PITIÚ TEXTUAL ENTREVISTA

Beckinha: ‘Para mim nunca foi difícil atuar, foi uma coisa que nasceu comigo’

Uma das figuras mais carismáticas do circuito artístico em Manaus, Socorro Langbeck, a Beckinha, relembra trajetória no teatro e fala da paixão pelo cinema e muito mais

Pitiú Textual das Artes
Pitiú Textual das Artes

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Beckinha, anos setenta. Foto © Acervo pessoal de Ismael Farias

Socorro Langbeck, a Beckinha, é uma dessas figuras que dispensam maiores apresentações. E não se trata aqui de um mero clichê: ao longo de mais de 40 anos ela transita pelo circuito artístico de Manaus, dos palcos e bastidores às salas de aulas e oficinas, de tal forma que artistas de diferentes gerações tiveram contato com a artista de modos expansivos e de risada contagiante, que frequentemente aparece entre as histórias de suas vivências nos cenários da cultura, da política e do dia a dia da capital amazonense.

Em entrevista realizada no início de 2019, antes da pandemia de Covid-19, Beckinha contou um pouco dessas histórias, recordando desde o período, por assim dizer, “romântico”, do teatro amazonense. “Ninguém fazia teatro por causa de dinheiro”, comentou a artista. “A gente fazia porque a gente gostava, porque era legal, porque era bom fazer teatro”.

No bate-papo informal com os editores do Pitiú Textual das Artes, Beckinha recorda também dos primeiros passos na formação teatral, no Colégio Estadual Dom Pedro II, até as experiências com seu grupo teatral, O Grito, e outros grupos em Manaus; das vivências que teve no circuito artístico de Rio de Janeiro e São Paulo, nos anos oitenta; e da paixão pelo cinema, que herdou do pai e que guiou sua pesquisa de mestrado na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), nos anos oitenta, sobre o Cinema Marginal de nomes como Rogério Sganzerla.

“Nunca vi uma figura com uma inteligência daquela, privilegiado. Era um cara que tinha muita qualidade, mas não foi muito reconhecido”, recorda ela sobre Sganzerla, que conheceu e entrevistou para o trabalho.

Beckinha fala ainda de sua vida após o retorno para Manaus, quando passou a atuar nas salas de aula em vez dos palcos — mas sem nunca abandonar o apreço pela arte. “Os alunos na Nilton Lins acho que gostavam de mim porque eu botava o teatro em tudo”, lembra.

E a artista antecipou algo de seus projetos atuais, entre eles um projeto sobre Nelson Rodrigues, ao lado do irmão, Geraldo Langbeck, ambos aficionados pelo dramaturgo carioca; e o de um livro reunindo as histórias de vida que, na sua voz e na sua escrita, tornam-se narrativas insólitas e hilárias: “Toda vez que eu contava minhas histórias para as pessoas, elas diziam, ‘Maninha, essas coisas só acontecem contigo!’. E o nome do livro é esse”.

Foto © Acervo pessoal

FRANCISCO RIDER — Beckinha, lembro que, nos anos oitenta, quando conheci você com O Grito (Grupo de Teatro do Oprimido, muito ativo nos anos oitenta, em Manaus), você falava muito da sua experiência de ver peças de teatro em São Paulo e Rio de Janeiro. Você pode falar um pouco dessa experiência, que é tão rica para o artista? Que espetáculos emblemáticos você viu?

BECKINHA — Aqui em Manaus não tinha escola, era uma vez ou outra para alguém vir e dar um curso. Era superdifícil. Eu ia sempre para o Rio e São Paulo para ver as peças, principalmente no final do ano, quando ficava tudo baratinho. Passavam aquelas kombis (a chamada Campanha das Kombis, oficialmente Campanha de Popularização do Teatro, que visava levar espetáculos a preços mais acessíveis à população, tendo começado no Rio de Janeiro e São Paulo, nos anos setenta) vendendo. Eu vi “Bent”, de Martin Sherman (São Paulo, em 1981, com direção de Roberto Vignati, com Kito Jungueira, Ricardo Brat, Ricardo Petraglia e outros), vi um monte de peças ótimas, um monte.

Montagem de 1981 da peça “Bent”, de Martin Sherman, em São Paulo. Direção de Roberto Vignati, com Kito Junqueira e Ricardo Petraglia no elenco. Foto © Site Todo Teatro Carioca

FR — “Gota d’água”, “Ópera do Malandro”, lembro que você falou que viu.

JONY CLAY BORGES — Que época era essa, Beckinha? Eram os anos setenta, ou oitenta?

B — Isso era nos setenta. Nos oitenta foi com O Grito, que foi começo dos oitenta, de 1979 até 1984, quando fui para São Paulo.

FR — E como foi a experiência de ver Bibi Ferreira fazendo “Gota d’água”? Lembro que você falou que ficou deslumbrada de ver.

B — A mulher tinha uma força, né? Até hoje, antes dela morrer, assisti a um show dela que Geraldo (Langbeck, irmão de Beckinha, também artista cênico) comprou, ela cantando não tinha voz de velha. Impressionante, parecia uma pessoa jovem cantando.

FR — O espetáculo causou impacto…

B — Lindo demais. Eu vi Tônia Carrero, vi Fernanda Montenegro…

Bibi Ferreira e Roberto Bonfim em montagem de “Gota D’água” (1975), de Chico Buarque e Paulo Pontes, com direção de Gianni Ratto. Foto © Site Heloisa Tolipan

FR — Fazendo o quê, a Tônia? Lembra?

B — Era uma peça paulista em que ela fazia uma participação, uma história sobre modelos, uma comédia. Com Fernanda Montenegro vi “Fedra”.

FR — Com a direção daquele autor do Teatro do Oprimido, Augusto Boal. Não era a direção dele? Com o Edson Celulari?

B — Isso mesmo.

FR — Sim, lembro desse momento. A filha dela estava em cena, Fernanda Torres?

B — Sim.

Fernanda Montenegro e Edson Celulari em “Fedra” (1986), de Racine, com direção de Augusto Boal. Foto © site Todo Teatro Carioca

FR — Exatamente, acho que era a direção do Augusto Boal.

B — Por falar em Augusto Boal, morreu Domingos de Oliveira. Era incrível.

FR — Ah, ele morreu recentemente. Você viu o quê dele, lembra?

B — Ah, vi muita coisa. Sou muito fã dele, desde quando fez “Todas as mulheres do mundo” (1966), com a Leila Diniz. Depois teve “Edu Coração de Ouro” (1968). Ele casava com as mulheres, elas passavam a ser deusas dele, e ele passava a fazer uma série de histórias sempre com aquela atriz.

Cartaz do filme “Todas as Mulheres do Mundo”, ca. 1966 , de Jaguar. Reprodução fotográfica de autoria desconhecida. Disponível na Enciclopédia Itaú Cultural

FR — No teatro você viu coisas dele?

B — No teatro não vi nada, ele era mais do cinema.

FR — Mas ele dirigiria também teatro, não?

B — Dirigia, mas não vi nada.

FR — Tive um amigo (Frederico Bustamante) que trabalhou com ele fazendo teatro. Ele que postou no Facebook que ele tinha falecido, até com uma foto que ele tinha feito com o Domingos… E o Teatro, você achava mais político naquele momento? Porque tinha censura, não?

B — Nos anos setenta era mais pesado, até 1979 foi bem pesado, eu acho. Em 1979 já entrou o (João) Figueiredo, houve a abertura, a partir daí as coisas começaram a respirar. Mas nos anos setenta, por exemplo, na época em que entrei na UA, na época ainda era UA (Universidade do Amazonas, que nos anos 1990 passou a ser conhecida como Universidade Federal do Amazonas — Ufam), a gente ainda tinha matérias censuradas, não podia colocar no jornalzinho da faculdade. Já pensaste? E teve um show de poesias censuradas, era polícia batendo lá, realmente folclórico. Mas a gente recebia, quando ia montar peça, tinha de mandar muito tempo antes três textos, e eles iam cortando o que eles achavam que não era para colocar. E ficava incompreensível. Uma vez aconteceu isso com uma peça minha; fui fazer em Itacoatiara ela todinha, escondida, mas fiz.

JCB — Na época da faculdade você já atuava firme no teatro, Beckinha? E escrevia peças e tudo mais? Já tinha o grupo, não?

B — Eu tinha o meu grupo, e também fazia parte do Grupo de Teatro da Universidade, tinha a Bolsa Arte Trabalho. Chamava-se Gruta — Grupo Universitário de Teatro do Amazonas, do Marcos José, do Rui Brito, os ‘comunistão’ lá. Pegamos altas carreiras, altos sustos, na época (risos).

JCB — E vocês apresentavam peças próprias? E tinha outras peças?

B — Não, a gente apresentava muito Brecht. Ele (Marcos José) adorava, passamos dois anos estudando Brecht. Eu enchia o saco do Mário, um amigo meu, que dizia que eu andava empurrando ele, dizendo “Porque Brecht isso, porque Brecht aquilo’. E ele, “P… que pariu, para de falar em Brecht!” (risos). Também foi goela adentro, dois anos de Brecht, fizemos várias coisas dele.

FR — O Marcos José, não? Ele era professor da Universidade?

B — Era. Ele era o diretor mais legal. Era muito bom diretor, mas era muito doido também. Tipo assim, adorava ensaiar, mas não gostava de apresentar. Não sei se foi porque ele pegou uns ‘fecha’ da Polícia Federal, uma época, e ficou meio assim, não querendo apresentar. “Não tá bom? Cês não estão gostando?”. “Estou adorando”. “Ótimo, vamos ensaiar outro”. “Não, cara, vamos apresentar, a gente fez isso para apresentar”. Ele não queria apresentar, era muita doideira.

JCB — E como era de público, Beckinha? Vocês apresentavam onde, na universidade mesmo?

B — Sim, a gente ia atrás e apresentava sem ele. Na Universidade, nos bairros, principalmente nos bairros. Tinha bairro onde não tinha luz elétrica, a gente colocava dois lampiões a gás, um de um lado, outro de outro, a gente no meio e o público em volta, todo mundo sentado no chão. Uma vez, quando o Coroado era invasão, a gente foi apresentar uma peça chamada “Esdras”, uma peça do Paulinho, o Paulo Graça (1952-1998), que foi professor da Ufam também. A gente apresentou e o Guto Rodrigues fazia um delegado. Os ‘cabocão’ piraram com o Guto, acharam que ele era delegado mesmo, uma coisa muito doida. Depois a polícia mesmo chegou e deu uma corrida na gente — a gente correndo levando os cenários da peça. Eram essas coisas que eu achava legal e de que até hoje sinto muita saudade, essas situações que a gente vivia no teatro. Apresentar em cima de caminhão, no solão do meio-dia, molecada toda na rua. Se eu não tivesse 20 anos, não teria esse pique. Fazíamos muita peça infantil, sempre gostei muito de teatro infantil.

