construção de uma “nova” África do Sul. Enquanto que numa das bolas podíamos notar várias prescrições médicas, fazendo alusão ao vírus HIV, em outras víamos um amontoado de periódicos, mostrando a fusão cultural do país.

Chegando à metade do pavilhão, enxergávamos a gigantesca obra da mineira Laís Myrrha, “Dois Pesos, Duas Medidas”. Um verdadeiro amontoado de materiais empilhados em duas torres — uma fazendo referência a construções indígenas (cipó, madeira e palha) e outra a edificações típicas brasileiras (tijolo, cimento, ferro, vidro e cano). Era possível notar visualmente que a primeira torre tinha um aspecto mais leve, enquanto que a segunda era um tanto pesado. Uma curiosidade: perguntei à mediadora se toda a torre era preenchida pelo material da superfície. Felizmente, não.

A obra interativa de Rita Ponce foi uma das mais visitadas desta edição da Bienal por mesclar os sentidos dos visitantes (Foto: Fundação Bienal de São Paulo/Divulgação)

Por fim, a obra de destaque da mediação era da mexicana Rita Ponce de León, En forma de nosotros (Na forma de nós mesmos). Era uma das obras mais disputadas pelos visitantes, em especial das crianças, por mesclar a interatividade tanto da audição quanto do tato de quem a percorria. Totalmente feita de barro, a obra interativa levava o visitante a se contornar nos vazios enquanto ouvia poesias que faziam alusão justamente àqueles espaços. E mais uma vez a natureza estava embutida no contexto. Cada poesia tinha como referência as jornadas vividas pelas sementes no seu contato com a terra até as suas germinações.

Apesar de toda a aura de democratização da Bienal, um dos comentários que mais me chamou atenção durante a visita foi a de um artista que acreditava que, embora o espaço fosse aberto e de entrada franca, corria o risco de não chamar a atenção do verdadeiro espectador daquelas obras de arte: o espectador leigo. De fato, cada uma das peças continha uma interpretação única, que não cabia necessariamente à mediação contornar, e, sim, ao próprio visitante. Como já propunha o tema da Bienal, uma exposição de incertezas constantes incrustadas num cenário um tanto quanto afirmativo e agressivo que viveu o último ano de 2016. O desafio? Traçar pontos de exclamações em meio a tantas interrogações e reticências.

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