SÉRIE: RESGATES MANAUARAS

Marta Marti: ‘A dança apareceu como por sorte em minha vida, tornou-se paixão e hoje é amor’

Arte educadora gaúcha, há mais de 25 anos à frente do Ballet da Barra, Marta fala de sua trajetória e da companhia que até hoje ajuda a formar nomes da dança na capital amazonense

Pitiú Textual das Artes
Pitiú Textual das Artes

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Marta Marti. Foto © Arquivo pessoal

Em artigo na coletânea “O fim do silêncio: presença negra na Amazônia” (2011), a pesquisadora e organizadora da obra, Patrícia M. Sampaio, assinala que reflexões e um olhar sobre a presença negra na região amazônica, especialmente no Amazonas, em se tratando da história, da memória e das práticas culturais, ainda são pouco visitadas.

Assim, em Manaus e no Estado do Amazonas, pouco se fala ou conversa, e tampouco há uma pesquisa, seja no ambiente acadêmico ou artístico cultural, sobre o corpo negro nas danças cênicas modernas e contemporâneas.

A trajetória da Marta Marti se insere nesse cenário. A arte educadora gaúcha radicada em Manaus desde os anos 1970 foi uma das primeiras mulheres e bailarinas negras, se não a primeira, a pisar no palco do Teatro Amazonas, quando fazia parte do Grupo Dançaviva, no início dos anos 1980, criado pela educadora física, professora de dança e coreógrafa Conceição Souza [Adalto Xavier (2002, p. 88) no livro Dançando Conforme a Música, sobre o Dançaviva: “(…) se deu a estréia do grupo com o espetáculo Estudos, no Auditório da Faculdade de Administração da Universidade do Amazonas, no dia 25 de abril de 1981 (…) membros: Marta Martí, Jaime Tribuzzy, Ana Mendes, Meire Ribeiro, Isa Kokay, Socorro Teixeira, Sílvio Souza e Líege Braga]. O grupo foi uma importante iniciativa artística para o desenvolvimento do ambiente cultural manauara.

Em entrevista ao editor do Pitiú Textual, Francisco Rider, Marti – também fundadora, professora e coordenadora pedagógica do Ballet da Barra, companhia criada em 1995 por iniciativa dela e dos bailarinos e educadores Eliezer Rabello e Flávio Soares (1965–2020) – diz que seu objetivo de vida é o amor e a perseverança, tendo como religião o Kardecismo.

Entrevistada
Marta Marti é nascida na cidade de Rio Grande (1954, Rio Grande do Sul), graduada em Educação Física e pós-graduada em Gerenciamento de Projetos Culturais.

Ballet da Barra
Conforme a página da companhia no Facebook, a proposta do Ballet da Barra é educar por meio da dança os jovens da cidade de Manaus, contribuindo para a formação artística e educacional de vários bailarinos que hoje integram o Corpo de Dança do Amazonas (CDA), o Balé Folclórico e grupos independentes da cidade.

O Ballet da Barra oferece ao aluno um leque de opções, colaborando assim para o seu desenvolvimento e auxiliando na formação de seres humanos autocríticos, criativos, preparados para integrar a sociedade em que vivem, atuando como multiplicadores de atividades culturais e posteriormente aptos a suprir o mercado profissional da dança, que se encontra em expansão na cidade de Manaus.

O Ballet oferece cursos de dança clássica (Método Royal), pesquisa coreográfica, alongamento e dança moderna, tendo como meta a interdisciplinaridade, utilizando os diversos experimentos de estímulo à interpretação corpórea, dando forma artística aos movimentos culminando em um espetáculo de dança contemporânea.

Marta com bailarinos do Ballet da Barra. Foto © Arquivo Ballet da Barra

FRANCISCO RIDER: Marta, fale sobre sua infância e adolescência. Em que cidade você foi criada?
Nasci na cidade de Rio Grande, Rio Grande do Sul, com uma infância muito alegre, de brincadeiras comuns a todas as crianças, mas muito baseadas no folclore gaúcho; brincadeiras nas ruas com as crianças vizinhas. Não tínhamos preconceitos, embora algumas famílias ao nosso redor fossem preconceituosas e seletivas, mas isso não incomodava nossa alegria de viver a infância e adolescência tranquila e feliz.

Como foi seu primeiro contato com as artes? Foi através da dança?
Meu primeiro contato com as artes foi no Conservatório de Música na cidade de Rio Grande [Conservatório de Música do Rio Grande, transformado em Escola de Belas Artes Heitor Figueira de Lemos]. Eu pertencia ao coral da professora Inah Martensen [professora de música Valeska Inah Emil Martensen, conhecida por “Dona Inah”] e fazia a quarta voz junto com minha irmã, que é soprano. Foram momentos muito felizes.
Essa professora me acompanhou até o curso ginasial onde ela ministrava aulas de educação artística, e obviamente cantávamos muitas músicas inclusive fazíamos jogral. A dança surgiu em minha vida através do convite da professora Conceição Souza [1949, Maués-AM; fundadora professora de dança e coreógrafa, diretora artística do Grupo Espaço de Dança do Amazonas–GEDAM, fundado em 1986, e do Balé Folclórico do Amazonas — (BFA), criado em 2001, integra os Corpos Artísticos do Estado], que era minha colega de trabalho na Escola Estadual Estelita Tapajós, no bairro de Educandos.
Após a jornada das aulas de Educação Física que ministrávamos [na década de 1970], nós íamos direto para o Atlético Rio Negro Clube, onde a professora Conceição organizava um grupo de dança e ministrava aulas de ginástica para senhoras da comunidade. A paixão que tenho pela dança hoje foi incentivada pela professora Conceição. Tenho imensa gratidão por ela ter me apresentado esse mundo tão sensível e maravilhoso que é o mundo da dança.