JCB — Como foi a tua experiência com a Ednelza Sahdo, com o Pintando o Sete?

B — Ah, foi legal…

JCB — Foi nos anos setenta, não?

FR — Não, foi nos oitenta.

B — Foi começo dos anos oitenta, o Rodrigo (Langbeck, filho de Beckinha) era bebezinho.

FR — Eu participei várias vezes ali nos sábados.

B — Eu e Ednelza éramos funcionárias de lá. O diretor era um comunistão que não fazia nada, sabe? E a Ednelza saiu para a rua, ela conhecia muita gente, muitos empresários, e conseguiu material para a gente botar as crianças para pintar, e maquiagem. E tinha uma banda de forró que era nossa amiga, que tocava lá, os palhaços iam para lá…

FR — Até cachê, não é?

B — Até cachezinho para os artistas, não era muito, mas a gente segurava. E apresentava em cima do caminhão, tudo era em cima do caminhão, o palco, a gente saía e ia para o caminhão. Eu era funcionária do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), e tinha um projeto que se chamava Mobral Cultural, que tinha um caminhão-biblioteca. Ele se abria e virava palco. Eu era doida para ter um caminhão daqueles! Nunca consegui, mas pelo menos num caminhão normal a gente fez muito o Pintando o Sete! (risos) Era muito legal a coisa de apresentar em cima do caminhão, com o público ali em volta.

FR — Era ali atrás do Teatro Amazonas, nos fundos.

B — Sim, ali em cima.

JCB — Do lado da Eduardo Ribeiro?

FR — Não, em cima. Na saída dos camarins do Teatro, a entrada dos fundos do Teatro. Era ali naquela calçada que o carro ficava estacionado. Montava ali e o público ficava ao redor.

B — E tinha vários pontos, porque a gente botava os palhaços — como tinha muitos, e eu tinha uma peça de palhaços, você chegou a ver?

FR — Não.

B — Era “A menina que perdeu o gato enquanto dançava frevo na Terça-Feira de Carnaval” (texto de Marcos Apolinário Santana).

FR — Você lembra que eu fiz vários personagens? Fiz a Velha… (risos)

B — Sim! Essa peça ficou uns quatro anos rolando. Era superlegal, era uma peça de mamulengos a que eu assisti, e o autor me deu o texto de mamulengos. “E eu posso fazer com gente?”. E ele, “Faz o que tu quiser, eu quero é que façam minha peça!”. E eu fiz com gente mesmo, mas os ataques eram de mamulengo, porrada mesmo, aquela coisa de cair e levantar, bem coisa de circo. Foi a época também em que aprendi a dançar frevo, eu fazia um número de frevo, dançava com os alunos. Eu só entrava nessa hora. E o Álvaro Braga dizia, “A Beckinha fez uma peça só para ela dançar frevo!” (risos).

Luiza Monteiro e William Cunha em “A Menina que Perdeu o Gato Enquanto Dançava o Frevo numa Quarta-Feira de Carnaval” (1982), de Marcos Apolinário Santana, com direção de Ângelo Monteiro

FR — Era muito legal mesmo…

B — Era muito doido, e as crianças adoravam, porque era aquele Carnaval do Recife, aquela coisa bem maluca. As crianças se perdem no Carnaval…

FR — Tinha a Velha, tinha o Gato, tinha um palhaço…

B — O Gato era podre, era o vilão da história, era um leso! (risos)

FR — Tinha o Guarda também…

B — Tinha um cabeludo também, diz-que era a Alma Descabelada! (risos) Era o Hermano (esposo da Beckinha, já falecido), uma alma imensa, porque o Hermano tinha mais de dois metros de altura, magricelo, com aquela peruca, era uma marmota! (risos). A gente se divertia muito fazendo. Uma coisa que eu sinto falta, que não vejo mais no teatro hoje em dia, é aquela coisa de fazer teatro pelo teatro. Ninguém fazia teatro por causa de dinheiro.

FR — Nem pela fama, não, Beckinha?

B — Não. A gente fazia porque a gente gostava, porque era legal, porque era bom fazer teatro. Pegava as coisas da gente e levava para o teatro. Uma vez um penicão da vovó — a vovó tinha um penicão desse tamanho, daqueles portugueses, daí o Nonato (Tavares) viu o penicão lá em casa. A gente estava fazendo “Sem raízes”, do Plínio Valério, uma peça que fala sobre o interior do Amazonas, e ele pegou o penicão da vovó e levou para o teatro. Quando a mamãe (Dona Aglair) foi ver a peça ela conheceu! “Até o penico da avó levam pro teatro!” (risos). E numa outra peça, o personagem tinha de entrar de samba-canção, mas a gente não achou cueca samba-canção, pegamos do Langbeckão (pai de Beckinha) e levamos! A mamãe, “Até as cuecas, não têm respeito!” (risos, Beckinha chora de tanto rir). Tudo que a gente tinha na casa da gente a gente levava, o trabalho, a atuação era o mais importante. A gente não ligava muito para cenário, essas coisas, a gente curtia muito a coisa do fazer, de criar os personagens. A gente fazia muito laboratório, a gente era bem Augusto Boal.

JCB — O Nonato comentou com a gente isso na entrevista dele, que tinha essa coisa da pesquisa, que as pessoas liam bastante, liam os autores, todo mundo conhecia.

B — E se trocavam livros entre os artistas.

FR — Não se tinha internet na época, né?

B — Eu era presidente da Federação de Teatro, na época era a Feteam, de 1977 até 1979, eu acho. Eu arranjava coisas, no Rio, eu conhecia as pessoas, de livros e de cursos. Por exemplo, um curso tinha cinco vagas, cada grupo apresentava uma pessoa para fazer o curso. Na época havia um sistema de grupo em Manaus, as pessoas só trabalhavam em grupos.

FR — Não era uma coisa individual, isso é verdade.

B — Dificilmente as pessoas se juntavam para fazer uma peça. Era o Grupo Tal. Então pegava um de cada grupo e mandava para o Rio, mandava para Brasília, para fazer curso. Porque não tinha, a gente não tinha curso, a gente morria de inveja do Pará, que desde o começo dos anos sessenta tinha curso superior de Teatro, e a gente aqui, nada. (A Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará-UFPA foi criada em 1962.)

JCB — Eles têm um teatro antigaço, o Barradas, não?

B — Sim, e muita gente boa. Então a gente ia muito também para festival, nos anos setenta tinha muito festival. Tinha o Festival de Campina Grande (PB), tinha o Mambembão (projeto criado pelo Serviço Nacional de Teatro, foi desenvolvido de 1978 a 1985 e de 1989 a 1990), que era Rio, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, e tinha espetáculos em todos os quatro estados. Quem ia muito era o Márcio (Souza), aqui de Manaus.

FR — Era difícil entrar no Mambembão.

B — Sabe, antigamente a gente achava que era oportunismo, mas não era não. Quem queria se apresentar se apresentava. Quem fizesse bem se estabelecia.

JCB — E tinha apoio para os grupos viajarem, ou…?

B — Teve época que tinha. Por exemplo, teve uma época um secretário chamado Álvaro Páscoa (1920–1997, Portugal), um senhor de muletas…

FR — Era o pai do Márcio Páscoa (professor do curso de Música da Universidade do Estado do Amazonas), não?

B — Ele ajudava muito a gente. Ele conseguia passagens para a gente.

FR — Ele era artista também.

B — Era. E também o tio do Tito… O José Lindoso! Ele foi governador também (de 1979 a 1982). A mulher dele era patronesse das mostras de teatro que a gente fazia. Ela conseguia material, não dinheiro, mas material, muita coisa. A gente trabalhava muito com patrocínio. Uma loja de tinta dava as tintas, uma loja de tecidos dava os tecidos. É claro que a gente divulgava o nome da loja e tudo.

JCB — Vocês então faziam de tudo, não é? Produção, encenação, atuação, iluminação?…

B — Tudo, era sim. Na minha gestão mesmo, eu comecei a trazer cursos de técnico para cá para Manaus, porque ninguém entendia nada de técnica. Curso de iluminação, a iluminação é uma coisa dificílima, não é fácil, as pessoas não sabiam. Então começaram a fazer cursos de iluminação, de sonoplastia — como se coloca música na peça — , foram coisas superlegais. De cenografia também. O Nonato sempre foi o cenógrafo aqui de Manaus, ele ia para os festivais por aí, conhecia cenógrafos ótimos e trazia para Manaus para dar cursos para a gente. Assim a gente começou a gerir um aprendizado, trazendo pessoas de fora para dar curso para a gente. E a gente tinha o apoio do Tito, que era o diretor do Teatro. A gente que botou o Tito lá no Teatro, o José Lindoso não queria, porque era sobrinho dele. E eu consegui 500 assinaturas de artistas, fui lá, levei para ele. “Olha, se alguém disser que o senhor empregou o seu sobrinho, o senhor esfrega na cara aqui: os artistas de Manaus”.

JCB — Que época era essa em que um político tinha a humildade de não contratar um parente, não é!

B — Não, cara, nunca vi ninguém tão honesto, o José Lindoso. Ele vivia na casa dele com o que tinha, só tinha um carro. A mulher dele era uma pessoa supersimples, a dona Mimi Lindoso, que frequentava muito a gente, os artistas.

JCB — Beckinha, e em termos de público e de locais para encenar e ensaiar, como era o cenário aqui em Manaus nessa época?

B — Também tinha grupos que tinham espaço. Tinha o Tesc (Grupo de Teatro Experimental do Sesc), que sempre teve aquele teatrinho lá. Tinha o Teatro da Aliança Francesa, de que a Nereide Santiago (atual diretora da Cia Teatral A Rã Qi Ri) tomava conta. O Nonato sempre teve também, tinha a Casa da Luz. Deixa eu ver quem mais… Tinha um pessoal na Caixa Econômica que fazia um trabalho… Quer dizer, nesses espaços circulavam várias peças. E a gente tinha acesso ao Teatro Amazonas. Na época de mostras, a gente ia para lá, montar cenário, ficar lá. Ninguém ficava aperreando, botando a gente para fora, como fazem hoje, não pode nem entrar.

FR — Beckinha, esse momento eu acho importante para a tua trajetória. Continua sendo, mas na época você era muito conhecida na cidade como professora de teatro, de interpretação. Lembra que você fez um curso que durou um ano, que fizemos eu, Neuza Rita (arte educadora), Jacob (Francisco Jacob, atualmente professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas), Joffre Santos (bailarino e mestre de Dança amazonense, falecido em 2019), Carlos Matheus (pedagogo) e outros.

