Márcio Souza: ‘Não faço mais teatro em Manaus, não tenho paciência’

Pitiú Textual das Artes
Pitiú Textual das Artes
28 min readAug 10, 2019

Escritor e dramaturgo amazonense fala sobre o fim do Tesc, a política cultural no Brasil e no Amazonas, Lei de Incentivo à Cultura e muito mais

Márcio Souza segura livro à sua frente
Márcio tem mais de 30 livros e peças publicadas, dentre eles “A expressão amazonense” (1977), que analisa cena cultural no AM Foto © Ingrid Anne/Manauscult

Hoje, mais do que nunca, ser artista é uma forma de ativismo. Quem afirma isso é o escritor e dramaturgo amazonense Márcio Souza, que há décadas acompanha de perto os caminhos e descaminhos da cultura e da arte no Amazonas e no Brasil. “Não só de ativismo ideológico, é uma questão de sobrevivência”, diz.

A equipe do Pitiú Textual das Artes entrevistou o autor do clássico — e ainda hoje atual — livro “A expressão amazonense” (1977) no último dia 21 de julho, em seu apartamento no Centro de Manaus (AM). No bate-papo com temas variados, Márcio falou sobre Lei Municipal de Cultura, uma de suas iniciativas à frente do Conselho Municipal de Cultura (Concultura), além de Funarte, MinC, política, cultura, artes, entre outros assuntos.

Márcio ainda esclarece de uma vez por todas sobre a situação (ou não situação) do Grupo de Teatro Experimental do Sesc (Tesc), que ele dirigia desde os anos 1970. “O Tesc acabou dois anos atrás”, sentencia ele. Mas o grupo que marcou o teatro no Amazonas não deve cair no esquecimento: o diretor antecipa que está em produção um documentário sobre a trupe. “Vai ser lançado aqui em dezembro, quando o grupo faria 50 anos”.

JONY CLAY BORGES: Gostaria de começar falando a respeito do Tesc — Grupo de Teatro Experimental do Sesc. Há uma certa desinformação nas últimas notícias sobre o grupo, com o Sesc/AM dizendo que estaria acontecendo uma reformulação, e os atores dizendo que houve de fato um desmanche total. Qual a situação real do Tesc?
MÁRCIO SOUZA:
O Tesc acabou dois anos atrás, por uma decisão tomada num momento de crise no Brasil todo. Por exemplo, o Sesc São Paulo rompeu com todos os contratos dos estrangeiros que estavam em São Paulo. A Ariane Mnouchkine (diretora francesa de teatro e cinema) voltou para a França, o Bob Wilson (encenador, coreógrafo e dramaturgo), todos eles voltaram para seus países porque não havia condições de mantê-los aqui. E, para não prejudicar os artistas brasileiros, o Sesc lá, que tem poder de fogo, manteve os projetos nacionais. Aqui se teve de fazer uma opção: é um dos Sescs menos aquinhoados, e o que se recolhe aqui não significa quase nada no orçamento do Sesc, para manter suas atribuições. Eles decidiram manter saúde e educação; os outros segmentos foram interrompidos.

O Tesc tinha recursos da Petrobras também, via Lei Rouanet, mas para o Sesc custava R$ 350 mil por ano. Os atores todos tinham salário, e quem paga salário para alguém paga outro para o governo. Estávamos no processo de encenar o “Tartufo”, os figurinos estavam prontos e tudo, quando eles decidiram refazer a programação do ano. Cumpriram todas as obrigações, chamaram o elenco, deram aviso prévio, dentro da lei. Pessoalmente senti muito, pois perdi as noites de diversão que tinha. Eu estava como o diabo gosta: passava o dia escrevendo, eventualmente ia ao Conselho (Concultura) pela manhã estudar projetos, à tarde escrevia, e à noite ia ao teatro. É uma pena.

JCB: Há algo sendo feito atualmente relacionado ao grupo?
MS:
Devemos começar no final de agosto, início de setembro, a gravação de um documentário para registrar a experiência do Teatro Experimental do Sesc. O Gustavo Soranz (documentarista e coordenador do curso de Comunicação Social da Fametro) vai dirigir um documentário, já aprovado, faltando apenas detalhes de documentação. Vai ser lançado aqui em dezembro, quando o grupo faria 50 anos, e deve passar também na programação do canal Curta!

Já temos pedido para mandar para a França, vamos arranjar mais recursos para a legendagem em inglês e francês. A Universidade de Sorbonne — que teve muita conexão com a experiência do Tesc, tendo inclusive sido um dos patrocinadores da viagem do grupo à França — tem interesse em fazer uma apresentação com debate, em Paris, quando estiver pronto o documentário. Isso deve acontecer em 2019. E, em Nova York, os professores da área de Artes Cênicas da Columbia University organizam anualmente duas semanas de experiências de teatro de outros países. Uma vez que tenhamos o filme com legendas, eles querem apresentar lá, em sessão com debate.

É o que está programado. Se tivermos um recurso que queremos, faremos uma exposição de fotos de 1972 até o final.

JCB: O que estará incluído nessa exposição?
MS:
Temos um material impressionante. A primeira parte do Tesc está no Museu Amazônico. Agora estou organizando o restante para entregar àquela instituição. O Tesc tinha uma missão diferente, desde o começo: recebíamos os jovens e eles tinham de estudar. Havia muita evasão escolar. Tanto que, por exemplo, a Lilian de Paula era professora de inglês aqui, fez faculdade, foi embora para o Espírito Santo, terminou a faculdade lá, especializou-se em tradução, criou um núcleo internacional de tradução na faculdade do ES. Hoje é professora em Nova York, num grupo internacional para tradução.

