XVI FESTIVAL DE TEATRO DA AMAZÔNIA

Diálogos com artistas do Nordeste: Gyl Giffony e Kleber Lourenço

Artistas do Ceará e de Pernambuco revelam ao Pitiú Textual seus olhares sobre o XVI FTA, sobre performance arte e outros temas

Pitiú Textual das Artes
Pitiú Textual das Artes

--

Durante o XVI Festival de Teatro da Amazônia (FTA), realizado em Manaus no período de 2 a 12 de outubro deste ano, o Pitiú Textual das Artes conversou com os artistas cênicos Gyl Giffony (CE) e Kleber Lourenço (PE). Eles participaram da Mediação/Debate/Júri do festival, coordenado e realizado pela Federação de Teatro do Amazonas (Fetam) (1).

No diálogo com o artista, cocriador e coeditor do Pitiú Textual, Francisco Rider, Gyl e Kleber revelaram suas impressões sobre o festival e os espetáculos encenados em Manaus, e trocaram ideias sobre temas como performance arte e a relação entre as instituições de ensino de arte e o cenário artístico.

Gyl Giffony. Foto de Luiz Alves. Fonte: Mapa Cultural do Ceará/Secult-CE

Gyl Giffony é artista da Inquieta Cia. (Fortaleza-CE) e doutor em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp-SP), com estágio de investigação na Pontificia Universidad Catolica de Chile. Tem desenvolvido trabalhos com as Artes Vivas, Memória Social, Gestão, Produção e Direitos Culturais. Dentre suas principais realizações cênicas, destacam-se “Metrópole” (2012) e “Metrópole On-Line” (2021), “Esconderijo dos Gigantes” (2015), “PRA FRENTE O PIOR” (2016), “Devorando Heróis — A Tragédia Segundo os Pícaros” (2016) e “Tchau, Amor” (2022). É autor do livro “De quem é a cena? A regulamentação do exercício amador e profissional de atores e atrizes” (La Barca Editora).

Kleber Lourenço. Foto de Pedro Castro. Fonte: Jornal do Commercio (PE)

Kleber Lourenço é artista da dança e do teatro, educador e pesquisador em artes da cena. Doutorando em Artes pela UERJ e Mestre em Artes pela Universidade do Estado de São Paulo (Unesp). Dirige o Visível Núcleo de Criação, é integrante do grupo de pesquisas Motim — CNPq/UERJ e da Capulanas Cia de Arte Negra (SP). Colobora e integra a Descentradxs — Red Descentrar la Investigacíon em Danza e o Grupo Terreiro de Investigações Cênicas — CNPq/UNESP. Seus trabalhos concentram-se nas linguagens da dança e do teatro em cruzamento com as culturas populares, atuando nas áreas da coreografia, encenação e formação pedagógica.

Foi bailarino do Grupo Grial de Dança e da Compassos Cia de Dança, ambas em Pernambuco e trabalhou com vários coreógrafos no Brasil. Participou de residências artísticas na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, França e Portugal. Como encenador dirigiu espetáculos para diferentes grupos teatrais. Como formador destaca-se sua atuação no Núcleo de Artes Cênicas do Sesi — SP, Programa Fábricas de Cultura, Programa Qualificação em Dança e em ações curatoriais no Itaú Cultural e Secretaria da Cultura de São Paulo. Com o Visível Núcleo de Criação é intérprete-criador dos espetáculos “Jandira” (2005), “Negro de Estimação” (2007), “O Acidente” (2010), “Estar aqui ou ali?” (2011), “Daquilo que move o mundo” (2012), “Ensaio para camuflagem” (2015) e “Pedreira!” (2022) Coordenou e produziu o projeto Curta Teatro (2010/2011), que promove o intercâmbio entre cineastas e criadores de teatro.

Raiana Prestes, Sam Kelwen e Nick Queiroz em cena de “Desassossego”, espetáculo do Grupo Jurubebas de Teatro, com direção de Felipe Jatobá, apresentado na Mostra Jurupari; a montagem ganhou o Prêmio de Melhor Direção no XVI FTA. Foto de Alonso Júnior.