B — Isso. No Teatro Amazonas.

FR — Sim, no Teatro Amazonas, que a gente usava, como você falou.

B — Inclusive no Salão Nobre, lá em cima, a gente tinha todo o cuidado.

FR — A gente usava a cúpula também para ensaiar as peças.

B — Hoje em dia não pode nem entrar no Salão Nobre, e eu dava aula de teatro lá. Eu me lembro até que a Lucilene Castro (cantora amazonense) fez esse curso.

FR — Francisco Cardoso deu aula também na cúpula.

B — Outra coisa muito legal que tinha nessa época era que o Tito, se chegava alguém para levar uma peça de fora para o Teatro Amazonas, ele falava, “Olha, quero 60 ingressos”. Esses 60 ele distribuía entre os artistas. Quando tinha balé, era para os bailarinos. E, se possível, botar bailarinos, músicos, os artistas todos juntos. Mas os artistas tinham sua porcentagem.

FR — Como era para você dar aula de interpretação para aquele pessoal jovem, que estava começando? Você tinha toda uma empolgação naquele momento.

B — Para mim nunca foi difícil atuar, acho que foi uma coisa que nasceu comigo. Minha mãe que diz que meu avô me pegava e dizia, “Chore, minha filha!”. E eu começava a chorar. “Diga um versinho!”. E eu dizia. Era uma artista.

JCB — Você tinha aquela coisa de criança de chamar a atenção, não?

FR — E você usava algum método ou uma coisa mais…?

B — Eu sempre tive muita facilidade de interpretar. E eu sabia como usava essas coisas para fazer legal, então ensinava isso. Um método bem natural de descobrir as coisas.

FR — Lembro que você trabalhava a improvisação dentro de temas. Você dava temas e a gente improvisava.

B — É. A improvisação sempre foi a linha que eu trabalhei a vida inteira. Porque é a criação. Sempre achei que o ator pega um texto, decora um texto, ensaia, e tudo bem. Mas ele tem que ter o lance do improviso, porque isso que faz ele ver se ele é bom ou não. Até chegar aos textos, a gente ficava no improviso.

FR — A gente fazia esquetes.

B — Sim, fazia esquetes, apresentava. Tinha umas tão legais que eram até apresentadas no final do curso. Então esse negócio de eu ser professora foi uma coisa que foi acontecendo. Não tinha ninguém para ensinar, éramos eu, o Nonato, a Nereide, vamos fazer isso, vamos fazer aquilo. E quando eu me vi, já era professora de teatro. Mas eu só me meti a ensinar quando já tinha um tempo. Não era aquela coisa, “Ah, eu sou legal, eu vou dar aula”. Não. Hoje em dia a pessoa tem um ano de teatro e já fica dizendo que é professor.

FR — Verdade, você já tinha um nome em Manaus na época, como atriz. Lembro que fazer o curso da Beckinha era uma coisa, eram mais de 20 jovens fazendo o curso. Era bastante gente, e era de graça.

B — No Claudio Santoro (atual Liceu de Artes e Ofícios Claudio Santoro, mantido desde 1998 pela Secretaria de Cultura do Amazonas) tinha até uma seleção de alunos. Era tanto aluno que a gente pegava 20 por turma. Eu, por exemplo, não bote mais de 20 alunos que eu não dou conta. Mas até 20 eu dou.

FR — Era muito legal, você estimulava muito a leitura dos grandes autores, dos teóricos.

B — Isso foi uma coisa com que eu sempre tive muito cuidado: a questão do estudo. Sempre fui uma pessoa que estudou muito, sempre gostei de estudar. Sempre quis que meus alunos gostassem de estudar. E eu gostava mais dos alunos que gostavam de estudar, que pegavam livro emprestado. Tu (Rider) mesmo era uma pessoa assim.

FR — Naquele grupo as pessoas eram bem…

B — A Rose (Ferreira, atriz amazonense, participou do segundo elenco da peça “Homens de Papel”, na montagem do Grito, 1983; e da “Resistível Ascenção do Boto-Tucuxi”, de Márcio Souza, dirigida pelo diretor paulista Márcio Aurélio, em que interpretava a personagem Puta Velha, em 1982) também, né? Lembra da Rose? Ela está morando perto de Maués, do outro lado. E o Grito também era um grupo muito família, a gente era muito amigo. Assim, como tinha muita gente no grupo, quando tinha dinheiro, a gente fazia uma festa com o dinheiro. Porque se fosse dar, ia ser muito pouco, e eu não queria incentivar isso, vi muito grupo se acabar por brigas por causa de dinheiro.

FR — E como começou o Grito?

B — O Grito, eu era professora de Teatro da Prefeitura. Comecei a dar uns cursos no CSU (Centro Social Urbano) do Parque Dez, e montei um grupo para a Prefeitura. Ela não dava dinheiro para a gente, mas dava as roupas, o cenário, todo o apoio logístico. A gente saía com essas peças, ia nos bairros, no ônibus da Prefeitura. As professoras das escolas se reuniam e a gente levava nos colégios.

FR — E já era O Grito? Isso em que ano, Beckinha?

B — Era 1976…

FR — Nossa, bastante tempo, pois comecei a trabalhar com o Grito em 1981, 1982.

B — Sim, foi antes. Comecei assim, dando aula, e fiz esse grupo. E de repente outras pessoas ficavam solicitando também cursos, em outros lugares. Por exemplo, o Márcio Nery era um colégio que tinha muita arte — boi, quadrilha, desfile, um monte de coisa. E eles faziam também teatro, e eu comecei a dar um curso para os professores do Márcio Nery ensinarem teatro para os alunos. E era também uma coisa que eu sempre defendia: que o professor ator é muito melhor professor. Ele empolga os alunos, porque ele representa em cada aula. Eu representava pra caramba, acho que todo mundo fazia isso. Então a melhor coisa para o professor era fazer um curso de teatro, pois ele ficava solto e podia interagir melhor com os alunos. O Wagner Melo fez um curso de Pedagogia Teatral, eu fiz esse curso com ele e depois pedi licença para utilizar o material dele nos cursos que estava dando para os professores. Era muito bom o material dele, uma pedagogia teatral, de ensinar o professor a atuar para ser professor. Nessa época mesmo, os alunos não gostavam mais de aula chata (risos).

JCB — Acho que nunca, né? (risos)

B — Não gostavam mesmo. Os alunos na Nilton Lins acho que gostavam de mim porque eu botava o teatro em tudo.

FR — E por que o nome “Grito”?

B — A gente era altamente politizado, e o Grito era o Grupo de Teatro do Oprimido.

FR — E quem deu essa ideia, você mesma?

B — O Ângelo (Monteiro, atualmente empresário). Ele tinha 15 anos, mas ele dirigia o Grito, era muito inteligente e muito bom ator. Não quero nem ver, só quando acabar com a bolsonarice! Um dia tem que acabar.

FR — Mas quando vir vai logo abraçar, porque é uma pessoa tão próxima, né?

B — É. Eu sempre fui muito boa para trabalhar ator, e o Ângelo era bom para trabalhar grupo, trabalhar o espetáculo em si, montar o espetáculo. Ele tinha muito isso, então ele ficou na direção dos espetáculos e eu na direção de atores. E a gente conseguiu fazer muita coisa boa.

JCB — O que vocês montaram?

B — Fizemos “Putz, a menina que buscava o Sol” (de Maria Helena Kühner), fizemos “Pluft, o Fantasminha” (Maria Clara Machado), fizemos a da menina que perdeu o gato. Era mais peça infantil. E fizemos também “Homens de papel”, do Plínio Marcos. Foi a primeira peça adulta que a gente montou, e a gente arrasou porque saiu do infantil para o adulto mesmo, de chamar palavrão.

Cena de “Putz, a Menina que Buscava o Sol” (1981), em montagem do Grupo Grito — Grupo de Teatro do Oprimido, com direção de Ângelo Monteiro
Cartaz de “Homens de Papel”, de Plínio Marcos (1983), com direção de Ângelo Monteiro

FR — E vocês pegaram os atores daquele curso, né?

B — Porque o pessoal daquele curso já entrou no Grito. Porque era assim, os atores que trabalhavam comigo eram os atores para quem eu tinha dado aula há pouco tempo. E dizia, “Olha, tem o grupo, está aberto, quem quiser participa”. As pessoas iam, ficavam e gostavam. E a gente tinha uma harmonia muito boa no grupo, tinha um trabalho bacana, uma ideologia. A gente apostava muito no teatro infantil. Lá em São Paulo, no Rio, todo mundo gosta de teatro porque vai para o teatro desde criança.

JCB — Tem teatro para ir.

FR — Tem uma cultura, não é?

B — Sim, desde criança os pais levam para o teatro. E a gente sempre quis essa coisa de ter teatro para a criança. Porque a criança, para vir a gostar de teatro, tem de assistir. E também porque o teatro infantil é a maior escola. Você fica superexagerado, você pinta e borda, faz marmota, faz um monte de coisa. Porque a criança é o público mais honesto que pode existir. Se ela não gostar, fica correndo lá e nem liga pra ti. Agora se ela está lá, pirando na peça, você vê que ela está gostando.

JCB — E tu mesma tiveste essa experiência quando criança, Beckinha? Como foi teu contato com artes cênicas quando criança?

B — Tive. Por incrível que pareça, depois eu sacaneei pra caramba com ele, mas eu vi as peças do Titio Barbosa. Eram horríveis, eram horríveis (risos). Mas eu gostava. E também tinha uma pastoral no Luso que era linda, o padre montava umas peças de Natal para a comunidade, era muito bonito. (O Luso Sporting Club, agremiação desportiva de portugueses fundada em 1917, mantinha também atividade teatral.)

Fachada do Luso Sporting Club. Foto © Silvino Santos, disponível no Portal Amazônia

JCB — Tinha o Vovô Branco também?

B — Tinha o Vovô Branco, o Américo Alvarez! Esse era ótimo, só que morreu muito cedo, teve um AVC inexplicável. Ele se apresentava no Teatro Amazonas todo domingo de manhã.

FR — Era o quê, Beckinha? Peças infantis?

B — Não, ele levava as crianças para lá para cantar, para se apresentar. Era um espetáculo, um programa de criança, em que as crianças eram os artistas. Vixe, eu fui várias vezes, cantei, dancei. Onde estava a confusão eu estava no meio, queria estar nas coisas (risos). Sabia que não ia ser uma anônima, essas coisas que a gente tem dentro da gente, não vou ser uma pessoa que vai nascer e morrer, não; vou ser alguém.