Quando íamos fazer o Congresso Mundial de Teatro em Manaus, dois anos atrás… que não foi possível fazer, por causa do golpe, pois os estrangeiros ficaram apavorados de vir aqui e acontecer um golpe violento no País. Eles não sabiam que isso não acontece no Brasil. Golpes violentos é coisa dos hispanos, quando você ouvir gritarem “Revolucion”, fuja que o pau cantar. Não é como em português que a palavra pertence a Física: um corpo que gira em torno de um eixo. Os europeus, especialmente, não sabiam disso e não quiseram fazer o Congresso aqui. Acabou sendo feito em Segóvia, na Espanha, cidade que tem tradição e atividade cultural há pelo menos 2 mil anos.

O Festival Mundial de Teatro promoveria aqui em Manaus intensas atividades para a juventude, já estavam inscritos algo em torno de 2 mil estudantes de artes cênicas dos estados amazônicos e de outros países.

JCB: Existem perspectivas de novo apoio? Vocês estão em busca de novos patrocinadores?
MS:
Para o Tesc? Não sei, eu já estou fora. Na verdade, estou ainda em Manaus porque tenho compromissos com a Prefeitura, com o Artur Neto. Uma parte já cumpri, que foi a Lei de Incentivo à Cultura, já vigente. E também estou tentando criar um sistema de bibliotecas públicas. Manaus tem o pior índice de leitura da América do Sul. É pior do que Assunção, no Paraguai, também ‘na rabiola’. Não sei se vou conseguir, estou batalhando. Temos um projeto já pré-aprovado no Banco Mundial para financiamento. Quinze bibliotecas são muito baratas: temos recursos para fazer, basta vontade política. Isso seguindo um modelo de expansão de bibliotecas da África do Sul, usando contêineres. São Paulo e vários outros Estados já adotaram. É muito barato, mas importante pelo que oferece. Não são bibliotecas beletristas, terá livros, mas o foco é nas crianças e adolescentes. No futuro espero que eles leiam “Crime e castigo” também! (risos). Mas tem de se começar a fazer essa população tomar a biblioteca como sua, assim como um posto médico.

Fora isso, espero ir embora de Manaus, voltar a viver no Rio de Janeiro, deixar de ficar indo e voltando. Até porque pagamos um preço caro para voltar para Manaus. É a cidade onde menos vendo — o único livro que vendeu razoavelmente foi “A resistível ascensão do Boto Tucuxi”. E quando cai no vestibular o “Galvez, Imperador do Acre”, as pessoas me ligam para pedir exemplares de graça!

FRANCISCO RIDER: Tive uma experiência parecida em Manaus anos atrás, quando fui convidado a participar de dois festivais, o Festival Internacional de Dança em Belo Horizonte (FID), e o Panorama Rio, no Rio de Janeiro. Estava tudo certo para ir com o espetáculo. Mandei mapa de luz, nomes que faziam parte da equipe. No último momento recebo um e-mail dizendo que não ia dar, pois não havia verba. Pois, em vez de selecionar um artista do Sudeste e Sul, ou da Europa, que já vem de lá com seu dinheiro, eles têm de custear o artista do Norte com tudo, e a passagem é cara. Viver em Manaus tem um preço mesmo.
MS:
É muito comum isso. O cara me liga de João Pessoa, ‘Queria que você viesse para a feira do livro’. E eu, ‘Claro, claro. Tem cachê?’. Pois eu tenho um pacto com meus colegas escritores, como o Ignácio de Loyola Brandão, de nunca fazer de graça. Quando é escola particular, R$ 5 mil; quando é escola pública, R$ 1 mil. Aqui em Manaus certas escolas ricas não querem pagar nada, até já me chamaram de ganancioso. O diabo é vivermos longe…

FR: O Eduardo Bonito, que era curador do Panorama, comentou que convidar artistas de França e outros países da Europa é melhor, pois eles vêm com dinheiro próprio. Dos Estados Unidos, não. E de Manaus a mesma coisa.
MS:
Aqui o poder público dá passagem para seus parentes morrerem em hospitais chiques de São Paulo. Mesmo para funcionários se nega passagem, por razões de ‘economia’. Economia de saber, provavelmente, pois o que abunda aqui é a mediocridade!

Outra coisa: eu não faço mais teatro em Manaus. Estou velho demais para dar murro em ponta de faca. E ainda sair atrás de produção? Não tenho paciência. Tenho várias propostas, não para dirigir, mas para participar do trabalho com atores e diretores. Vou reinserir minha vida onde interessa — no chamado ‘eixo’. Nunca tive vocação para ser ‘fora do eixo’, pois lá se forma outra coisa, menos artista.

JCB: Além da missão de ter todos os integrantes estudando, qual era a proposta artística no início, quando vocês criaram o Tesc?
MS:
Quando criaram o Tesc (no ano de 1968) eu ainda não estava no grupo, na verdade. Quando entrei, justamente para isso fizemos um seminário de quatro meses, do qual tiramos três linhas de trabalho. A primeira foi a de conhecer as artes cênicas e a história do Teatro, de seus grandes diretores e seus grandes textos. A segunda, conhecer a região em que estávamos trabalhando, preferencialmente tentando pôr essa região em cena, criticamente. E a terceira, abrir o palco para as etnias e povos indígenas. E seguimos até o fim, até o último dia.

É difícil seguir. Do meu elenco, por exemplo, muitos não fazem mais teatro. Mas não morreram de fome. A Conceição é dentista em Israel, o Custódio Rodrigues se aposentou como um dos maiores especialistas em arte pré-colombiana, a Lillian de que falei antes… Muita gente se deu muito bem. O Stanley Whibbe hoje é especialista em produção cultural e tem um escritório que trabalha com os grupos mais ricos do Brasil, eventualmente ajudando também o Tesc. Quem é Tesc é sempre Tesc.