PITIÚ TEXTUAL DAS ARTES: Parafraseando a pesquisadora amazônica Neide Gondim (2), a Amazônia é uma invenção (3), através do olhar do europeu e, diria, do hemisfério norte. O que te faz relacionar o nome “Amazônia”, no seu imaginário? Condiz com suas experiências/vivências em Manaus?

GYL GIFFONY: É quase impossível não recorrer à floresta, seus seres viventes, os rios, as grandes irmãs árvores, e nossos povos originários. Tudo isso causa em mim muito poder e mistério, mas também reconheço sua forte dimensão de disputas e conflitos frente a interesses e lutas nessa sociedade complexa em que vivemos. Em termos de iconografias patrimoniais, as danças populares, mitos e lendas, o Teatro Amazonas, também me referenciam bastante a Amazônia. Tinha uma imagem do teatro, mas seu interior e seu entorno, o Largo, o favorecem bastante. Nesses dias em Manaus, percebo que fui encontrado por muito mais que isso. Fui abraçado por uma cidade culturalmente polifônica e vibrante, com muitos sabores e calor não só da temperatura, mas principalmente humano. Senti nesses dias muita mistura, eu não dimensionava o convívio intercultural que se dá em Manaus, muitas línguas estrangeiras e sotaques diferentes do nosso país escutei andando pelas ruas, vendo a cidade e os espetáculos do XVI Festival da Amazônia que apresentou realizações cênicas de quatro regiões do Brasil.

KLEBER LOURENÇO: Eu não conhecia os estudos da pesquisadora Neide Gondim, e a partir dessa citação que vocês trouxeram na pergunta, fui procurar conhecer. Com o pouco que li, já adorei os seus apontamentos que desconstroem esse imaginário colonial criado que recai sobre a população amazonense. No meu caso, fui a Manaus mais interessado em conhecer a prática artística local do que me camuflar de viajante aventureiro da floresta. Ainda mais porque tenho amigos artistas da cidade com quem já venho conversando, trocando e que já me apresentaram uma Manaus diferente do imaginário dos tais viajantes de outrora. Encontrei sim: uma cidade com uma urbanidade pulsante, muito conectada com discussões urgentes e globais, ao mesmo tempo, com sua natureza geográfica singular (mas não exótica). O que não seria diferente, pois tem uma cultura local bem genuína. Quero dizer com isso que não fui com grandes expectativas ou imagens criadas anteriormente, fui aberto ao encontro do que estava por vir. O meu pequeno mergulho no rio (risos) e no Centro da cidade (pois foi a região onde mais circulei) me fez mais enxergar ritmos, pulsões e dinâmicas de vida mais semelhantes a outras, do que uma hiperbólica diferença de mundo, como conta a Neide nas narrativas do livro. E, por vezes, me percebi entrelaçado aquele cotidiano.

Espetáculo “Recolon”, de Leo Scantbelruy, na Mostra Ednelza Sahdo. Foto de João Paulo Machado. Fonte: Arquivo do artista.

PTA: Como foi a imersão no XVI FTA, que teve na sua programação a Mostra Jurupari (4), competitiva, e a Mostra Ednelza Sahdo (5), não competitiva? Alguma sugestão e contribuição?

GG: É sempre um exercício precioso retomarmos a vida cultural nesse momento em que experimentamos um após a contingência pandêmica. Por outro lado, estar no júri do XVI FTA possibilitou a mim reascender aos espaços de permanência, fruição estética e discussões críticas dos festivais, que a maior parte deles tem perdido por vários motivos. que vão da falta de agenda de artistas aos escassos patrocínios. É difícil a artistas ou grupos permanecerem nos festivais, acompanhando toda a programação, e assim se perde a possibilidade de reconhecer mais equipamentos culturais da cidade, assistir a outras obras e intercambiar entre artistas, públicos, técnicas, técnicos e gente da produção. Estive por pouco mais de 10 dias em Manaus, acompanhando uma média de 30 espetáculos fluentes em diversas vertentes teatrais. Estou muito agradecido por essa oportunidade tão valiosa, de expandir minhas percepções e me fortalecer junto as pessoas que realizaram esse importante evento. Além do desejo de continuidade ao FTA e todas as ações da Federação de Teatro do Amazonas, me chamou muita atenção as ações de memória artística, desde a homenagem a Ednelza Sahdo às publicações de biografias de artistas e grupos. Esse é um ponto forte do Festival. Percebo ainda que os espaços de encontro de pensamento público e trocas, como os debates e festas também trazem uma oxigenação outra à programação.

