Melhorar a assistência estudantil ao aluno trabalhador deve ser prioridade

Camila Souza
Pitaco
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3 min readJul 2, 2018

Número elevado de evasões devido à dupla jornada precisa ser discutido no ambiente acadêmico

São 8h30min da manhã. A porta da sala de aula já está fechando àqueles que não conseguiram chegar no horário. À tarde, o dia é preenchido pelo estágio. Engana-se quem pensa que há sempre descanso aos finais de semana. Para Ketlyn Damaceno, o trabalho ocorria de segunda a segunda. Poucos eram os momentos de lazer para a estudante de Biblioteconomia da UFRGS, que se formou neste ano e precisou equilibrar o trabalho com os estudos. Permanecer na faculdade foi difícil; porém, conseguiu concluí-la em seis anos e meio, fazendo terapia ao longo do percurso. “Faltava aula ou chegava depois, porque trabalhava de noite no dia anterior. Pensei em trancar, mas busquei ajuda psicológica para prosseguir”, relata.

Em nossa universidade, essa é a situação de muitos estudantes, que precisam conciliar a rotina de trabalho e estudo sem a assistência estudantil adequada. A UFRGS ainda não se deu conta de que a realidade não é mais a mesma de 10 anos atrás. A universidade surgiu de modo elitista e excludente, mas isso vem mudando com o avanço na política de cotas. A assistência estudantil deve ser uma pauta prioritária para ser discutida na comunidade acadêmica, pois há uma parcela significativa de estudantes que se sustentam sozinhos e que necessitam de amparo psicológico para se adaptarem a seus cursos. Um estudo divulgado em 2012 pelo instituto DataPopular revelou que o perfil mudou, já que sete em cada dez estudantes universitários brasileiros trabalham e movimentam, com seu próprio salário, mais de 84 milhões de reais ao ano. A pesquisa também afirmou que, atualmente, cerca de 1,2 milhões de estudantes se consideram chefes de família.

Nesse sentido, é urgente mudar a forma de atuação dos educadores para garantir o atendimento às necessidades específicas desse grupo. Falta sensibilidade de professores e diretores para compreenderem que muitos alunos têm dupla jornada de esforço, dividida entre a sala de aula e o local de trabalho. Uma mudança comportamental deve ser implementada, que estimule a colaboração do corpo discente para que haja maior flexibilidade e preparo para atender a esse novo contexto político e social. A falta de recursos e acolhimento é um dos motivos que justifica as desistências: a UFRGS não reajusta as bolsas destinadas aos alunos com benefício do programa de assistência estudantil desde 2010, ou seja, não se adequa à inflação e ao aumento do custo de vida. Em 2017, as universidades brasileiras tiveram o menor repasse de verbas em sete anos, conforme aponta pesquisa divulgada neste ano pelo G1. Entre as 63 instituições federais, 90% operam com perdas reais se comparadas ao ano de 2013 e, nesse período, o repasse total garantido pelo MEC reduziu 28,5%.

Foi justamente o elevado número de evasões que despertou a curiosidade de Juliana Lamers, técnica em assuntos educacionais da Faculdade de Odontologia da UFRGS. Sua pesquisa de mestrado, realizada em 2013, comprova a necessidade de se repensar o modelo educacional e de se elaborarem estratégias para melhorar a qualidade de vida do aluno trabalhador. Lamers analisou as razões que levavam os alunos do curso de Odontologia Noturno à reprovação. Destacaram-se como principais dificuldades a conciliação com o trabalho, a questão de adaptação à universidade, a organização das disciplinas e a didática adotada em sala de aula.

O desenvolvimento de políticas sistemáticas de acompanhamento, com projetos de extensão em que monitores promovam reforço acadêmico das disciplinas que apresentam elevado percentual de reprovações, é uma alternativa viável para ajudar os estudantes com dificuldade. A partir da pesquisa de Juliana, o curso de Odontologia adotou uma política de acolhimento, oferecendo oficinas de reforço e maior flexibilização de horários. Os resultados ilustram a importância da assistência estudantil: em 2015, ano em que se introduziram as mudanças, o número de evasão diminuiu em 80% comparado ao ano anterior.

A UFRGS precisa melhorar a assistência ao estudante trabalhador. O reajuste das bolsas é necessário, porque ninguém consegue sobreviver, em 2018, com apenas 400 reais mensais. A taxa elevada de desistências na universidade se deve, em grande parte, à falta de soluções para que as aulas sejam mais atrativas e que facilitem a rotina dos alunos — só na Biblioteconomia, o número de desistências é de 40%, conforme pesquisa divulgada pela própria universidade em 2010. Enquanto a assistência estudantil não for pauta prioritária, será difícil que esses novos alunos — que antes não tinham a oportunidade de ingressar no ensino superior — concluam a graduação. Estudar não deve ser uma dificuldade, e sim algo prazeroso, o que se torna impossível quando há descaso com questões fundamentais.

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As palavras libertam, transformam e esclarecem. Simplesmente expressam o meu existir (e resistir).