FR — Beckinha, voltando a esse momento de você tão presente nas artes cênicas locais, fico pensando, e até comento com as pessoas. Como é que você, como diretora do Grito — o Ângelo fazia essa parte da direção, mas você era a diretora geral, a pessoa da qual todo mundo estava ao redor –, conseguia aglutinar mais de 15 pessoas? Por exemplo, no “Homens de papel” eram mais de 15 pessoas envolvidas, e a gente tinha ensaio de segunda a sexta, todo dia, das seis até as dez.

B — Às vezes passava, às vezes estava empolgado e ia além.

Beckinha (Nhanha) de joelhos segurando o rosto da filha (Elani Iamut) em “Homens de Papel” (1983), de Plínio Marcos, com direção de Ângelo Monteiro. Com Beckinha, Francisco Rider, Terezinha Silva, Neuza Rita, Walter Souza, Franicsco Jacob e outros. Apresentação no extinto Teatro Álvaro Braga/Caixa D’Água, no Reservatório do Mocó

FR — Isso. Como é que você conseguia? Fico fascinado pensando. “Nossa, como é que ela conseguia?”. Porque você era a diretora.

B — O Geraldo me contou até a história de um grupo com que ele está fazendo um trabalho, que o Douglas (Rodrigues) quebrou o pau com uma atriz, e a atriz largou a peça cinco dias antes de estrear. Nessa época a gente não tinha essas coisas.

Grupo Grito em “Homens de Papel” (1983), de Plínio Marcos, com direção de Ângelo Monteiro. Com Beckinha, Francisco Rider, Terezinha Silva, Neuza Rita, Walter Souza, Francisco Jacob e outros

FR — Os ‘paus’ se resolviam ali mesmo.

B — A gente não tinha diretor estrela, que ficava humilhando ator. Os paus que tinha se resolviam ali mesmo. E as pessoas gostavam mais de fazer teatro, sabe? As pessoas faziam tudo pelo teatro. Em 1973 eu apanhei 365 surras. Todo dia pegava uma por causa de teatro, no tempo em que andava pelo Tesc. Chegava em casa era porrada. Todo dia, estava sem-vergonha de tanto apanhar da minha mãe, porque não tinha jeito.

FR — Eles não gostavam que você estivesse envolvida?…

B — Não, o problema era o seguinte, Rider: naquela época, para ser ator, você tinha de ter carteirinha de puta. Era “Serviço…”, (um documento) da como se chama, a Secretaria de Segurança Pública. Artista que trabalhava de noite, ou de dia, foi artista, tinha de ter aquela carteirinha. As putas também tinham. Os músicos, as putas, os artistas, eram uma classe só. E a minha era uma família de nome conhecido, não era rica, mas era chique. Tinha nome, eram os fundadores do Rio Negro. E eles achavam que ser artista era algo meio…

JCB — O teu Langbeck vem de onde?

B — Alemanha.

JCB — Tua família veio de lá?

B — Sim, o meu avô. Veio na época da guerra. E era muito doida essa coisa de fazer teatro naquela época. As pessoas gostavam muito. Acho que hoje as pessoas fazem… Não sei, não sinto aquele amor que a gente tinha antes, aquela dedicação.

JCB — Você acha que ficou uma coisa muito técnica?

B — É, acho que está ficando um pouco técnico, não sei.

FR — E muito voltado para o mercado do sucesso, tipo esperando ser celebridade.

B — Sim. Se bem que ser celebridade aqui em Manaus é uma coisa meio utópica (risos). Mas eu nunca quis trabalhar na Globo.

FR — E na época era até difícil a Globo vir para cá pegar atores, não tinha isso. Não tem hoje, naquela época a Globo nem sabia da existência…

B — Sabe o Aderbal (Aderbal Freire Filho)?

FR — Ele dirigiu a Marília Pêra na peça Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde.

B — Ele esteve aqui em Manaus acho que em 1976, e deu um curso na Pinacoteca. Eu fiz esse curso, ele leu as minhas peças. Ele gostou, queria me levar com ele. O problema era que eu tinha o Fabrício. E com filho, como eu ia? E mamãe não quis ficar. “Quem pariu Mateus que o embale, eu não vou ficar com menino nenhum”. Mas eu podia ter ido com ele. E ele sempre falou, “Você é uma pessoa muito talentosa, se for para o Rio, vai conseguir trabalhar legal”. Só tinha aquela coisa, eu estava com o meu filho, e não tinha como. Apareceram várias oportunidades, na época em que eu era presidente da Fetam (Federação de Teatro do Amazonas), conheci gente de todos os lugares do Brasil, porque a gente da Fetam viajava muito.

Marília Pêra em Apareceu a Margarida” (1973), de Roberto Athayde. Direção de Aderbal Freire Filho. Foto © Site Crítica Teatral

JCB — Tinha uma integração bem maior antes, não é?

B — Tinha, tinha. E acho que também porque era essa coisa mais fechada, as pessoas eram mais envolvidas. E tinha a coisa da política misturada com o teatro, a coisa da resistência.

FR — Isso que pensei também. Estar junto como uma forma de resistência, não é?

B — Exatamente. E tinha muito isso. Por exemplo, o Gruta, o grupo da universidade, era totalmente político. Só montavam peças com sentido político.

FR — E tu não achas que vai voltar essa necessidade? Está no ar essa necessidade, com essa repressão…

B — É. Quando o Zemaria Pinto propôs essa ideia das leituras (o ciclo de leituras dramáticas “Teatro e Resistência”, realizado ao longo de 2019), eu me vi naquela época. “Nossa, será que a gente vai passar por isso de novo?”. E o Zemaria é da minha idade, um pouquinho mais velho, ele passou também por essas coisas.

JCB — O Márcio Souza foi preso.

B — Foi.

FR — O Márcio é bem mais velho que a Beckinha, deve estar com uns 70 e poucos anos.

B — Quando eu fui trabalhar com o Márcio, eu tinha uns 16 anos. Trabalhei com o Tesc nas primeiras peças, mas depois tive de optar pelo grupo da Universidade, senão perdia a bolsa. Mas eu vivia com um pé no Tesc, sempre fui muito ligada no Tesc. E o Márcio deve estar com ódio de mim.

FR — E o Márcio já era famoso na época.

JCB — O que você chegou a fazer com o Tesc, Beckinha?

B — Eu fiz uma peça chamada “O funeral do grande morto” (com direção de Nielson Menão). Do Márcio nunca fiz. Fiz “Como cansa ser romano nos trópicos”. E quando o Márcio entrou, foi a época em que fui trabalhar no Gruta. Mas sempre ia no Tesc, nunca larguei, nunca me separei do Tesc. Tanto que uma vez foram fazer uma peça, acho que “A paixão de Ajuricaba”, a atriz principal não pôde ir porque tinha pegado rubéola. Eu fui, decorando o texto no avião, e fiz a personagem. E o Yan Michalski não teve o que fazer, disse, “Com tanta morena no Amazonas, o Márcio traz essa índia da bunda branca!”. Olha, o Márcio acabou com o homem. “Eu me admiro de você, um crítico de arte se preocupar com a bunda da atriz!”.

JCB — Quem era esse?

B — O Yan Michalski, um crítico, me chamou de “índia da bunda branca”. Cara, eu posso ter bunda branca, mas fui a única que fiz em cinco dias.

FR — E você teve a experiência também de trabalhar com Sérgio Cardoso e Gerson Albano em “Xopingue Senter”, que foi um escândalo, o primeiro beijo lésbico num espetáculo em Manaus.

B — Eu e a Ozi (Ozi Cordeiro, vive no Acre há anos, e foi muito atuante no teatro manaura nos anos 80). A Ozi espalhou na cidade que tinha caso comigo, acabou comigo. Acabou comigo! Fiquei igual a Zizi Possi! (risos)

Beckinha e Francisco Cardoso em “Xopingue Senter”, de Sérgio Cardoso, com direção de Gerson Albano

FR — Ah, é verdade. E Ângela Rô Rô! (risos)

B — Tive de ficar grávida para o pessoal deixar de falar de mim! (risos)

Beckinha e o bailarino Paulo Baraúna em “Xopingue Senter”, de Sérgio Cardoso, com direção de Gerson Albano

FR — Mas tinha uma suspeita no ar que você teve um caso com a Ozi! (risos) Mas era uma peça ousada, porque tinha nudez, tinha essa cena lésbica, vocês se pegavam mesmo, se beijavam, não era, Beckinha?

JCB — Escândalo, hein?

FR — Para Manaus foi mesmo, na época.

B — Sim, na época foi. E em “Kátia Bolerão” foi a primeira com nudez, em que apareceu gente nua na peça. A Ednelza diz que foi ela, mentira, ela nunca ficou nua. Ela ficou só do peito para cima, e na “Kátia Bolerão” era nuzão mesmo.

Beckinha e o bailarino Paulo Baraúna em “Xopingue Senter”, de Sérgio Cardoso, com direção de Gerson Albano

FR — Era um espetáculo bem ousado, “Xopingue Senter”, com a direção do Gerson Albano.

B — Era. Mas o Gerson cortou muito a peça do Sérgio Cardoso. As peças do Sérgio são muito doidas

FR — De que ano era, Beckinha?

B — 1982.

JCB — Foi o mesmo ano do “Boto Tucuxi”.

B — Se você lesse todo o texto, você endoidava. O Gerson foi cortando daqui, emendando dali, compilou a peça e ficou superinteressante. Era uma paulista, um mineira, uma amazonense.

FR — Você fazia a paulista?

B — Era. E eles moravam num lugar que chamavam de Xopingue Senter porque era tipo uma vitrine deles. E eles usavam aquele apartamento para tudo, era louquíssimo, muito louca a história.

JCB — Você conseguia conciliar tudo, Beckinha? Trabalhava no Gruta, no teatro com o Grito, na Prefeitura, e no Teatro Amazonas também?

B — Não, no Teatro Amazonas foi depois da Prefeitura.

JCB — E como rolou de tu ires para São Paulo?

B — Foi por causa do cinema. Sempre fui louca por cinema, minha piração maior sempre foi o cinema. Sempre fiz teatro porque era mais fácil fazer teatro. Cinema é muito difícil, ainda mais naquela época. Eu queria estudar mesmo cinema. O papai relutou, relutou, mas acabou me mandando para São Paulo.

FR — E como você descobriu a USP (Universidade de São Paulo), aquele curso específico na ECA (Escola de Comunicações e Artes)? Porque naquela época era mais difícil conhecer. Você ouviu falar?

B — Sim, eu já tinha aquela informação. Logo ao sair da universidade fui fazer o mestrado, não levei muito tempo entre o bacharelado e o mestrado.

FR — E como foi essa experiência na USP? Você amava esse curso, só falava dos professores. Rogério Sganzerla, “O Bandido da Luz Vermelha”…

B — Eu achava que só eu gostava. E os caras adoravam, tinham piração com o cinema marginal. Na época estudei bastante, era muito caro ter videocassete, e o Ismail (Xavier, teórico e professor de cinema) me emprestou o videocassete dele para ficar vendo os filmes.