KL: Foi uma intensa e prazerosa jornada! Como falei para alguns amigos, foi uma grande imersão de trocas, reflexões sobre arte, cultura e, sobretudo convívio. O festival teve uma numerosa programação de espetáculos (três mostras acontecendo ao mesmo tempo) e fiquei impressionado com a participação do público em todas as sessões e debates durante os 11 dias em que estive. Bom, algumas sugestões já foram dadas à equipe da coordenação do festival em nossos momentos de avaliação, para que possam desenvolver ainda mais as futuras edições. O que gostaria de ressaltar e parabenizar aqui é a força da articulação e mediação criada por toda a equipe para garantir esse público presente e plural (porque abarcava desde público espontâneo ao de escolas e universidades). Desejo que essa força seja motriz e se renove cada vez mais olhando pra dentro e para as margens do rio… E além mar.

Espetáculo “Gotas de Saberes”, da Companhia Arteatro de Roraima, que ganhou, no XVI FTA, o prêmio principal de Melhor Espetáculo da Mostra Jurupari, de peças inéditas. Anderson Nascimento (na foto) recebeu o prêmio de Melhor Ator. Fonte: Mídia Roraima.
Espetáculo “Boxe com Palhaçada”, do Grupo Compalhaçada, apresentado na Mostra Ednelza Sahdo. No elenco, Ariane Feitoza, Idelson Mouta e Jean Linhares. Fonte: Sesc Amazonas

PTA: Percebe-se há algum tempo que a dramaturgia hoje é focada na performatividade cênica e corporal, e menos na narratividade que possuem personagens e texto no sentido tradicional. Ou seja, a cena se expande, não faz uma escolha dicotômica: isso é teatro / isso não é teatro / isso é performance / isso não é… Isto é, uma linguagem contemporânea híbrida. Nesse ano, a XVI edição do FTA estabeleceu, a nosso ver, essa cena expandida; e recentemente o X Festival de Dança do Amazonas (FAD) também. Como vocês recebem essa possibilidade?

GG: Percebo que na contemporaneidade esse é um caminho já sem volta, ainda que haja resistências, o que também é parte das construções tradicionais e de entendimentos históricos do que refere cada linguagem artística. O que interessa é sabê-las, cada uma, como uma invenção. Assim, as dinâmicas criativas que as forjam encontram-se em movência. Dentro desses embates (“o que é ou não”), acredito que os espaços dos festivais devam ser pedagógicos não somente no sentido de evidenciar o “novo” ou o “incomum”, mas, enquanto plataformas ampliadoras de nossas imaginações e gramáticas cênicas. Essa perspectiva múltipla só acontece se tivermos uma programação plural, ou que venha fortalecer realizações cênicas por muito tempo desconsideradas.

KL: Sim, cada vez mais e já há algum tempo (situaria até mesmo, antes de 2020), curadores que compõem as equipes de programação desses festivais vêm buscando apresentar novos olhares sobre uma cena híbrida, ou “cruzada”, para jogarmos outros termos na roda (risos). Embora você cite neste momento SP e AM, este movimento tem acontecido numa escala cronológica de anos anteriores em vários festivais do país, sediados em PE, CE, BA, RS, DF, GO, RJ, lembrando agora, de alguns que conheço de perto. A edição deste ano do FTA realmente esteve em consonância com todo esse movimento que tem acontecido e recortando também o seu olhar sobre isso, quando propõe na programação um forte diálogo entre a cena local e a nacional, com espetáculos vindos de outras regiões do país. E também na escolha dos curadores: Dyego M (AM), Mariana Pimentel (CE) e Felipe de Assis (BA) e nós da comissão julgadora/debatedores: Kleber Lourenço (PE/SP), Monique Cardoso (CE), Gyl Giffony (CE), Vanja Poty (SP/AM), provocando uma ação descentralizada enquanto pensamento territorial. A meu ver, o mais positivo disso é proporcionar aos seus públicos o acesso a diferentes experiências artísticas, modos de ver/pensar os mundos, fruir arte e cultura. Esses festivais cumprem uma função vital de aproximação entre arte e sociedade em várias camadas: desde uma aproximação com es artistes e suas obras à capacitação profissional do setor (formação artística/técnica, empregabilidade, etc). Enfim, promover um contínuo movimento de percepção dos tempos, dos modos de fazer e das presenças (que implica ver quem somos e onde estamos) pode estabelecer uma dinâmica viva na existência desses festivais e demais ações em arte.