Por esse motivo também sempre fomos muito presos a Manaus: eu não podia exigir estudo e detonar a vida acadêmica do ator. Só podíamos viajar nas férias. Havia muitos pedidos: deixamos de ir ao México, Argentina, por conta de período letivo. Com a França foi possível porque lá tem temporada teatral o ano todo, e pudemos nos programar para a temporada de inverno. Não sei como a turma não virou picolé lá! (risos)

FR: É um grande problema essa questão geográfica. Mesmo para uma obra que tem um só ator é caro.
MS:
Sim. Para a França, o Sesc pagou todas as passagens. Com o apoio do programa da Petrobras reunimos o dinheiro de bolso, mil euros para cada um. Não era cachê, era um l’argent de poche. Robson Ney gastou tudo em roupas e sapatos, no final estava comendo vento! (risos)

JCB: Márcio, que balanço pessoal você faz desses anos de Tesc? Que conquistas você diria que obteve?
MS:
Pessoalmente, sou grato pelo que o Sesc me obrigou a produzir, do ponto de vista dramatúrgico. E pela sorte de ter tudo encenado: somente as duas últimas peças que escrevi não deu tempo de encenar. E estamos trabalhando numa ópera, que tínhamos planejado e que podemos ter chance de fazer no Festival Amazonas de Ópera (FAO) — já que “Dessana, Dessana” foi o maior sucesso nos 20 anos do FAO aqui, com plateia lotada nas seis récitas em que foi apresentada em dois festivais. Estamos fazendo um musical chamado “Ciranda da Cabanagem”, contando a história da Cabanagem, com música e dança. Eu e Aldisio Filgueiras estamos fazendo o libreto, e quando ficar pronto o Adelson fará a música.

O que aconteceu, afinal, foi o enriquecimento artístico de todos nós. Com uma diferença: a Manaus antes da Zona Franca era muito mais integrada culturalmente. E com a Nova República o Brasil retrocedeu em termos de artes cênicas. Até os anos 1980, o teatro começava na terça-feira, seguia quarta, quinta, sexta, sábado duas sessões, domingo duas sessões. Na quarta, todos os ingressos já estavam vendidos até a última sessão de domingo. Era assim. E quando terminou, em 1982, com o “Boto Tucuxi”, após 20 anos parado, quando o grupo voltou não tinha mais público. A Ditadura Militar perseguia os artistas, proibia as peças, prendia os mais ousados. A Nova República do Sarney extinguiu a censura e se eximiu de construir uma política nacional e entregou para os departamentos de marketing das empresas criando as leis de inventivo.

FR: Assisti ao “Boto Tucuxi” duas vezes, fiquei deslumbrado. Pensei, ‘Quero que minha arte seja assim’. Tem a quebra da quarta parede entre a plateia e o palco.
MS:
O “Boto” ficou por um mês em cartaz no Teatro Amazonas. Sempre lotado. Um dia sim, outro não, ameaçavam de bomba. E tinha de ir a polícia dizer, ‘Não tem, pode fazer’! (risos)

FR: Lembro disso também. E do elenco ótimo, com direção do Márcio Aurélio (diretor paulista).
MS:
Eu estava dirigindo “Jurupari — A guerra dos sexos” no Rio de Janeiro, e pedi a ele para montar. Ele veio e adorou. É um excelente diretor, mas hoje está com problemas de saúde que dificultam a ele dirigir. Mas o “Boto” era uma superprodução. Outro dia o Ivo, produtor amazonense há muitos anos no Rio, quis montar. Eu disse que ele não ia conseguir, e quando ele viu as partituras e tudo, ele disse, ‘Realmente!’. É um musical da Broadway aquilo. Na época usamos música playback, mas na segunda fase tínhamos a Banda Podre, que acompanhou vários espetáculos do Tesc, como “As mil e uma noites” e “Carnaval Rabelais”. O “Carnaval” até tinha bastante público, mas era só uma apresentação por semana. No começo da última fase, chegamos a fazer três espetáculos por semana: quinta-feira, “Ajuricaba”, sexta, “Hamlet”, e sábado, “Marx na Zona”. E lotavam as três. Mas tinha de mudar. Depois, veio uma ordem federal dizendo que o Sesc não podia mais cobrar ingresso. E com a lei de incentivo, também não se pode cobrar ingresso.

Elenco do Tesc com Márcio Souza à frente
Márcio Souza com o elenco do Tesc em sua fase mais recente, nos anos 2000–2010 Foto © Divulgação

JCB: Vamos entrar no tema da política cultural. Como você analisa o período que passou à frente da Funarte? Como era o apoio governamental para a cultura naquela época, e o que você avalia que mudou de lá para cá?
MS:
Olha, eu me acostumei mal. A época em que estive na Biblioteca Nacional foi mais difícil, embora também tenha pegado o rescaldo da destruição do Ministério da Cultura (MinC) feita pelo Fernando Collor. De cara, enfrentei problemas que iria enfrentar na Funarte quatro anos depois. A Biblioteca Nacional, um prédio caindo aos pedaços, sem um tapume sequer para proteção, um prédio belíssimo de 1912. E não tinha verba, pois o Collor tinha destruído tudo. Foi um período de reconstrução, que só foi acontecer quando ele saiu.