Cartaz do filme de Rogério Sganzerla. Reprodução © Site Universo Retrô

JCB — Antes de viajar, como era tua “formação” em cinema, Beckinha? Como você assistia aos filmes, como alugava…

FR — Como era o acesso, não é?

B — O meu pai sempre gostou muito de cinema. Meu referencial todo era ele, eu adoro filmes antigos, adoro musicais, adoro o cinema noir. As escolas, o Surrealismo, Neorrealismo, Nouvelle Vague, os melodramas. Minha formação é toda de conhecimento dessas coisas. Só em São Paulo fiz 16 cursos de cinema, na época eram as Oficinas Culturais Três Rios, que depois virou Oswald de Andrade (Oficinas Culturais do Estado de São Paulo). Fiz 16 cursos, só com gente boa, e tudo de graça. Você ia lá, passava por uma entrevista e, conforme fosse, fazia os cursos. Lembro que a Bete Mendes foi secretária de Cultura lá, foi quem fez essa casa de cultura que era a Oficina Três Rios. Tinha tudo, tinha balé, teatro, cinema, tudo funcionava naquele prédio, que era um antigo mosteiro transformado num lugar de arte. E era muito bacana aquela circulação de artistas. O pessoal de cinema pegava o pessoal de teatro para fazer os filmes, os bailarinos, os músicos entravam.

FR — No Bom Retiro, não é?

B — No Bom Retiro. E chegava, no final do ano, a ter espetáculos em que todo mundo estava envolvido, pessoal de dança, de música, de teatro, todos num espetáculo só. Era muito bacana.

FR — E tua pesquisa era em cima do “Bandido da Luz Vermelha”, do Sganzerla?

B — O “Bandido” era a ideia, mas era um estudo profundo em cima do cinema marginal. O “Bandido” foi o primeiro feito daquela forma, depois dele veio um monte de gente. Aquele cinema fragmentado, muito sarcástico, irônico, sujo.

FR — Você já estava vendo longe, pois perceberam que era um projeto maravilhoso na USP, de cinema marginal.

B — E eles estavam escrevendo um livro também, o Ismail e o Jean-Claude (Bernardet, teórico, crítico, cineasta e escritor), chamado “O voo dos anjos” (publicado por Bernardet em 1991, com o subtítulo “Estudo sobre o processo de criação na obra de Bressane e Sganzerla”). Eu ajudei muito na pesquisa deles, para mim era superinteressante fazer a pesquisa para eles. Foi muito legal, e inclusive no livro tem uma parte em que eles falam que eu e outros alunos ajudamos. Foi uma experiência muito boa. Eles tinham um trabalho, mas eles tinham um problema, porque falaram mal do Rogério nos anos sessenta. E o Rogério queria ver o diabo e não queria ver eles. Eu fui na casa do Rogério, no Rio, falei com ele, e o Rogério recebeu eles depois.

FR — Você conheceu o Rogério.

B — Conheci o Rogério. E foi engraçado, ele começou querendo ser meio grosso comigo e se lascou, porque eu sei mais a respeito dele do que ele mesmo. “Ô mulher, você sabe mais de mim do que eu mesmo!”. “Pois é, então me respeite!” (risos).

FR — E ele era acessível?

B — Não, era problemático. Mas uma puta cabeça, inteligentíssimo. Nunca vi uma figura com uma inteligência daquela, privilegiado. Era um cara que tinha muita qualidade, mas não foi muito reconhecido.

FR — Agora ele virou um gênio.

B — Agora, depois de morto. Ele morava naquelas casas de conjunto vagabundas, no Rio. E a Helena Ignez, que é a viúva dele, era uma fuleira que nem ligava para ele. Tinha virado hare krishna, não estava nem aí para ele. Depois que ele morreu que ela começou a se aproveitar.

FR — Ele ficou bem famoso mesmo.

B — E acho que foi muito boa (a pesquisa), ganhei 8,5, e 8,5 na USP é uma nota boa. Ninguém tira 10. E para mim foi muito legal, porque fazendo essa pesquisa para eles, eu fazia a minha, claro. Eu aprofundava mais e eles me davam condições, davam dinheiro para viajar, para alimentação, para tudo. Eu tive oportunidade de melhorar o meu trabalho, foi um toma lá dá cá para mim. Ninguém me explorou, nem eu explorei ninguém.

FR — E como era a ligação com Jean-Claude Bernardet?

B — O Jean-Claude era um amor de pessoa, um príncipe, uma figura maravilhosa. Exaltado, apaixonado por cinema brasileiro. Sabia mais de cinema brasileiro do que qualquer brasileiro.

JCB — Quem orientou a tua pesquisa, Beckinha?

B — O Ismail. Ele era meio carne de pescoço, mas porque era muito rígido mesmo, tinha de ser, porque segurar a ECA na mão… Ele era o diretor, e ainda tinha aula e tudo. Mas a equipe toda era boa, todos os professores eram muito bons.

FR — Beckinha, e como foi que o Luiz Roberto Galizia veio assistir a “Homens de papel”?

B — Ele tinha vindo a Manaus para dar um curso. Eu encontrei com ele na rua, e falei que a gente estava com a peça. Ele disse que tinha visto com o grupo do Teatro Maria Della Costa. Eu o convidei e ele foi. Adorou a peça, pirou com a gente, achou que tinha muita verdade.

FR — Estava pesquisando sobre ele, foi um dos fundadores do Teatro do Ornitorrinco, com Cacá Rosset, Maria Alice Vergueiro.

B — Eles passaram muito tempo com a peça baseada no “Ubu Rei” (de Alfred Jarry).

FR — Ele é considerado genial para aquela época, o Galizia.

B — Ele era ótimo também em cenografia.

Teatro do Ornitorrinco Canta Brecht e Weill (1977), de Bertolt Brecht e Kurt Weill, com direção de Cacá Rosset. Com Cacá Rosset, Luiz Roberto Galizia, Cida Moreira, Maria Alice Vergueiro e outros. Foto © Site Memórias da Ditadura

FR — E ele veio, assistiu.

B — Ele gostou muito, achou muita verdade no nosso trabalho. Falou que a montagem no Maria Della Costa era muito de gente burguesa fazendo o papel de mendiga. Nós não, a gente ficava sujo, nem lavava a roupa, a gente fedia. A gente era tão stanislavskiano! Às vezes o Ângelo dizia, “Vocês vão lavar essas roupas! Eu não aguento mais!”.

FR — Lembro mesmo, você falou: “Tinha que lavar essas roupas”.

B — E ele achou que a gente tinha muito mais verdade fazendo aqueles mendigos. Achou que a gente era muito mais Plínio Marcos.

JCB — Mais pé no chão. E Beckinha, tu passaste quanto tempo em São Paulo?

B — Passei de 1984 até 1994.

JCB — Você ficou bem além do tempo do mestrado, não? O que ficou fazendo lá nesse período?

B — Eu trabalhava no Sesi, e eu tinha um teatro na Ermelino Matarazzo que eu mantinha, onde eu dava cursos e tinha grupos de teatro infantil, de adolescentes e de idosos. Então eu fazia três espetáculos por ano, passava o ano todo dando aula. Era um ótimo trabalho, um emprego bom, de que eu gostava.

FR — Eu fui várias vezes lá contigo naquele teatro, longe para caramba.

B — Mas de metrô era rápido. E eu gostava do trabalho lá, mas queria voltar por causa do meu pai.

JCB — E foi por isso que tu voltaste?

B — Foi. Ele reclamava, ‘Ah, foi fazer mestrado, não volta mais’.

JCB — Ele te visitava?

B — Ele ia às vezes, mas o papai era muito agarrada comigo. E achei legal também porque passei seis anos com ele. Se eu não tivesse voltado, talvez me arrependesse hoje de não ter vivido com o Langbeckão mais esses seis anos, sabe?

FR — Vocês eram muito próximos, não é?

B — Deus o livre, não tinha uma filha mais nelson-rodrigueana que eu (risos).

JCB — E nesse retorno, Beckinha, foi difícil te readaptares? O que produziste nessa época?

B — Foi difícil pelo seguinte: eu achava que, tendo mestrado na USP, eu ia para a Ufam, estava com a minha vida garantida, entende? E não foi isso. Eu nunca consegui entrar na Ufam, porque lá é carta marcada. Tipo assim, eles pegam os alunos, pegam o aluno para dar aula e quando o aluno vem… Quer dizer, quando saem esses editais, só é para dizer, para cumprir. A Selda mesma falou para mim, “Beckinha, não leva mais teu material, porque eles não estão nem aí, eles botam quem está lá dentro”. Isso foi uma depressão muito grande para mim. Fiquei trabalhando na Nilton Lins, uma universidade horrorosa, problemática, tinha problema para tudo que era lado. Mas o que eu podia fazer? Tinha de trabalhar em algum lugar. Ganhando por hora-aula, isso é sacanagem, você fazer um mestrado, se matar. Eu tive de parar de trabalhar na época desse mestrado, porque ou eu fazia mestrado ou eu trabalhava. O Hermano, meu marido, se matava de motorista de praça para poder sustentar a gente, porque eu estava estudando direto, senão não tinha como conseguir concluir. Para chegar aqui e trabalhar na Nilton Lins? Isso foi uma paulada para mim. E outra coisa: quando voltei, ainda tinha aquela ideia de Manaus como um lugar de teatro, em que todo mundo se curtia e curtia fazer teatro. Não, cara: tinha um monte de grupo horroroso, um querendo derrubar o outro.

JCB — As coisas tinham mudado completamente.

B — Era. As pessoas iam para o teatro para falar mal do colega. A gente não, cara: por exemplo, se era a peça do Nonato, todo mundo se reunia para ver a peça do Nonato. Tinha gente que gostava e gente que não gostava, claro, mas isso a gente dizia para a figura mesmo. Não tinha essa coisa de ficar falando por trás, sabe?

FR — Daí você se afastou e teve aí uma lacuna sua, de não fazer mais teatro, não é?

B — É. Comecei a só dar aula, também no Santoro (Liceu de Artes e Ofícios Claudio Santoro), durante seis anos, dando aula de teatro. Tenho vontade de voltar a dar aula de teatro. Porque agora, com esse negócio de se aposentar, não quero mais esse negócio de ter aquela obrigação, sabe? Quero fazer porque gosto, porque estou a fim. Fiquei meio cansada.

FR — Você considera que começou no teatro com quem? Tem uma pessoa específica que você diria que foi com quem começou?

B — Sim, sim. Foi com a Claudia Silva. Ela era minha professora no Colégio Estadual, foi professora de Educação Artística, e ela trabalhava no Tesc, era atriz do Tesc, e levou a gente para lá.