Espetáculo “A Corda e o Acordo”, da Companhia Vitória Régia, na Mostra Jurupari. Foto de arquivo da cia.
Espetáculo “O Cavaleiro da Armadura de Sol”, da Associação ArtBrasil, com direção de Ana Cláudia Mota e estrelado por Ana Oliveira, Roberto Carlos Júnior e Richards Harts. Mostra Ednelza Sahdo. Foto de WMamud Fotografia e Design.

PTA: Alguns espetáculos apresentados no XVI FTA fizeram uso, nas falas dos personagens, da Linguagem Neutra (6). Porém, em algumas dessas obras apresentadas, pessoas presentes (travestis, transsexuais, não binárias, intersexo, gênero fluido, assexuais, cisgêneros etc.) nas apresentações de alguns espetáculos sentiram insatisfação e ficaram incomodadas com o modo como essa linguagem foi usada. Para essas pessoas, era uma forma depreciativa. Gostaríamos de ouvir de vocês sobre a questão do uso da linguagem neutra na cênica e na dramaturgia contemporânea, assim como a insatisfação de alguns colegas da comunidade que estavam acompanhando o festival.

GG: Compreendo a linguagem neutra como um modo e meio de termos entre nós enquanto sociedade uma restruturação dos parâmetros binários de gênero, estruturando uma abertura a todes, todas e todos. É uma luta importante, da qual as artes, enquanto ambiente de liberdade e diversidade, devem fazer parte.

KL: Estamos num momento de reconstrução da linguagem, e se isto é um movimento social, é mais do que pertinente que a arte que também é linguagem faça uso desses instrumentos para demarcar as existências. Sou muito a favor que a linguagem neutra esteja presente nas dramaturgias e nos recursos cênicos possíveis. No caso do festival, recordo apenas de um trabalho em que também percebi o uso depreciativo da linguagem. No entanto, não foi um espetáculo que estava na nossa mostra e não o levamos a debate. Acho que seria importante que es artistes da cidade continuassem a discussão sobre a experiência acontecida, não como julgamento ou punição do grupo/artistes envolvidos no caso, mas como uma oportunidade de transformação e aprendizado mesmo, afinal tudo isto é muito novo, e estamos re-aprendendo a lidar com estas questões. Vejo mesmo como um processo de aprendizado coletivo. Aqueles que estão mais à frente desta prática precisam orientar os demais.

FRANCISCO RIDER: Assisti a dois ou três espetáculos no XVI FTA, nas mostras Jurupari e Ednelza Sahdo, que utilizaram a linguagem neutra, e eles me mobilizaram alguns questionamentos e incômodos, provocando em mim gatilhos que são vestígios da minha infância na Manaus dos anos 1960–1980: provinciana, machista, homofóbica, patriarcal e sob forte domínio da lógica repressiva e autoritária da ditadura civil militar. E pouco se transformou na sociedade manauara, nesses aspectos. Minha infância e adolescência foram vividas nesse contexto político-social, em que as famílias se reuniam para assistir na televisão a programas humorísticos que apresentavam quadros com personagens gays e travestis, interpretados por atores heteros, mas de modo caricatural e estereotipado. E naquele momento, sem o acesso à informação como a criança de hoje tem, mesmo assim eu percebia que as construções dessas personagens alimentavam o clichê do que é ser um homem e uma mulher LGBTQI+. E ao assistir a esses programas, com a presença de meus pais, irmãos e irmãs, que alimentavam o estigma e a violência contra corpos LGBTQI+, o que se via ali era a caricatura do que é “ser” esses corpos, interpretados por atores heteros. E foi assim que eu me senti ao testemunhar dois ou três espetáculos no FTA, que fizeram o uso da linguagem neutra com a clara intenção de provocar risinhos na plateia. Temos que ficar atentos às essas manifestações cênicas que se utilizam de situações de “humor” ao fazer uso da linguagem neutra e que, no mínimo, contribuem para a estigmatização dessa linguagem; uma conquista de parte da sociedade brasileira (a comunidade LGBTQI+), que deve ser respeitada. Práticas democráticas e de inclusão não nos são dadas, mas são uma construção e conquistas cotidianas e um processo de aprendizagem coletivo.