JCB: E como você aceitou essa empreitada?
MS:
Quando o Collor saiu entrou o vice, o Itamar Franco, que tirou o Ipojuca Pontes do Ministério da Cultura. Houve um fórum de secretários de Cultura no Rio de Janeiro. A Aspásia Camargo, secretária de Cultura no Rio, minha amiga e uma das opositoras ao Collor, foi quem organizou. A Dona Vana, proprietária da antiga livraria Leonardo Da Vinci, sugeriu meu nome para falar sobre a Indústria Editorias e uma política de leitura para os secretários de cultura reunidos. Fui, apresentei aos secretários um projeto para difundir a leitura e o mercado editorial no Brasil. E nesse momento cai o Collor, entra o Itamar, e também o (diplomata e filósofo Sérgio Paulo) Rouanet, que era meu amigo, conheci em eventos internacionais a que fui em países onde ele era embaixador. Da última vez foi em Praga, onde ele organizou para mim um coquetel na casa onde morou o Franz Kafka.

Quando o Rouanet assume o MinC, a gente conversa. Entramos eu e o Affonso Romano de Sant’Anna (escritor mineiro) na Biblioteca Nacional, e fizemos um trabalho de abertura. Fizemos muita coisa de modernização. Coisas de estrutura também: ISBN não tinha no Brasil. É um catálogo mundial das obras. Tinha de ter, a indústria editorial precisava disso, e dava muito dinheiro para a Biblioteca. E hoje há um centro de pesquisa lá que ajuda muito os pesquisadores.

FR: Houve uma recente tentativa de extinção do Ministério da Cultura (MinC). Como você vê isso?
MS:
Para os energúmeno como esses que enchem o Palácio do Planalto, Cultura realmente não faz sentido, é jogar dinheiro fora. Como um secretário de Fazenda aqui no município certa vez disse na minha cara: ‘Esse negócio de cultura é jogar dinheiro fora’.

FR: Em tão pouco tempo, três anos, e tudo mudou. Como você vê a relação com o MinC e outros órgãos culturais, municipais e estaduais, como escritor e artista?
MS:
Acho que a coisa já vinha se degenerando desde o governo do PT, com aquele populismo neofascista. Eles ‘etnizaram’ a questão cultural, seguindo a o modelo norte-americano de balcanizar a cultura, onde viceja o conceito de cada um no seu gueto O maior investimento feito na Amazônia em termos de patrocínio foi no Governo Lula: R$ 30 milhões. Só R$ 3 milhões foram aplicados aqui. Nenhum grupo importante conseguiu aprovar projetos, nenhum grupo de dança do Pará, Amazonas, Acre. quem ganhou? O cordão dos quilombolas do Maranhão, uma igreja evangélica que se disfarça como etnia indígena não sei de onde, e basicamente os artesãos.

O artesanato na Amazônia foi organizado nos anos 1950–1970 pelo Ministério do Trabalho, criaram cooperativas aqui na região. Pagava um preço justo, impedindo a ação de atravessadores. Era tudo organizado. Daí vem o MinC, oferece R$ 500 mil pela Lei Rouanet, reintroduzindo a figura do atravessador, ou seja, as ONGs que preparavam os projetos. E o que aconteceu? A maior parte do trabalho feito pelo Ministério do Trabalho ao longo de 20 anos o MinC destruiu. Resultado: dezenas de cooperativas se desfizeram e o mercado para os atravessadores melhorou. Aquele baiano ministro da Cultura, Juca Ferreira, não fala nem português. Como dizem os franceses, não importa o que você diga, desde que seja gramaticalmente correto.

A culpa do fracasso do MinC, no entanto, não é só do baiano. O ministério fundado na Nova República era economicista e adorava uma nota fiscal. O Celso Furtado era brilhante, mas era economista. Quando o ministério da França foi criado no pós-guerra, chamaram o André Malraux para organizar. Um escritor, um homem de cultura. O que ele fez? Um pacto federativo, com prefeitos e governadores, e disse, ‘Prefeito, você vai cuidar dos artistas, incentiva ele a crescer. Quando ele virar um artista estadual, é o senhor governador que vai cuidar, e cuidar também da circulação deles pelo Estado. Dos artistas que se tornarem nacionais, eu tomo conta’. A política deles passou a ser de criar uma arte nacional, exportar essa arte e mostrar que o melhor produto da França é a cultura. Em termos gerais, da Cultura como um todo, a França recolhe 40% do orçamento para o ano seguinte. Não é dado todo o dinheiro. E dá muito emprego.

E não é só o ministério da Cultura: todos os ministros que assumem o governo podem indicar até quatro pessoas apenas para trabalhar com ele. Não é como no Brasil, onde um prefeito de Minas Gerais colocou a manicure da mulher para cuidar de uma biblioteca. E essa senhora, uma grande cidadã, mandou para mim uma carta dizendo, ‘Não sou eu escrevendo, é a minha filha, pois sou analfabeta’. Ela pedia socorro, pois ela queria saber como servir direito. É o povo brasileiro.

FR: A Lei de Incentivo à Cultura vem sendo alvo de polêmica e debate desde sua criação. Na sua visão, quais os pontos positivos e negativos desse mecanismo?
MS:
Em primeiro lugar, sou contra leis de incentivo. Acho que são uma interferência indevida do poder público. E sempre há um viés: vou financiar isso, não vou financiar aquilo. Isso foi uma noção tomada na Nova República do Governo Sarney, que se eximiu — diferente de como acontece na França, na Inglaterra, na Itália, cada qual com seu modelo — da responsabilidade que é a do poder democrático. A saúde, a educação, seja o que for, a responsabilidade é da República. Aqui o Governo se eximiu da Cultura: inventando essa lei, ele renuncia ao seu papel, e deixa que o departamento de marketing das empresas faça a cultura brasileira. Sou contra principalmente isso. Mas vai dizer isso aos indigentes daqui e do resto do Brasil!