Como você veio para Manaus e em que ano?
Vim para Manaus em 1975, a convite do meu irmão, que já trabalhava em uma empresa de navegação marítima nesta cidade. Eu aceitei o convite encantada com os conhecimentos que já havia adquirido sobre a cidade e a região Norte, através do meu professor de Estudo dos Problemas Brasileiros, durante as aulas na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), onde eu cursava o primeiro ano do curso de Educação Física.

Como era Manaus naquele período em que você chegou aqui? E o ambiente artístico, na década de 1970?
Quando cheguei a cidade já era próspera, mas só tive contato com o ambiente artístico a partir do convite da professora Conceição Souza. E me adaptei facilmente, inclusive fazendo grandes amizades que duram até hoje [De acordo com a historiadora Luciane Páscoa (2011, p. 97–98), “Mesmo vivendo momentos díspares em diversos aspectos Manaus manteve uma vida cultural ativa […] até final dos anos 70”. Mas para a socióloga Selda Vale (AZANCOTH; COSTA, 2014, p. 10–55), “Os tempos eram sombrios. O “vazio cultural” dos anos 70 seria “preenchido” na Amazônia por obras militares grandiosas, faraônicas, terríveis como um cogumelo atômico”].

Fale para nós sobre o Grupo Dançaviva. Como tomou contato?
O Grupo Dançaviva foi criação da professora Conceição, e através dele pela primeira vez dancei no palco do Teatro Amazonas. Naquela época era comum os grupos apresentarem neste palco. Conheci vários artistas do teatro e da dança durante o período que frequentei o Dançaviva. [O Dançaviva foi criado em 1981, em Manaus, após as experiências da professora no Ballet Stagium (SP, 1971), uma das mais importantes companhias de dança do Brasil, para a qual ela havia sido convidada a fazer aulas, no ano anterior].

Você lembra dos nomes dos componentes originais desse grupo?
Não lembrarei de todos os nomes mas alguns foram: Isa Kokay, Ana Mendes, Lúcia Matos, Cláudia Rocha, Kleber Monteiro, Agenor, Jaime Tribuzy, Acrísio Tribuzy, Socorro Andrade, Vital Melo, Paula Andrade, Francisco Cardoso, Cláudio, Silvio, Socorro Riela, Cláudia Batista, Paulinho Torres, Núbia e outros de que não lembro o nome agora.

Como eram os processos no Dançaviva? As aulas, os ensaios…?
As aulas e os ensaios eram coordenados pela professora Conceição com muita disciplina. Ela viajava com frequência para adquirir mais conhecimento e repassá-lo ao grupo. [Nos anos 1970/80, Conceição ia para São Paulo e fazia cursos e aulas de dança com o Stagium e com o mestre de balé, Ismael Guiser (1927-2008-Argentina)].

Quando as atividades do Dançaviva se encerraram (1983), você ingressou em outro projeto? O que aconteceu com os componentes do Dançaviva?
Fiquei por algum tempo ministrando aulas de Educação Física e Dança nas escolas públicas até receber o convite do coordenador de assuntos culturais (Cac) da Seduc para trabalhar no Teatro dos Artistas e dos Estudantes [inaugurado em 1986, hoje é o Teatro Américo Alvarez, nome dado em homenagem ao dramaturgo amazonense que ficou conhecido como Vovô Branco. A coordenação foi criada em 1981 pelo artista visual e dramaturgo, Sérgio Cardoso (1954-AM). Segundo Xavier (2002, p. 106), “(…) a criação da Coordenadoria de Assuntos Culturais (CAC) pela Secretaria Estadual de Educação e Cultura (Seduc), que apesar de ter sido criada para atender a comunidade estudantil da rede pública de ensino, implantou uma política de apoio mais ampla às produções cênicas locais, beneficiando com isso vários grupos amadores de dança, teatro e música” ].
Não permaneci no Dançaviva até sua extinção, mas os bailarinos foram absorvidos por outros grupos, principalmente de teatro, e outros viajaram para fora do Estado em busca de novas oportunidades e maiores conhecimentos (a exemplo de Isa Kokay, que vive no Rio de Janeiro desde a década de 1980 e é do Corpo de Dança de Niterói, assim como Jaime Tribuzy).