“Durante muito tempo a televisão brasileira se ocupou de representar a homossexualidade de uma forma deturpada, colocando pessoas com essa orientação sexual como ‘bicha louca’. Esse tipo de representação não despertava incômodo em relação aos espectadores, já que o estereótipo era feito para gerar entretenimento, não questionamentos ou críticas. (…) Nos anos 80 e 90, em programas de humor como Viva o Gordo e Chico Anysio Show, as representações homossexuais apareciam através de personagens caricatos, com falas marcantes e roupas essencialmente coloridas que, no imaginário e na cultura popular, eram tidos como “cores de mulher. (…) Outro reforço para a caricatura dessas representações eram as falas marcantes (os bordões) dos personagens, que fixavam na cultura popular e dentro das casas dos espectadores quais eram os modos de agir de pessoas homossexuais, por exemplo.” (MARIANA, 2022)

Espetáculo “Preciso Falar”, de Daniely Lima, apresentado na Mostra Jurupari e premiado com o Prêmio Jurupari de Incentivo à Pesquisa. Foto de Larissa Martins. Fonte: A Crítica Online
Espetáculo “Corpos-Troncos Etc Jaz”, de Francisco Rider, apresentado na Mostra Ednelza Sahdo. Foto de Alonso Júnior.

PTA: O que é Performance para vocês, mas na perspectiva do que vocês experienciaram no XVI FTA?

GG: A perspectiva da performance que mais me interessa ultrapassa o campo da linguagem, interessa-me observar performances cotidianas, ordinárias, principalmente do que é mais-que-humano. O desenho do suor no meu corpo, duas árvores se encontrando no meio da rua, a luminosidade incidindo no monumento, a máquina que produz o sorvete de açaí… Enfim para mim a performance é um caminho de ampliação dos meus entendimentos para estar com outros desempenhos e infortúnios da vida e da morte.

KL: Ainda que na perspectiva do festival, seria difícil definir o que é performance. Além do que, prefiro fugir de qualquer apontamento que sugira uma definição deste termo que abarca tantas reflexões. Mas o que posso dizer é que vivenciei, percebi muitos movimentos performativos em vários espetáculos. Chamo de performativo a tentativa de trazer foco para uma determinada forma de fazer. O seu fazer poético, digo. Uma tentativa de performar sobre um determinado imaginário, seja ele ficcional, documental, social, poético…

Espetáculo “A mulher que desaprendeu a dançar”, do Ateliê 23, na Mostra Ednelza Sahdo, com direção de Taciano Soares e estrelado por Carol Santana. Fonte: Arquivo do artista.
Espetáculo “O Jardim Enfeitiçado”, da Companhia Metamorfose, com direção de Socorro Andrade, na Mostra Jurupari. No elenco, Raphael Frota, Karyme Dibo, Débora Rodrigues, Nicole Tavares e Roberto Carlos Jr. Foto de divulgação. Fonte: D24AM

PTA: Os cursos de artes nas universidades públicas e privadas estão aí, contribuindo para a formação das pessoas, isso é positivo e importante. Por outro lado, em Manaus, percebe-se que há pouca interação dos docentes, em especial os que vêm de outras realidades geográficas, com a cena local (grupos, cias e artistas que não estão no ambiente acadêmico). Se há, é muito pontual, como, por exemplo, alguns docentes presentes no FTA, mas porque houve a parceria entre a universidade e o FTA e a participação de obras de alunos(as) da universidade; do contrário, percebe-se a ausência dos docentes na cena local. Qual o olhar de vocês sobre a universidade brasileira (pernambucana e cearense, por exemplo), mundo acadêmico brasileiro e a relação desta com o mundo além dos muros da universidade? Alguma reflexão/sugestão?