FR — Ah, ela era do Tesc?

B — Ela era do Tesc. E nós conhecemos o Nielson Menão, que era o diretor de lá…

FR — Ele não era de Manaus, não é?

B — Não, ele era, parece, do Espírito Santo. O Gerson também foi diretor de lá, o Gerson Albano. “Como cansa ser romano nos trópicos” teve direção geral do Gerson, e “O funeral do grande morto” era do Nielson. Depois o Wagner Melo (diretor de teatro manauara, graduado em Teatro pela UniRio) — a Claudia era muito amiga dele e trouxe ele, que estava na Colômbia. Ele veio para Manaus, passou um tempo morando com a Claudia e dando aula para a gente. Depois ele voltou para a Colômbia.

FR — Então foi com ela que você começou no teatro.

B — Foi. Ela foi a pessoa que me levou. Por meio dela conheci o Nielson, o Gerson, o Wagner. Eu comecei a fazer teatro com 16 anos, era muito garotinha mesmo. Se bem que já fazia mil coisas como criança, fazia dublagem, cantava.

FR — Foi no Estadual que você começou, então. Tinha um grupo de teatro no Estadual?

B — Teve uma época que tinha um laboratório de química, que estava lá jogado, cheio de coisas. A Claudia foi lá, pediu do diretor, e fomos lá, tiramos todas as teias de aranha, pintamos tudo de preto e fizemos um teatrinho dentro do Estadual, nesse laboratório de química. E ali a gente estudava, a gente discutia. A gente não sabia direito o que era teatro, entende? A gente estudava. Assim, eu aprendia algo, eu passava; tu aprendias, tu passavas. Tinha muito essa coisa de trocar livro, trocar interesses.

FR — Tu lembras qual a primeira peça que vocês fizeram com ela?

B — Foi o “Funeral”. Foi a primeira peça em que eu entrei em cena. Depois, com o Wagner, fiz “Romanceiro da Inconfidência”. Tudo no mesmo ano, em 1973, que foi um ano-base. Foi o ano em que eu coloquei aquela nossa peça, “Geração 70”.

FR — Que era “O despertar da primavera”?

B — É, e eu para “Geração 70”.

FR — Mas nós fizemos ainda como “O despertar da primavera”, não?

B — Sim. Eu mudei porque já tinha uma outra peça com esse nome.

Programa de “O Despertar da Primavera” (1984), de Beckinha, com direção de Wagner Melo. Com Beckinha, Francisco Rider, Núbia Santos, Sheila Beserra e outros

JCB — Então foi tua estreia, Beckinha.

B — Isso mesmo. 1973. Daí (conta os dedos) 1983, 1993, 2003, 2013… Quarenta e seis anos. Muito tempo, né?

FR — É longe, não é?

B — É, porque eu era bem garota mesmo. Eu conto de 1973, eu já fazia muita coisa, mas eram shows em festas, coisas assim.

FR — E o Gerson Albano era aluno do Estadual também?

B — Não, ele já era diretor de teatro no Tesc. A Claudia é que era professora, e levou a gente — não só eu, a Lena de Sá (atriz manauara, muito atuante nos anos 70 e 80, em Manaus), a gente era da mesma turma no Estadual. A gente começou junta, nós duas, as duas com 16 anos. Uma vez levaram todo mundo do Tesc preso, e fomos junto, todos presos. E eu ligando para o Langbeckão, “Papai, tou presa!”. E o papai levou aquele deputado honesto (risos, tenta lembrar), que era amigo dele… o Jefferson Péres! Levou o Jefferson Péres para me tirar de lá. E eu falei, “Ah, não, tem de tirar todo mundo!”.

FR — E a prisão foi devida a quê?

B — Não, entraram lá com sacanagem com a gente. A gente estava lendo “Roda viva”. Era proibido, tinha repressão na época. E acharam umas pílulas anticoncepnais, disseram que era droga, que era não sei o quê. Não tinha nada, só onda deles. A Denise Vasconcelos parecia uma bonequinha, apavorada, com medo (risos).

FR — Era uma atriz que trabalhava lá, não?

B — Era.

FR — Está viva ainda?

B — Está, sempre falo com ela no Facebook.

JCB — Beckinha, vocês ouviam aquelas notícias da repressão mais forte, de gente que desaparecia, do Vladimir Herzog? Essas informações circulavam?

B — Sabíamos. Na época do Herzog já estava na Universidade. Na época saiu até um livro do Mino Carta chamado “A sangue quente”, em que ele falava com todos os detalhes da morte do Herzog. Ele fez um trabalho de investigação (que apontava) que ele não se suicidou, pois a história que disseram para a família era de que ele tinha se suicidado. Depois a gente leu “Patética” (de João Ribeiro Chaves Neto), que foi escrita em cima desse caso. E lemos agora no evento do Nonato (o ciclo “Teatro e Resistência”).

FR — O Grito tentou montar a “Patética”, não foi?

B — Montou. Eu estava em São Paulo, mandaram matéria de jornal para mim.

FR — Também estava fora na época. Mas vocês tinham medo dessa repressão, jovens, como é que era?

B — Tinha, né? Porque a gente sabia de casos que tinham acontecido. Por exemplo, tinha um senhor que tinha uma barbearia na Joaquim Nabuco, no canto com a Ramos Ferreira. E o homem era comunista, entraram na casa dele, pegaram os livros dele, bateram nele, estupraram a filha na frente dele. Depois, eles ficaram tão pirados na família que um irmão acabou matando o outro. Teve um namorado da minha irmã também que entrou na Igreja de São Sebastião apavorado, foi se confessar, porque a polícia estava atrás dele. Tinha um pessoal que se reunia… O Marcos José era totalmente envolvido, o Rui Brito, todo mundo com o movimento comunista. E a gente andava com esse povo.

FR — E era perigoso na época.

B — Era. Mas eu não ia deixar de andar com o Rui porque o Rui estava envolvido. Não ia. Porque, de uma certa forma, eu também estava. A gente queria mudar o país. Acho que hoje as pessoas têm essa piração pelo Lula porque a gente achava que só um presidente tipo o Lula ia resolver a situação do país. A gente tinha esse sonho, esse grande sonho de não ter mais esses presidentes ditatoriais, de conseguir ter um presidente popular, que visse o povo de uma outra forma. E a gente tinha ideologia — tinha mesmo, não era uma coisa só de dizer, não.

FR — Não era uma coisa de Facebook, não é?

B — Uma vez jogaram eu e a Socorro Papoula (atriz e figura atuante na cena manauara nos anos 80 e 90. Atualmente Papoula tem um grande engajamento com movimentos sociais de mulheres) de cima da ponte daquele igarapé de Manaus. Socorro Papoula estava grávida na época, até perdeu o filho. A gente estava numa rebelião, todo mundo na rua, contra umas prisões arbitrárias que foram feitas aqui em Manaus. E jogaram eu e a Papoula no igarapé de Manaus. Nossa sorte foi que não estava nem muito fundo nem muito raso, senão a gente tinha se acabado. Conceição Souza também foi uma pessoa que foi perseguida. O marido da Claudia foi torturado.

FR — Conceição Souza do Dançaviva?

B — Sim, do balé.

FR — Estamos querendo entrevistar a Conceição Souza também.

B — Conceição é uma pessoa muito séria, tinha um envolvimento grande com o balé. O balé dela, o Dançaviva, era um movimento de balé bem revolucionário, político. Porque era assim: ou você era político ou você era nada, era um bosta n’água. Tinha que ter, pois a própria situação estava ali. Então o pessoal começou a fazer muito Teatro do Absurdo, porque eles não entendiam, e a gente fazia o que queria com o Teatro do Absurdo, dizia o que queria e o que bem entendia. Eles não entendiam mesmo. E era uma coisa horrível: antes da estreia, tinha de fazer uma apresentação só para eles, e eles ficavam lá (assistindo).

FR — Eu não lembro mais como foi a coisa de apresentar ao censor o “Homens de papel”.

B — Ainda tinha censor em “Homens de papel”?

FR — Sim, nós fizemos na Caixa d’Água.

B — Mas “Homens de papel” já era uma peça liberada. Algumas peças nessa época já estavam liberadas mesmo.

FR — Mas nós chegamos a fazer na Caixa d’Água, lembra?

B — Realmente. Era muito ruim essa parte (da censura). Mas isso talvez incentivasse mais, porque no Rio e em São Paulo — eu estava sempre viajando para lá, vendo coisas e me reciclando — tinha coisas e espetáculos maravilhosos. Hoje em dia não tem mais, não sei se porque naquela época era difícil, porque era proibido, sei lá. Tinha toda uma magia, um trabalho diferente, todo mundo querendo arrasar.

FR — Você chegou a ver “Roda viva”?

B — Não. Vi “Hair” (de Gerome Ragni e James Rado).

Versão brasileira do musical “Hair” (1969), com direção de Ademar Guerra. Foto © Jornal O Estado de S.Paulo

FR — Nossa, com a Sonia Braga, o José Wilker…

B — A Sonia Braga tinha uma pontinha, quem era a atriz mesmo era a Aracy Balabanian. E aquele ator, um ator ótimo, fez até “Gabriela Cravo e Canela”… Depois eu lembro. Mas assim, estavam muito em cena na época peças pesadas.

FR — “Hair” foi maravilhoso, não, Beckinha?

B — Era igual ao da Broadway, só que em português. Mas era igualzinho. Eles faziam isso aqui. Tinha “A vida escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato”, muito legal, com Marília Pêra e Marco Nanini. Nossa, tanta coisa. Para lembrar de tudo…

FR — Teria de sentar e ficar escrevendo no papel!

JCB — Beckinha, o Geraldo falou para a gente do projeto de vocês sobre o Nelson Rodrigues. E tu tens outros projetos em mente, ou em vista? Estás passando por essa coisa da aposentadoria agora…

B — É, estou passando esse aperreio. Mas estou pensando em fazer um livro com meus contos. Tenho bastantes contos, já tenho até a apresentação que o Márcio (Souza) fez, e ia fazer pela Valer, e não deu certo. Mas é um projeto que estou a fim de tocar.

FR — E são crônicas de…

B — Agora estou com um problema de memória, cara. Tenho medo de ir para o palco e não me lembrar das falas. Se bem que já existe o tal do ponto eletrônico. Mas do jeito que sou lesa, não vou saber usar o ponto eletrônico! (risos).

FR — Aprende!

B — Ah, sei lá, não consigo nem usar o celular direito, imagina um ponto eletrônico.

FR — Tu me lembraste aquele filme com a Gena Rowlands, aquela atriz que era esposa do John Cassavetes. Ela entra em cena e tem síndrome do pânico.

B — Eu tenho síndrome de pânico.