Outra coisa: o que fazer para pingar alguma coisa na mão dos artistas? É uma política nacional que provoca enxurrada na mão de quem não deve, e pinga, quando muito, na mão de quem precisa. A Lei Rouanet beneficiou o Tesc — dá um trabalho de cão, pois ela é paranoica, você é ladrão antes de roubar. Mas e se não houvesse a Lei? Aqui a Petrobras tinha um modelo menos fiscalista, mas aquela virago que a Dilma Rousseff nomeou para lá (Graça Foster, em 2012) acabou com a política cultural da Petrobras. Agora é quem tem ‘Q.I.’ (quem indica). A cada ano, o Tesc conseguia em torno de R$ 50 mil a R$ 70 mil para o trabalho no interior. Nós levávamos espetáculos e fazíamos oficinas. Mas nosso trabalho era formar os grupos de lá. Chegávamos na cidade e íamos visitar os cartórios e saber quanto cobravam para criar uma entidade cultural sem fins lucrativos. Negociávamos e íamos com o prefeito e dizíamos a ele que uma maneira de tirar os artistas das costas dele era ele pagar o registro deles no cartório. Fazíamos uma oficina de quatro ou cinco dias, levávamos já todos os modelos de atas e documentos que eles precisariam em CD-rom.

O que aconteceu com a Petrobras então? Aquela virago cortou todo o dinheiro que havia para o Amazonas. E um dia chega aqui um grupo do Paraná nos procurando, pois tinham vindo fazer o que a gente fazia. De avião. Eles tinham recebido R$ 800 mil da Petrobrás. Eu disse, ‘Perguntem da Petrobras, pois para nós vocês virem aqui fazer isso é uma bofetada. Vocês não têm culpa, mas devem ter alguém com poder, pois aqui político não quer saber da gente’. E eles sumiram. Enfim, um absurdo o que vivemos aqui.

Acho que teria de ter uma lei de incentivo, já que o Estado não tem. Não é nada, não é nada, são R$ 22 milhões que ficam aí disponíveis. E outra coisa: tem algumas virtudes a lei municipal, do ponto de vista formal. Primeiro: ela tem um tempo, vai durar cinco anos. Nesse período precisamos educar os empresários para que entendam que cultura é investimento. Eles verão o resultado que virá para a empresa deles.

FR: Não temos aqui, no entanto, tradição na relação da economia com a cultura. E se for um trabalho mais político, provocador, experimental, que toca em assuntos espinhosos? Tocando assuntos de sexualidade, gênero, por exemplo?
MS:
Isso quem vai explicar não somos nós. O artista vai ter de ver bem, pois quando chegar na mão do empresário nenhum tipo de restrição poderá ser feito. Do contrário não assino, mando desfazer a comissão e fazer outra com espírito republicano. Depois de entregue a carta com o aprovado, que você for levar ao empresário que já te deu a carta dizendo que apoio, você é que vai conversar com ele. Ele não vai ler nosso relatório, quem lê é você. Portanto, não há ligação entre a proposta ou a estética do trabalho e o apoio do empresário. O que ele sabe é que ele vai dispor daqueles 20%. Ele nem vai dar: é o que já está na secretaria (Economia e Finanças), que ele pagou no ano passado. Nenhum tecnocrata da secretaria vai ler a aprovação. Agora é rezar para que não entre nenhum evangélico lá na próxima gestão!

FR: Vai ter uma comissão de seleção de projetos?
MS:
Funciona assim: você vai dar entrada num projeto. Um funcionário vai ajudar vendo se a documentação está OK. Daí segue para mim, como presidente, e eu vou designar uma comissão dentre os conselheiros para avaliar. A não ser que seja um projeto que tem física quântica com dança — nesse caso, vou chamar um especialista em física quântica para participar da comissão. É tudo dentro da área. A comissão tem de três a 12 conselheiros, dependendo da complexidade, e 15 dias para dar o parecer. Eu vou ler o projeto, ler o parecer, e se discordar eu dissolvo a comissão e crio outra.

FR: Que diferença você vê entre a lei de incentivo e o Prêmio Manaus de Conexões Culturais, em termos de seleção?
MS:
Não tem como comparar, pois, no edital você concorre com outros projetos. Na lei é o seu projeto que vai valer.

JCB: E você pode buscar apoio de qualquer empresário?
MS:
Apenas do ramo de serviços, pois a Prefeitura não recebe recurso de impostos sobre circulação de mercadorias (ICMS). Isso seria o caso para uma lei estadual de incentivo. Quando o Amazonino Mendes assumiu, ele mostrou interesse na criação de um conselho estadual de Cultura e uma lei de incentivo. Parece que a vontade gorou!’

JCB: O que você destaca do seu trabalho à frente do Concultura? E como ele funciona?
MS:
O Concultura é o órgão consultivo do prefeito. A atividade primária dele é, por exemplo: um imbecil lá da Câmara dos Vereadores resolve fazer o Dia do Ovo Cozido. Ou o Dia da Viúva Evangélica. Esse projeto vai para lá para darmos o parecer. Fazemos um pouquinho de política na Câmara para evitar essas coisas.

FR: Vocês se reúnem toda semana?
MS:
Sim. E uma vez por mês tem a reunião plenária, além das extraordinárias, para algum tema urgente. E tem eventos, tem um programa à parte da lei, o Memória Reencontrada. Você quer fazer uma história da imprensa aqui e precisa de dinheiro para pesquisa? Leve o seu projeto lá. Tem um edital. Demora que só para receber, mas recebe. Já editamos um livro sobre os italianos em Manaus, muito bem escrito e pesquisado, o autor até já faleceu. Queríamos dos árabes, pois dos judeus já tem o livro do Samuel Benchimol (“Eretz Amazônia”, de 1998).