GG: Em Fortaleza essa interação não é muito distinta, contudo, esse isolamento dos saberes acadêmicos não é somente do teatro e das artes. Em seu tripé de ensino, pesquisa e extensão, as Universidades têm muitos caminhos a fazer, e ainda pecam bastante na extensão. Ademais existe a infeliz lógica meritocrática do concurso e funcionalismo público. Muitas pessoas se burocratizam ao adentrar um concurso e viver o ambiente acadêmico, e com artistas que pesquisam não é diferente, além do que o trabalho demanda muito do tempo dessas pessoas. Percebo por meio de colegas que é um esforço complexo ultrapassar essas barreiras, mas há experiências éticas, cabendo a quem colabora com a Universidade expandi-la como espaço de saber e vivência, e principalmente se você pesquisa, ensina e aprende sobre teatro, tem que haver um sentido primeiro de pensar e estar com o local que habita. Temos hoje no Brasil exemplos sólidos de pessoas que articulam presença na cena, pesquisas acadêmicas e contribuições com seus locais. Temos inspirações, portanto.

KL: Percebo que existe mesmo uma separação entre esses dois mundos (o acadêmico e o artístico local). Vi isso em alguns lugares em que morei: via isso em Pernambuco e vejo (hoje, bem menos) em São Paulo, onde resido atualmente. Mas, percebo também, que esta pauta tem sido levantada cada vez mais e modificada a duras penas, com a entrada de uma nova geração de artistas/docentes dentro da universidade e de artistas da cena local que se interessam e entendem a coligação entre a produção artística e a formação. No entanto, isto também tem a ver com um movimento cíclico dos modos de operar dentro da universidade e fora dela nas cenas locais. São como aqueles velhos embates entre: tradição e contemporaneidade, amadores e profissionais, formação empírica e formação técnica etc. Embates que, a meu ver, já não contribuem em nada. É uma luta que ainda é bem grande porque envolve narrativas de poder, mas vejo pequenas mudanças, sim. Mudanças que já criam percepções positivas, como por exemplo, a participação de grupos da universidade nesta edição do FTA e alguns docentes presentes na programação e nas ações paralelas do festival. Pude conhecer alguns e fazer boas conversas, bem como dialogar com alguns grupos da cidade filiados à federação. Há um movimento micropolítico acontecendo, me parece. O que precisamos é alinharmos nossos discursos de acordo com a potência das nossas práticas. Estes dois universos devem se retroalimentar, um existe na luz do outro, o pensamento e a prática artística é o motor da formação de um artiste em qualquer desses espaços. Claro, estou falando ideologicamente e sei que existem determinadas circunstâncias que teimam em separar essas práticas, porém, acredito e luto pela junção desses espaços: a docência e o fazer cênico podem caminhar juntes.

“RetrAtos de Qorpo-Santo”, da Cia A Rã Qi Ri, na Mostra Ednelza Sahdo. Com direção de Nereide Santiago e elenco composto de Augusto Marinho, Rosejanne Farias, Rodrigo Verçosa, Gorete Lima, Fabiene Priscila, Micaela Maia e Adilson Araújo. Foto de Laryssa Gaynett.
Espetáculo “Se eu Fosse um rato”, de Ítalo Rui, na Mostra Ednelza Sahdo. Foto de Tadeu Rocha. Fonte: arquivo do artista.

PTA: Aqui deixamos para vocês um espaço aberto para algum relato (sensação, sensorialidade, epifania, afecto, outros/as).

GG: Quero abraçar e agradecer essa oportuna comemoração que foi estar no XVI FTA. Como uma pessoa vinda do Nordeste, senti-me o tempo todo em um sentimento ancestral pisando esse chão de Manaus que faz solo e pouso aqui no meu coração. É muito importante saber de nós!