Cartaz do filme “Opening Night” (1977), de John Cassavetes. Foto © Wikipedia

FR — Pois é, me lembrou agora dessa atriz. Ela não quer mais entrar em cena.

B — Eu tenho medo por causa de memória.

FR — Ela tem medo de esquecer.

B — Eu tenho sonhos em que eu estou fazendo uma peça e me esqueço. Eu entro em pânico no sonho, e me acordo passando mal. Acho que esse mesmo pânico eu tenho, tenho medo. Se bem que, no Rio e em São Paulo, todo mundo está usando ponto eletrônico, ainda mais esses atores que já têm muita idade, não consegue mais decorar esse monte de coisas. Na televisão, tu achas, todo mundo decora aquilo tudo? Decora nada.

JCB — Tem textos diferentes todo dia.

B — É, todo dia.

FR — Acha que aquela atriz, a Laura Cardoso, vai lembrar?

B — Aquela vai morrer ali na televisão.

FR — Bem velhinha. E Beckinha, esse livro que você tem, tentou lançar, editar?…

B — É, teve um negócio na Valer em que eu fui escolhida. Mas depois deu uma picaretagem com as pessoas que faziam e acabaram não fazendo mais. O Márcio chegou até a fazer a apresentação para mim. Porque eu escrevo meio parecido com ele. Gosto tanto do Márcio que tenho aquele mesmo tom debochado dele, ele mesmo acha isso. Não é que eu imite, mas meu jeito é um pouco parecido com o dele.

FR — E são crônicas desde que tempo?…

B — É por isso que gosto do Rogério Sganzerla! A gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba.

FR — Era o que ele dizia?

B — Era. “A gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba”.

FR — E você foi colecionando esses textos?…

B — Não, fui fazendo, na vida.

FR — Desde que época, anos noventa?

B — Desde que estava em São Paulo, quando nasceu Rosinha. É um personagem meio alter ego meu. Beckinha é uma coisa, e Rosinha é outra, totalmente louca, completamente sem noção. Ela pega porrada em Parintins porque vai torcer pelo boi errado, faz isso e faz merda. Mexe com o Amazonino e se fode! (risos)

FR — “Então morra!” (risos)

JCB — Já falamos disso por alto, mas como você está se sentindo, Beckinha, depois da eleição do Bolsonaro? Essa louvação à ditadura, esse retrocesso?

B — Ah, uma merda. Se eu te disser, eu me acordo no meio da noite, preocupada. E estou me aposentando, saindo da vida (do trabalho). Imagina como eu não estaria se não estivesse! Estou com muito medo disso, sabe? Se bem que as coisas não são mais como em 1964, o Brasil é outro. As pessoas têm uma outra cabeça, colocaram ele vestido de Xuxa, já zoaram com ele de tudo que é jeito.

JCB — Não tem aquela repressão forte…

FR — Tem a Internet.

B — Tem a Internet. É muito difícil.

FR — E o que você me mandou hoje, um link, da Cultura que está perdendo muito…

JCB — As empresas estatais não estão mais patrocinando a Cultura.

FR — Sim, Petrobras, Banco do Brasil, está tudo parado.

B — Acho que eles não estão a fim de funcionar a Cultura não.

FR — É perseguição mesmo, né? É ideológico. No sentido negativo.

B — É ideológico mesmo.

FR — Ainda é muito recente para a gente comparar com 1964. Mas tem uma diferença muito grande aí, você não sente, Beckinha?

B — É, porque eles não podem, cara, fechar tudo, fazer o que fizeram. Agora não pode mais. Viu a mulher dizendo que a educação ia ser pela Bíblia? “Por que os dinossauros foram extintos? Porque não acreditavam em Deus”. Sabe, essas coisas assim? (risos) Puta que pariu, muito louco!

FR — Muito louco mesmo! Parece que ela foi demitida, essa mulher.

B — E aquela outra do “menino veste azul, menina veste rosa”? Ela continua.

FR — Exatamente.

B — Cara, como é que pode, né? Ele mesmo nem sabe falar, não sabe, não tem discurso, só faz merda, só falou merda para o (Donald) Trump. Parecia um cachorrinho.

FR — Foi bizarro aquilo com o Trump.

B — Será que as pessoas não veem? Eu teria vergonha se tivesse votado nesse homem. Deus do céu, coisa horrível.

FR — De uma subserviência escandalosa.

B — Eu achei, até o último momento, que eles não iam ganhar. Achava que o brasileiro não ia ser doido de eleger um cara como o Bolsonaro. E elegeu.

FR — Sim. E você tem assistido alguma coisa em teatro ultimamente? Você vai ou não vai mais?

B — Vou, sempre vou, a toda peça. Da Ana Claudia (Mota), do Hely (Pinto), todos os trabalhos dos meus amigos, eu estou indo.

FR — Mas você pensa em voltar para o teatro, para o palco? Apesar desse medo de esquecer?…

B — Medo de esquecer, isso é fogo. Mas eu tenho vontade de fazer “Os fuzis da Senhora Carrar”, do Brecht. Sou doida para fazer essa mulher. Uma mulher muito doida, cara, ela não quer que os filhos vão para a guerra, ela prende os fuzis, senta em cima dos fuzis, muito louco. E quando matam o filho, ela vai embora para a guerra com o mais novo (em dúvida nesse trecho! — a partir de 81:40). Muito louco. Brecht, né? E eu vi essa peça quando era garota, lembro que vi a Lílian Lemmertz fazendo a Senhora Carrar.

FR — A mãe da Júlia Lemmertz, não é?

B — Ela era muito boa essa mulher, uma atriz maravilhosa, daquelas atrizes de teatro. Porque tem uma diferença do ator de teatro para o ator de televisão. O ator de teatro tem a magia da interpretação, está lá ao vivo e em cores, com o público, tem aquela troca. Na televisão e no cinema você não tem isso, corta aqui, emenda ali, faz isso, faz aquilo, você não tem as técnicas. Durante a minha vida, fui aprendendo técnicas de teatro com os cursos que ia fazendo. Por exemplo, fiz um curso com uma senhora chamada Ana Maria Taborda, o nome do curso era “A desconstrução da interpretação”. Você trabalhava frase por frase. Aprendi tanta coisa nesse curso, de como você consegue colocar a emoção, a forma de colocar a emoção. E muitas técnicas eu ia aprendendo com o tempo, com pessoas, com professores, com coisas que ia lendo, a gente vai juntando, esse aprendizado.

FR — “Os fuzis da Senhora Carrar”, lembras de quem era a direção?

B — A Lílian Lemmertz era a Senhora Carrar, com um elenco de gente muito boa também. Mas a direção não me lembro.

FR — Viu em São Paulo ou no Rio?

B — No Rio. E eu sou louca por essa peça, tenho muita vontade de fazer. E ela está bem de acordo com a minha idade e tudo.

FR — Eu não li ainda essa peça do Brecht, são quantos personagens? Tem ideia?

B — Seis. Não, oito. Tem uns que entram e saem.

FR — Dá para revezar então?

B — Não, porque são personagens distintos. Um vilarejo, uma coisa de pescadores. E é uma mãe que não quer que o filho vá para a guerra. Mas muito louco, Brecht é muito bom.

FR — Gosto muito dele aquela peça “A alma boa de Setsuan”.

B — Menino, eu pensava que aquilo era um cara que estava ali, de blusa azul! (Aponta o manequim de uma loja, no shopping center onde foi feita a entrevista, em 2019) E esse cara não se mexe? (risos)

JCB — E Beckinha, tu não pensas em dirigir, ter um grupo, de repente?

B — Não, grupo não quero ter, não. Não tenho mais paciência, não. Muito problema, sabe? Um nego que bebe, outro que se droga, outro que não vai, outro que…

FR — Outro que tem noia, se coloca… (risos)

B — Tem noia, que é noiado. Não! (risos) Não aguento essas coisas. Eu trabalho assim: você tem um grupo, me convida para fazer um personagem, vou e faço o personagem. Mas não tenho nada a ver com o teu grupo, com as confusões que teu grupo tem. Eu não quero mais para mim, sabe? Já tive muitas, já tive muito aperreio. Minha vida não é só glórias, já tive muito aperreio, vontade de matar mesmo. Eu não tenho preconceito, eu fumo, eu bebo, já cheirei, já fumei, fiz o diabo. Mas nunca no meu trabalho. Então não admito que a pessoa vá ensaiar drogada, vá apresentar drogado. Até um copo de cerveja que você tome vai interferir, sim. Porque, para você interpretar, tem de estar totalmente envolvido no trabalho. Todo o seu sistema está ligado. Se tiver qualquer coisa que mexa com isso, estraga. Já tive muita briga com o que as pessoas fazem. Depois que acaba, mano, beba, caia, cheire, fume, caia de cu trancado na sarjeta. Não quero saber. Vai acelerar uma coisa que você ainda vai dizer. É muito perigoso. Sempre tive, sei lá, um senso de levar o teatro a sério. Nem sempre as pessoas levam a sério.

FR — Como é que você vê a questão da formação? Você veio de uma época em que não existia curso de Teatro. Hoje como você vê? Há essa necessidade?

B — Ah, eu acho. Sabe o quê, Rider? As pessoas têm de estudar, não tem de ter esse negócio, “Ah, eu sou ator, eu sou ótimo”. Que nem uma atriz comediante local, que diz: “Para que ensaiar?” Se ela entra, faz qualquer marmota, acham graça e tá bom? Eu não concordo com esse tipo de trabalho, não gosto. Acho que tem de estudar, sim, tem de ter aqueles módulos todos, tem de fazer prova, tem de ir à luta, sim.

FR — Tem de ter um método.

B — Exatamente. Acho muito legal. A única coisa que não achei legal é que não pode entrar para dar aula lá (na Universidade do Estado do Amazonas) professor com mais de 50 anos. E eu não pude entrar para dar aulas lá porque tinha mais de 50 anos. Olha que coisa absurda! Eles não querem professor com mais de 50 anos na UEA. Achei isso uma coisa absurda.

JCB — E pode isso? Não é inconstitucional?

B — Achei que era inconstitucional, também.

FR — A Célia Gouvêa teve problema também na USP quando foi fazer o teste para entrar. Não houve impedimento formal. Mas o que fizeram? Eram pessoas mais jovens concorrendo com ela, e o que fizeram? “Não, a gente vai pegar o mais novo”, porque…

B — Porque essa vai ficar doente…

FR — É, essa coisa da saúde, e também que a pessoa mais nova vai se adaptar, aquele discurso todo uspiano. Quando a pessoa é mais velha, eles acham que é melhor não, que vai dar mais trabalho.

B — Aquele negócio do professor ser quanto mais velho, mais sábio, não reza na cartilha deles.

FR — Isso é horrível do Brasil, porque isso é coisa bem do Brasil.