FR: Com relação aos empresários e à lei de incentivo, que mecanismos você acha que é possível criar para que os empresários percebam a importância da cultura?
MS:
Disso não vou participar, mas conversei muito com o José Roberto Tadros (presidente da Federação do Comércio do Estado do Amazonas — Fecomércio-AM), que conhece muito bem esse eleitorado. Primeiro eles fizeram um levantamento só de empresários de serviços, que eles nem tinham. E nem todos: uma empresa de limpa-fossa que trabalha para a Sony, por exemplo, sendo que a Sony retém o que ele paga, não pode. Sabe quem mais paga ISS aqui? Banco e operadoras de telefonia. E são profissionais na escolha de projetos. Se você chega com um projeto bem fundamentado, com qualidade, eles não resolvem aqui, mas avaliam de forma profissional. E eles sabem que podem usar esse mecanismo para divulgar sua empresa.

FR: E por que apenas cinco anos de duração para essa lei?
MS:
Exceto a Rouanet, que é anterior, as leis hoje só podem durar esse período.

FR: E depois inicia todo o processo de novo?
MS:
Não sei dizer.

FR: Isso seria importante, não? A Lei de Fomento que existe em São Paulo, por exemplo, já tem há muitos anos…
MS:
E não está funcionando, não é? Pois o cara que assumiu o governo depois do Alkimin está exigindo 20% de quem ganha um projeto. O mesmo está acontecendo no Rio de Janeiro do Bispo Crivella.

FR: Nesse caso é preciso que os empresários sejam daqui mesmo?
MS:
Não, você pode entrar com pedido no Bradesco, por exemplo, ou nas telefônicas.

FR: Mas seria mais complicado, não?
MS:
Não sei dizer. Mas eles patrocinam o festival de ópera em Manaus sem lei de incentivo. Alguém que tenha a visão de patrocinar um festival de ópera em Manaus pode examinar um outro projeto de qualidade.

FR: Não seria interessante que os artistas tivessem uma lista antes de inscrever projetos?
MS:
Nem todo empresário quer ver seu nome nesta lista. Muitos preferem o sigilo. O que artista tem que fazer é sair procurando, batendo nas portas e convencendo.

FR: É que o deadline do edital acaba por agora, não?
MS:
É, mas vai ter no ano que vem de novo. O deadline é porque a burocracia fecha e depois só volta no Carnaval. O Estado brasileiro é estranho. Mas o edital não tem data. E você tecnicamente pode pedir sem patrocinador, e ir atrás. Vai ser julgado, só fica atrás de quem tem patrocinador. Mas, tendo a carta de aprovação, você pode ir atrás de patrocinador.

Um grupo de teatro do subúrbio, por exemplo. A cabeleireira do bairro tem R$ 1 mil de direito para patrocinar. Para um grupo de bairro é muito dinheiro, ele monta “Noite de Reis” com o elenco todo. O grupo vai até ela, explica o que é, são vizinhos. E ela colabora com R$ 1 mil.

Estou apostando muito na cultura popular. Porque é uma maneira de fazer que a cultura volte a ser crítica. Hoje ela é muito subserviente: uma escola de samba homenageia político corrupto. E com dinheiro opublico.

JCB: Neste mês, o Pitiú Textual vai enfocar o tema da Arte & Ativismo. Minha visão pessoal é que o Brasil já teve uma expressão mais forte de arte política, por exemplo nos anos da ditadura militar. Mas essa força foi se perdendo com o tempo, e ‘arte’ e ‘política’ foram se desvinculando. A que você acha que se deve isso?
MS:
A primeira informação a ser levantada é o que ocorreu nos anos 1970: a mudança na economia da cultura. A especulação imobiliária destruindo os cinemas de rua. A ascensão dos evangélicos comprando essas salas. No Rio de Janeiro é um escândalo, São Paulo. Aqui não, porque a especulação imobiliária tirou os cinemas da rua. Depois do fechamento das duas empresas exibidoras tradicionais, o empresário Jesus Leong fundou um cinema de arte ao lado do Teatro Amazonas, logo a seguir o Joaquim Marinho abriu uma cadeia de cinemas. Infelizmente não duraram muito, e as razões foram muitas.

Além disso, Manaus sofre uma explosão populacional e urbana, de pessoas que vinham do mundo rural em busca de emprego no Distrito Industrial. A primeira decepção dessa gente é que o Distrito só oferecia 150 vagas, e para trabalhar nas fábricas era necessário pelo menos ter o segundo grau completo. Para esses novos manauaras, o mundo urbano era um universo estranho, que provocava angústia. Isto os privava de participar e compreender a oferta cultural. Sem falar nessa exigência absurda para eles de sabe ler e escrever.

FR: De onde vinham esses sujeitos?
MS:
De toda parte, de todos os bolsões de miséria em torno da Zona Franca de Manaus. Mudou a economia toda da cultura, do Estado, da cidade — embora a maioria dos políticos seguissem agindo da velha forma eleitoral. Eles faziam isso para ganhar eleitor…

FR: Você não vê também a coisa pelo prisma da indústria cultural? Por exemplo, na questão de arte & ativismo, a juventude da ditadura e pós-ditadura, antes da proliferação das mídias, era outra.
MS:
Eu ia entrar nisso também. Eu falava das mudanças básicas da estrutura econômica. Mas, de fato, ao lado disso, foi incentivado: durante o auge do MinC e da Lei Rouanet, grande parte dos recursos foi para a grande mídia. Hoje você abre os chamados ‘canais alternativos’ de televisão, e a Rede Globo, com a Lei do Audiovisual… Quero ver se um cineasta de Manacapuru consegue 1% do que a Globo consegue para fazer um documentário sobre ‘os anos 1980 estão de volta ’no Solimões”.

FR: Verdade, para minha geração foi complicado o advento do HIV, nos anos 80.
MS:
Foi a minha geração e a geração seguinte que depois de enfrentar a Ditadura Militar, viu muitos de seus companheiros de luta, esperanças artísticas perecerem sem possibilidade de cura. Assim como os rebeldes eram estigmatizados como subversivos, os que padeciam da HIV recebiam o rótulo de devassos.