KL: Querides Pitiús, começo agradecendo pelos momentos que tivemos de conversas caminhando nas ruas entre um espetáculo e outro, entre uma ida ao bar ou restaurante do festival. Conversas que desaguaram nesta entrevista. Muito grato mesmo, por essas trocas que alimentam! Nas frestas do festival, não como o viajante colonial citado pela Neide Gondim que abriu nossa conversa, fui me molhar no vosso rio… mais como um menino curioso em busca de descanso e absorção daquela paisagem. Voltei flutuando, com o corpo em constante balanço. Deixo alguns íntimos escritos meus sobre essa paisagem flutuante em que espero retornar: “Uma casa que flutua… as águas escuras que sustentam os passos de toda uma humanidade. Entre risos e sustos a alegria dos transeuntes que nadam com o boto. Aquele que vai e volta à procura de comida. Aquela mulher horas a fio submersa… corpos troncos boiam exibindo o peso da flutuação. O tempo passa devagar, o movimento é sutil e o balanço é a busca por um equilíbrio qualquer.” — Manaus, 15/10/22.

Não tenho muitas fotos que ilustrem a conversa. Mas enviarei uma que pode servir para a epifania final. Beijos.

Manaus. Foto de Kleber Lourenço. Fonte: Arquivo do artista. 2022.

XVI FTA | Lista dos espetáculos selecionados

MOSTRA JURUPARI (COMPETITIVA)
CorpoMáquina (SP) — Robo.Art
A Corda e o Acordo (AM) — Companhia Vitória Régia
A Máquina do Tempo (RJ) — Gui Stutz
Amar é Crime (SC) — Jônata Gonçalves
Desassossego (AM) — Felipe Maia de Souza
Gotas de Saberes (RR) — Cia Arteatro
Índice 22 (SC) — Téspis Cia. de Teatro
O Jardim Enfeitiçado (AM) — Cia de Teatro Metamorfose
O ovo da Cuca (SP) — Grupo Desembargadores do Furgão
Onde Morrem os Pássaros? (RO) — Cia de Artes Clandestinos
Seu Lixo Performance (RO) — Amanara Brandão Lube
Sopro d’Água (PE) — Gabi Holanda

MOSTRA EDNELZA SAHDO (NÃO COMPETITIVA)
A mulher do fim do mundo (AP) — Cia Casa Circo
A mulher que desaprendeu a dançar (AM) — Ateliê 23
Boxe com palhaçada (AM) — Grupo Compalhaçada
Corpos-troncos etc jaz (AM) — Francisco Rider
Experimento 1: masculino? (MG) — Cris Diniz
Ficções do interlúdio (PR) — Tânia Farias e Lucas Fiorindo
Ikuâni (AC) — Cia. Garatuja de artes cênicas
Murillo João Ramos Acácio Pereira da Costa: um artista da luz vermelha (CE) — Manada Teatro
O cavaleiro da armadura de sol (AM) — Associação Artbrasil
Recolon (AM) — Leo Scantbelruy
Se eu fosse um rato (AM) — Ítalo Rui
Traços de esmeralda (PA) — Ana Flávia Mendes

XVI FTA | Espetáculos e artistas premiados da Mostra Jurupari

Disponível no perfil da Fetam no Facebook

Direção: Felipe Jatobá
Espetáculo: Gotas de Saberes
Ator: Anderson do Nascimento
Atriz: Denise da Luz
Ator coadjuvante: Roberto Carlos Jr.
Atriz coadjuvante: Koia Refkalefsky
Dramaturgia: Max Reinert, por “Índice 22”
Maquiagem: “Amar é Crime”
Pesquisa em formas animadas: Ana Pessoa
Dramaturgia do corpo: Sopro D’Água
Incentivo à pesquisa cênica: Daniely Lima
Figurino: Gabi Holanda
Cenografia: Daniel Olivetto
Iluminação: Natalie Revorêdo
Designer de som: Rinaldo Santos

Nick Queiroz em cena de “Desassossego”, do Grupo Jurubebas de Teatro, com direção de Felipe Jatobá; o espetáculo ganhou o Prêmio de Melhor Direção, no XVI FTA. Foto de Alonso Júnior.