B — Bem Brasil, porque na Europa isso jamais aconteceria.

FR — Até nos Estados Unidos. E quanto mais maduro, não é, Beckinha, mais refinado.

B — Sim, eu hoje acho que penso as coisas muito melhor do que pensava 30 anos atrás.

FR — Com certeza.

B — Eu queria ter naquela época a cabeça que tenho hoje, as coisas que penso.

FR — Eu tenho uma amiga em Nova York, a Patricia Hoffbauer, que entrou para ser professora na Universidade de Nova York com 50 e poucos anos. E ela dá aula em tempo integral. Outro dia falei com ela sobre uma entrevista que nós fizemos para ela, e ela respondeu, “Rider, ainda não respondi porque estou realmente sem tempo”. Porque o trabalho dela na universidade é em tempo integral, e ela já é uma mulher de 57, 58 anos. Ela entrou com 50 e poucos anos. Não foi com 40.

JCB — Nossa, não sabia que tinha isso.

B — Tem isso, tem isso.

FR — Mas você teria interesse de dar aula numa universidade, em algum curso.

B — Eu quis, mas fiquei tão injuriada por causa disso aí.

FR — Acho que deveria ter uma disciplina no curso de Teatro daqui sobre história do Teatro Amazonense.

JCB — Não tem, não?

FR — Não, não tem. Para as pessoas das outras gerações saberem.

B — A Selda fez dois livros.

FR — A Selda Valle da Costa. O que você achou desses livros, Beckinha?

B — Olha, achei legal. Poxa, é um registro. Quando eu era garota, o papai já falava de teatro do estudante, teatro social, como era o nome? (Tenta lembrar)

FR — Tinha o Teatro dos Artistas e dos Estudantes, não é? Eu não tenho esse livro dela, tenho o segundo.

B — O primeiro é muito louco, fala desse pessoal dos anos trinta, quarenta, ela e o Ediney (Azancoth) fizeram uma pesquisa. No segundo eu estou bastante.

FR — Claro, são os artistas da tua geração. Achei bem legal a pesquisa. Achei um pouco superficial a questão dos grupos, mas enfim…

B — É, eles não davam opiniões, iam registrando.

FR — Mas é muito bom que tenha em Manaus.

B — Também acho. Porque é história, que fica registrado.

FR — Sim, e é muito difícil fazer essa pesquisa, entrevistar as pessoas. A gente tem a intenção de lançar em livro essas entrevistas (do Pitiú Textual das Artes).

B — É bom mesmo, porque fica.

FR — Com certeza, pode ser referência nas escolas de teatro, como são os livros da Selda Valle. Espero que eles usem até, porque o livro de dança do Adalto Xavier (“Dançando conforme a música”, Editora Valer, 2002) eles usam como referência sobre dança. Eu converso às vezes com o pessoal de dança, e eles usam como referência.

B — E o Jorge (Bandeira) também dá aula nessa escola, e bota quente com os alunos em se tratando da história do teatro.

FR — Beckinha, e teus projetos atuais?…

JCB — Tem o do livro…

B — É, o lançamento do meu livro.

FR — Tem nome já o livro?

B — Tem: “Maninha, essas coisas só acontecem contigo!” (risos).

FR — Legal esse nome!

B — Porque toda vez que eu contava minhas histórias para as pessoas, elas diziam, “Maninha, essas coisas só acontecem contigo!”. E o nome do livro é esse!

FR — Legal, acho que vai vender bastante!

B — Ah, minhas histórias são muito engraçadas, cara! Na época é superdramático, mas depois eu fico rindo! Mesmo aquela do Amazonino, que foi terrível para mim. Mas eu escrevendo, fica engraçada. Eu tenho uma capacidade enorme de tornar engraçada.

FR — Você se distancia, não?

B — E fica engraçada! Quando ficam perseguindo a Rosinha, perseguem até o gato dela. O Sabino sequestra o gato da Rosinha. Mas isso aí é toda uma história, dentro de coisas que aconteceram, e avacalhando a situação.

FR — E peça de teatro você não escreve mais?

B — Não. A última que eu escrevi foi uma adaptação de “A cigarra e a formiga”, que era a “A cigarra anarquista”. Foi muito legal, foi apresentada várias vezes, participou de festivais e tudo.

FR — E esse projeto do Nelson Rodrigues?

B — O projeto do Nelson Rodrigues é meu e do Geraldo. Porque nós estudamos muito Nelson Rodrigues. Eu e o Geraldo, a gente acha que pode até ter alguém que estudou tanto quanto a gente, mas mais do que a gente, acho que não. A gente tem uma loucura por ele. E como ele é muito abrangente, a gente resolveu ficar com os filmes, as obras filmadas, e começar a analisar essas obras…

FR — E tem um texto do Nelson que você mais gosta?

B — Ah, são vários, é difícil. “Album de família” acho fantástico, “O casamento”, “Boca de Ouro”, nossa, acho fantástico! “Toda nudez será castigada”, “Bonitinha, mas ordinária”, “Engraçadinha”… As tragédias cariocas dele, é tudo muito legal.

FR — Mas você chegou a ver com o Antunes Filho alguma?

B — Vi, sim. Eu vi de Nelson Rodrigues “Os sete gatinhos”. Ah, vi “Vestido de noiva”. Vi duas montagens: uma com a Malu Mader, que foi horrível, não gostei, não é o forte dela. Porque tem gente que é boa em televisão.

FR — É, ela é muito boa em televisão.

B — Agora em teatro…

FR — E qual foi a outra montagem?

B — A outra foi uma montagem no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, com pessoal de lá, muito boa. Essa que vi da Malu foi no Rio, não gostei não, mas essa de Porto Alegre foi fantástica. Porto Alegre tem muito teatro bom.

FR — Tem. Acho que a Lílian Lemmertz é de lá.

B — É. E a Elis Regina. Um monte de gente de lá.

FR — O teatro tem muita gente de lá do Sul.

B — E o Fabrício (filho mais velho da Beckinha) mora lá.

FR — Em Porto Alegre.

B — É. Eu gostava muito de ir para lá, eu gosto de ir para lá.

FR — Eu adoro Porto Alegre.

B — O clima é maravilhoso, a cidade é linda, tem muita cultura. Dentro de Porto Alegre tem muita coisa, de teatro, de dança. Tem um lugar, não sei se você conheceu, o Gasômetro.

FR — Sim, eu dei oficina lá (2012, na Sala 209, na época dirigida pelo artista Eduardo Severino).

B — Legal, né? Tem tudo no Gasômetro, tem teatro. Um prédio antigão, uma fábrica antiga. E tem teatro para um lado, balé para outro, música.

FR — Lembra até um pouco o Sesc Pompeia, não é?

B — É, lembra um pouco o Sesc Pompeia.

FR — Muito legal ali. Mas parece que hoje, com essa crise, está um pouco desativado.

B — Pior é que muitos lugares, não é? Não só eles. Acho que até a Casa de Cinema, o Fabrício me falou. Do Jorge Furtado, que é a maior escola de cinema do Brasil. Jorge Furtado é muito bom, fiz curso com ele.

FR — O diretor de cinema.

B — É, era a escola dele.

JCB — E tu gostas dos (diretores) pernambucanos também? Kleber Mendonça Filho…

B — Gosto. Esses filmes novos… Ah, eu vi uma minissérie chamada “Justiça”, que se passa toda em Pernambuco. Gente, nunca vi uma coisa tão doida quanto aquela minissérie. Os atores quase todos pernambucanos.

FR — E você acompanha esses novos filmes, por exemplo, “Aquarius”. E do mesmo diretor, que também achei fantástico, “O som ao redor”.

B — “Aquarius” é muito bom, Sonia Braga está maravilhosa. Gosto muito desses filmes. Sabe o que a gente sente? Que está descentralizando a coisa de Rio e São Paulo. No Nordeste está aparecendo muita coisa, no Norte também, em Belém. Em Belém o movimento cultural é muito bom.

FR — Eu fiquei admirado com esse diretor, com “Aquarius” e “O som ao redor”.

B — Sim, é muito bom.

FR — E cinema em Manaus, você não se vê fazendo?

B — Eu tentei até entrar nesse movimento de cinema. Mas cara, é muito difícil, as pessoas são muito piradas, sabe? Tem gente que se acha e não sabe nada. Não sabe nada! Aquele Junior Rodrigues. Ele fazia, sabe, mas não tinha nenhuma base teórica de cinema. E de repente começou a se sentir o máximo, o cara e tal. Ele precisava estudar para caramba. Mudou até o nome, virou José Leão.

FR — Ele deu uma sumida também.

B — Ele se meteu em algumas confusões danada. O pessoal de cinema aqui, não sei como explicaria… Eles fazem coisa porque acham que é assim, mas não têm realmente um aprendizado.

FR — E você viu algum dos filmes do Sérgio Andrade?

B — Eu acho legal o Sérgio Andrade.

FR — “A floresta de Jonathas” e “Antes o tempo não existia”.

B — Eu vi, achei bem legais.

FR — Gosto mais do “Floresta de Jonathas”…

B — Na época do Festival do Minuto aparecia muito filme legal, muita gente legal fazendo. Mas foi uma coisa que aconteceu e parou. Achei que naquela época o cinema amazonense ia decolar.

FR — Tinha um movimento legal.

B — Tinha a Ízis Negreiros também, que era legal.

FR — Sim, o Geraldo (Langbeck) falou dela.

B — Tinha um bocado de gente que era legal. Mas tem um pessoal que vem e fica pouco tempo em Manaus, depois vai embora. Quer dizer, não pertence.

FR — Não cria um movimento, não é?

JCB — Beckinha, alguma coisa de que nós não falamos tu achas interessante para concluir nossa entrevista, alguma coisa que tu queiras dizer a respeito da cultura, do cinema, do teatro, aqui do Amazonas, ou do Brasil?

B — Gostaria que tivesse mais escolas de arte. Não falo só de teatro, não. De cinema mesmo. Tem um prédio que era do Posto Sete, que fica aqui na rua Recife (avenida Mário Ypiranga Monteiro), eu fiz até um projeto com um pessoal para pegar esse prédio e fazer uma escola de cinema, uma escola técnica de cinema. Mas não deu certo. Porque precisa, sim, de uma escola de cinema. De teatro já tem, precisa é que os grupos se unam mais, que não fique todo mundo esperando que a Prefeitura ou o Estado deem dinheiro. Pode-se fazer muita coisa sem dinheiro, coisas boas. Eu acho que deveria se investir mais nessa questão de desenvolver o teatro, o cinema, a dança.

BECKINHA: ICONOGRAFIA ANOS SETENTA

Fotos © Acervo pessoal de Ismael Farias

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Pitiú Textual das Artes
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