Você coordena o projeto Ballet da Barra. Como se deu essa iniciativa cultural?
O projeto Ballet da Barra surgiu pela necessidade de aproveitar o talento dos alunos que frequentavam as aulas no Teatro Américo Alvarez e participavam com bastante êxito na mostra de dança anual dirigida pela CAC. Em 1995, criamos a companhia Ballet da Barra, dirigida por mim, Eliezer Rabello e Flávio Soares.

Marta com crianças e jovens bailarinos do Ballet da Barra. Foto © Arquivo Ballet da Barra

Marta, fale um pouco sobre o desenvolvimento desse projeto: aulas, processos de criação, artistas que participaram.
O Balllet da Barra funciona com aulas de dança moderna, ballet clássico e dança educacional para crianças e adolescentes de 8 a 20 anos. Não quero pecar e esquecer o nome dos colaboradores que já ministraram aula em nosso projeto. Posso citar alguns: Getúlio Lima, Sumaia Farias, Helen Rojas, Ellen Menezes, Eduardo Amaral, Mariluce Lima, Baldoíno Leite, Marcão, Francisco Rider. Alguns professores de teatro também ministraram aulas no projeto. Muitos bailarinos do projeto ficaram conosco até atualidade, outros chegaram a ser diretores e coreógrafos, por exemplo a Muriel Gonçalves, a Magda Carvalho, a Celice Freitas. Outros colaboradores que ficaram bastante tempo conosco foram os professores Robson Tadeu e Cléia Alves, Robson Ney e Francisco Mendes.

Montagem do Ballet da Barra de 2020, “Fragmentos Villa Lobos”, de Breno Rodrigues Furtado, foi premiado com o Prêmio Manaus de Conexões Culturais 2020-Lei Aldir Blanc. Foto © Arquivo do Ballet da Barra

Qual o público-alvo do projeto. Quem pode participar, e como fazer para fazer parte do projeto?
Nosso público são crianças e adolescentes da cidade de Manaus, que tenham interesse pela dança. O projeto é gratuito, todos podem participar, havendo inscrição durante o ano, sem interrupções.

No início dos anos 1990, quando eu vivia em São Paulo, eu vinha para Manaus e ministrava oficinas. Você fazia a produção executiva de forma maravilhosa, pois conseguia trazer jovens para fazer minhas aulas, e era cobrado um valor pelas oficinas. Hoje em dia acho muito difícil produzir projetos de formação fora do ambiente institucional acadêmico, pois parece que os jovens de hoje acham que só a formação acadêmica é suficiente para sua formação artista. Naquele início dos anos 1990 não existia um Corpo de Dança do Estado e nem o Curso de Dança e Teatro da Universidade do Estado do Amazonas. Você lembra como fazíamos para trazer uma média de 15 a 20 alunos, sem as aulas serem gratuitas?
O interesse pela dança continua aumentando sempre, o artista continua investindo na sua formação e aperfeiçoamento, o acesso hoje é facilitado e cada um procura o que mais lhe convém. Na minha opinião, pagar ou não pelo aperfeiçoamento é questão de marketing, e o artista procura aquilo que se enquadra dentro de sua situação financeira.

Como você vê a dança hoje em Manaus?
Conseguimos grande avanço com a dança em Manaus e me orgulho de ter colaborado para isso. Sempre houve muitos talentos na cidade, mas as oportunidades para expressar e viver a dança eram escassas, conseguimos dignidade para os bailarinos e valorização da profissão. A dança apareceu como por sorte em minha vida, tornou-se paixão e hoje é amor simplesmente.

Pelo que eu saiba, você foi a primeira bailarina negra na cidade de Manaus. Nos anos 1970/80, não se discutia tanto a negritude e o racismo em Manaus, pelo menos nos lugares hegemônicos. Como era para você ser artista negra num ambiente onde pouco eram levantadas questões sobre a negritude e o preconceito racial?
Nunca tive tempo para pensar. Como artista e negra, cheguei a Manaus para estudar e trabalhar, porque o mercado de trabalho era bem mais cheio de oportunidade do que o apresentado no Rio Grande do Sul.

Você, como mulher, negra, artista educadora e gestora do Balé da Barra, o que você considera que mudou de lá para cá em relação a essa questão da negritude?
Não me detenho em questões relacionadas ao racismo, para mim isso é só a questão biológica, mas aceito como ponto de ação o amor. Este sentimento sem cor rege meus pensamentos e ações, abraçando todos que dividem essa jornada comigo. Fui abraçada carinhosamente por esta cidade e procuro corresponder esse afeto da melhor maneira que posso.

Referência
AZANCOTH, Ediney; COSTA, Selda Vale da. Amazônia em cena: grupos teatrais em Manaus (1969–2000). Manaus: Editora Valer, 2014.

PÁSCOA, Luciane. As artes plásticas no Amazonas: o Clube da Madrugada. Manaus: Editora Valer, 2011.

SAMPAIO, Patrícia M. (org.). O fim do silêncio — presença negra na
Amazônia. Belém: Açaí /CNPq, 2011. 298 p.

XAVIER, Adalto. Dançando conforme a música. Manaus: Editora valer, 2002.

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