Notas

  1. A Fetam foi criada no ano de 1992, sendo instituída juridicamente em 1999. Foi elaborado o estatuto de classe como instituição cultural sem fins lucrativos, cuja razão social, filosófica e política é a representação profissional de artistas e técnicos em Artes cênicas no Estado do Amazonas, fazendo parte de suas atribuições a congregação de grupos teatrais e artistas independentes de Teatro, além de produtores teatrais de toda a Amazônia. Fonte: https://fetam.com.br/nossa-historia/. Acesso em: 17/11/2022.
  2. Neide Gondim (falecida em 2018) faz parte da primeira geração de pensadores semeados na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) empenhados no esforço de pensar a Amazônia em um movimento inverso do que costumeiramente é feito, ou seja, de dentro para fora. Disponível em: https://www.amazonamazonia.com.br/2019/12/27/a-invencao-da-amazonia-segundo-neide-gondim/. Acesso em 17/11/2022.
  3. “A obra faz o exercício de pensar sobre o que pensavam aqueles europeus que chegaram até a Amazônia pela primeira vez no século XVI. Esses conquistadores ganharam a vez de contar a história e o fizeram do ponto de vista de onde partiram: a Europa. (…) A Invenção da Amazônia (…) reconstrói brilhantemente os caminhos desse pensamento que veio a fundar uma tradição estética sobre a Amazônia, onde predomina o paradoxal, o hiperbólico, o contraditório, o infernal e o paradisíaco. A autora redesenha o pensamento europeu dos homens que se atiraram ao mar em busca de comprovar as teorias que especulavam sobre o mundo medieval que, naquele momento, mudava de forma, antes quadrado, depois redondo.” (Dassuem Nogueira). Disponível em: https://www.amazonamazonia.com.br/2019/12/27/a-invencao-da-amazonia-segundo-neide-gondim/. Acesso em 17/11/2022.
  4. Jurupari. “Na versão mais conhecida, Jurupari é o deus da escuridão e do mal, que visita os indígenas em sonhos, deixando as vítimas assustadas ao causar pesadelos e presságios ruins. Durante o sonho, a pessoa é impedida pelo deus de gritar, causando asfixia.Essa versão foi estimulada e contada pelos jesuítas como a personificação do próprio mal, descaracterizando as crenças indígenas sobre a entidade divina. Em outra versão, Jurupari era filho de uma indígena chamada Ceuci, uma virgem que acabou tendo um filho a partir de um milagre. (…) Ceuci deu a luz ao seu filho, Jurupari, ‘o filho do sol’.” Disponível em: https://portalamazonia.com/amazonia/conheca-a-historia-do-demonio-dos-sonhos-jurupari-o-deus-do-sol. Acesso em: 17/11/2022.
  5. Ednelza Sahdo (Manaus/AM, 1944) é uma atriz, cantora e diretora (…). Com mais de 50 anos de carreira, começou cantando na Rádio Difusora aos 5 anos de idade. É conhecida como Dama do Teatro Amazonense. Participou dos filmes “A Festa da Menina Morta” (2008), de Matheus Nachtergaele, e “Criminosos” (2008), de Sérgio Andrade. Em 2014, foi enredo da escola de samba Grande Família, em Manaus. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Ednelza_Sahdo. Acesso em: 17/11/2022.
  6. A linguagem não binária, também denominada linguagem neutra, é um fenômeno social, político e linguístico vinculado às lutas identitárias de grupos LGBTQ+. Criada há cerca de 10 anos, no contexto das redes sociais e do surgimento de coletivos militantes, grafa ‘x’, ‘@’ ou ‘e’ em substantivos para neutralizar o gênero gramatical. O ‘e’ é a primeira experimentação pronunciável e vem conquistando falantes. ‘Todes’ já é uma palavra popular, utilizada para substituir o masculino genérico — “Bom dia a todes” –, ou em contexto no qual o falante quer contemplar todos os gêneros, especificando-os: “Bom dia a todas, todes e todos”. Também propõe os pronomes pessoais Ile e Elu e suas derivações. Disponível em: https://revistaeducacao.com.br/2021/12/15/linguagem-neutra-ganha-forca/. Acesso em 17/11/2022.

Referências

MARIANA, Vitoria. Representações homossexuais na televisão dos anos 80 e 90. ComunicaUEM, 18 abr. 2022. Disponível em: http://www.dfe.uem.br/comunicauem/2022/04/18/representacoes-homossexuais-na-televisao-dos-anos-80-e-90/. Acesso em: 26 nov. 2022.

--

--

Pitiú Textual das Artes
Pitiú Textual das Artes

Site de conteúdo dedicado a Teatro, Dança e Performance do Norte do Brasil