FR: Eu e outros artistas (Dimas Mendonça, Francis Baiardi, Odacy Oliveira, Diego Batista, Rafael César, Naty Veiga) fizemos, por uns dois anos, um projeto chamado Performances Relâmpagos. Lembro que numa das vezes fomos vestidos de preto, uma coisa meio teatro/coro grego, e você foi lá interagir com a gente (no dia da eleição para os conselheiros de cultura do município — ConCultura. Performaram nesse dia Dimas Mendonça, Francisco Rider, Francis Baiardi e Rafael César).
MS:
Sim, lembro sim.

FR: Não por não acreditar na importância do conselho, era para nos colocarmos, como o coro do teatro grego.
MS:
É muito importante que nós possamos usufruir de toda essa máquina pequenininha de Manaus relativa à cultura, mas com um pé atrás.

FR: Citei essa performance que fazíamos na cidade porque sinto falta…
MS:
Você sabe que incomodou, não é? Eu fui lá com vocês, e depois me disseram, ‘Você não devia fazer isso’.

FR: Você foi e falou, ‘Gente, vocês são o sal da terra’. E fiquei pensando nisso que o Jony falou: hoje parece que o artista e o cidadão comum não se colocam no corpo a corpo. E é tão necessária essa arte mais ativista, você não acha?
MS:
Mas todo trabalho artístico é ativismo, mais do que nunca. Não falo só de ativismo ideológico, é uma questão de sobrevivência. Se o artista não acreditar profundamente, não for um ativista, independente, fazer e passar fome uma semana… Os artistas sempre agiram assim. O Van Gogh não ganhou um centavo pelo que pintou.

FR: O Antonin Artaud (poeta e dramaturgo francês) também, que passou a vida toda em hospitais psiquiátricos, e hoje a herança dele é disputada pelas editoras e pela família.
MS:
E nunca ligaram para ele.

FR: Quando adolescente, li “A expressão amazonense” (publicado originalmente em 1977). Hoje estou relendo, e essa questão me lembrou de uma passagem muito forte do livro, que eu acho muito atual, diz o seguinte: ‘Em Manaus, há um secreto alívio quando morre um artista amazonense. Menos um para aporrinhar! Sobretudo se o desaparecido tenha sempre se recusado a ser subserviente’. Você acha que continua assim a cidade? É tão provinciana como era? Continua essa mesma relação com o artista?
MS:
Continua a mesma relação.

FR: Você diz no prefácio que modificou pouquíssimo o texto, pois acha que ainda é atual.
MS:
Na verdade não mexi nada, apenas acrescentei nessa edição comemorativa o artigo sobre teatro. Originalmente eu havia publicado na revista da Biblioteca Nacional, e atualizei para colocar no livro. Eu falo no livro muito pouco de teatro, pois havia pouco teatro aqui, e era ruim. Parece que houve um teatro escola, o Márcio Páscoa escreveu um livro sobre teatro de meados do século 19 até os anos 1929, 1930. Ou seja, liga-se ao trabalho da Selda Valle da Costa e do Ediney Azancoth.

FR: De todo modo acho a sua frase forte, mas visionária.
MS:
Não tenho ilusões. No primeiro ano de minha gestão ConCultura, os conselheiros reclamaram muito do nível técnico dos artistas e propuseram oficinas. Gastamos R$ 80 mil com 40 oficinas. Houve uma busca enorme, isto é, tem mercado. Mas no final se inscreviam 50 e sobravam cinco. Eu fui ver e era porque o oficineiro, indicado pelos conselheiros, não era um artista, era um merda que devia estar plantando batata e estava dando aula. Estava falando besteira. Os índios, em vez de organizar um encontro, fizeram um almoço farto no Mindu. Quando passei lá estavam comendo; dei meia volta e fui embora. Portanto não faço mais. Fiz um seminário de panorama das artes no Brasil e no mundo, mas os alunos iam quando a professora mandava para ganhar nota. Não estavam interessados em saber do passado ou do futuro da dança. E tivemos gente falando coisa muito boa, gente daqui.

Ou seja: essa cidade é complicada, não é simples, como o Brasil. Tem esse panorama melancólico, e ao mesmo tempo vi um episódio na praça, na abertura de um dos festivais de ópera: um grupo de turistas cariocas ao lado do povão. A orquestra abriu com um concerto, e os cariocas aplaudiram na hora errada. Na segunda vez que eles fizeram isso, alguém do povão disse, ‘Espere acabar o movimento’. O povão daqui, sabe lá de onde veio, sabe mais do que os turistas cariocas de classe média. Por quê? Tem 20 anos esse festival de ópera popular. O ingresso custa R$ 5. Tenta entrar: no dia da venda de ingressos roda a fila. Não tem ópera vazia, por mais vanguarda que seja.

FR: Manaus tem outra coisa interessante: se você passa muito tempo fora, quando você volta as pessoas procuram você. Com o tempo, porém, começam a te estigmatizar, você vira o estrangeiro.
MS:
Tem um pessoal que acha que eu odeio Manaus. Uma das últimas vezes em que escrevi no “A Crítica” foi uma série de três textos falando da degradação de Manaus com a Zona Franca. Eu nem falava mal da Zona Franca, quando veio um pau mandado falando dos empresários sulistas que eu sempre fui inimigo da Zona Franca, inimigo do Amazonas. Eu respondi, ‘Volte a ler e veja que não estou criticando nem as indústrias, nem o Distrito, nem o modelo. Está explícito lá: os empresários, vocês, vieram aqui para ganhar dinheiro e não tinham obrigação de cuidar da cidade. Isso era obrigação dos administradores, mas eles, por interesses escusos, não fizeram nada’. Quando, em 1968, Manaus tinha 350 mil habitantes, e dois anos depois chegou a 700 mil, era para terem acendido todas as luzes vermelhas na administração pública. Resultado: hoje, de acordo com os principais estudos de explosão urbana, o espaço do planeta que mais explodiu em habitação miserável foi a Amazônia. Aqui e nos outros países.

E já há um princípio, aceito por urbanistas e sociólogos, que as cidades que nos anos 1960 tinham 300 mil habitantes e hoje passaram de 1 milhão não têm mais jeito. Primeiro, não tem como encolher. E depois, a economia da pobreza se reproduz mais rápido que a economia burguesa e industrial. Ela é menor em rendimento, mas sustenta um número grande de pessoas, mantém elas vivas.

FR: Há um livro da Marina Herrero e Ulysses Fernandes chamado “Baré: Povo do Rio”. Certa vez postei algo a respeito do uso da expressão ‘leseira baré’ aqui, e a autora, num ímpeto politicamente correto, veio comentar, ‘Como assim, essa expressão é ofensiva!’. E eu lembrei que você fez um estudo certa vez sobre essa expressão.
MS:
Mesmo em relação aos barés: eles se extinguiram aqui por conluio com os portugueses. Isto é, excesso de credulidade. É a própria leseira baré. É porque ela não conhece a história dos barés. Parece que índio é sacrossanto.

FR: Mas enfim, você fazia uma relação entre o índio e a leseira baré.
MS:
Não é isso… Não sei se é a subserviência ou a escolaridade ruim… Aquele Fernando Haddad uma vez disse que o problema da educação é que havia matéria demais, que confundia a cabeça dos estudantes. Devia confundir a dele! Pois antes, você tinha o primário, e daí para o colegial fazia um vestibular. Era como nos Estados Unidos. Eu escolhi o Colégio Dom Bosco, meus irmãos escolheram o Estadual. Eu tinha todas as matérias, mais desenho artístico e geométrico, mais línguas — português, inglês, espanhol, francês, grego clássico e latim. Do Científico, tinha todas as ciências — física, química, matemática. E mais filosofia, literatura e língua portuguesa, psicologia. E acho que não saí muito abestalhado não.

JCB: Apenas uma pergunta para concluir algo que você falou no início: ainda existe a possibilidade do Congresso Internacional de Teatro ser feito em Manaus?
MS:
Sempre existe, mas é muito difícil. Naquele momento havia todos os recursos. O Congresso — eu fui a dois deles, e achei chatíssimo, pois o evento se limitava a expor o orçamento da edição anterior e das realizações do instituto (International Theater Institute-ITI, vinculado à Unesco) e a preparação do novo projeto e novo orçamento. Se fosse só isso seria chato, não queria fazer. Eu pensei em colocar resolver essa programação expositiva em dois dias, bem longe, no Tropical Hotel, e focar o evento nos jovens artistas. O sheik que preside o instituto adorou a ideia, deu a maior força. Ia ter mais de 300 oficinas. Um simpósio sobre dramaturgia e ópera, o diretor da ópera do Palácio de Versalhes vinha falar. E vários seminários: uma professora de teatro da Sorbonne vinha falar da perspectiva do teatro brasileiro; uma professora da Sorbonne e uma índia professora de artes cênicas no Canadá vinham falar de teatro indígena das Américas, incluindo nossos espetáculos — que para eles era um espanto serem abertos a todos os públicos, pois lá eles faziam apenas para a tribo, com apoio do governo. Íamos ter mais de 10 mil jovens da pan-Amazônia agitando a cidade. Havia recurso e tudo.

Acontece que vaivém, cai a Dilma. E eles, ‘A gente vai para aquele país?’. De Manaus tem saída direta? Não, tem de ir para Brasília ou São Paulo. Puta merda, o país em convulsão, tiroteio, para sair de Manaus não sei se vão abater o avião até o Rio de Janeiro… Em dado momento, puseram a faca no meu peito: você garante que não vai acontecer? Era o Tobias Biancone, presidente executivo do ITI, querendo saber. O presidente, o sheik, já tinha vindo duas vezes em Manaus. Eu pedi 24 horas para pensar. E à noite pensei, ‘Não vai ter golpe. Até seria ótimo, um derramamento de sangue e talvez esse país tome jeito’. E uma vez lembrei que fui a uma feira do livro em Caracas. No terceiro dia, o embaixador nos convidou para jantar na casa dele. Todo mundo conversando, e acontece um blecaute. Jatos passavam em velocidade no céu, bombas explodindo do outro lado da montanha. Um quartel havia se rebelado contra o governo. O embaixador informou que nós ficaríamos na casa dele, que havia um toque de recolher completo. No outro dia, no fim da tarde, o embaixador informa que o toque de recolher havia sido suspenso, para irmos ao hotel buscar nossas malas e seguir direto para o aeroporto, onde um avião da Varig nos levaria para o Rio de Janeiro. Ficamos em pânico.

Foi essa experiência que me fez refletir. Como garantir? VAI que o cão atenta? Estávamos prevendo a vinda de mais ou menos 5 mil pessoas. Num caso desses, como iríamos manter e alimentar essas pessoas? Quando cheguei ao Conselho, liguei para a Suíça e disse, ‘Você tem razão, não posso garantir’. Ele entendeu, ele estava com medo também. E alguns artistas até se deram mal, pois tinham comprado passagem promocional que não se devolve.

[Entrevista publicada originalmente no Pitiú Textual das Artes em 07 de agosto de 2018]

--

--

Pitiú Textual das Artes
Pitiú Textual das Artes

Site de conteúdo dedicado a Teatro, Dança e Performance do Norte do Brasil