SÉRIE PITIÚ: PANDEMIA E JOVENS ARTISTAS DE MANAUS

Laura Melo: ‘Os negros, sendo corpos periféricos, são os mais vulneráveis e os mais prejudicados com a pandemia’

Pitiú Textual das Artes
Pitiú Textual das Artes
6 min readJan 12, 2021

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A vida da jovem artista Laura Melo, de 20 anos, teve grandes mudanças com a pandemia de Covid-19. As restrições econômicas e sociais decorrentes das medidas de prevenção à doença trouxeram, além do isolamento, a preocupação com a saúde, sua e dos familiares — em especial o pai, integrante do grupo de risco para Covid — e também com a saúde financeira da casa, com a manutenção das despesas de moradia e alimentação.

“Usei o dinheiro da bolsa de monitoria da faculdade de Dança e pude ajudar financeiramente a manter as despesas da casa com esse dinheiro, além de receber o auxilio emergencial”, conta Laura.

Entrevistada do Pitiú Textual das Artes para a “Série Pitiú: Pandemia e Jovens Artistas de Manaus”, que enfoca o impacto da doença causada pelo novo coronavírus na vida e no ofício de jovens criadores da capital amazonense, Laura considera que a Covid-19 tornou evidentes as diferenças na sociedade.

“Essa pandemia só reforça a desigualdade social, mostrando quem é a base da pirâmide social e quem são as pessoas que sustentam a branquitude burguesa”, avalia.

Apesar das dificuldades e do isolamento social, que afetaram até o seu sono e a sua alimentação, a jovem artista manteve seus estudos com foco na negritude, em especial na performance da mulher negra, e até reforçou sua disposição em se aprofundar sua arte nessa linha de pesquisa. “Meu ofício artístico tomou outro rumo, o rumo certo, já que agora está voltado para questões que contemplam meu corpo negro e o corpo negro dos meus”.

Confira abaixo a entrevista na íntegra com Laura Melo.

De que forma as restrições sociais e econômicas e demais mudanças impostas em razão da pandemia de Covid-19 afetaram sua vida?

Esse período pandêmico desregulou meu sono, perdi a rotina de dança que mantinha meu corpo ativo e minha alimentação mudou, já que eu me alimentava no restaurante universitário, havendo uma grande desaceleração na minha ida. Por ter um pai do grupo de risco e que não tomava as medidas necessárias de segurança, a atenção era redobrada para que eu não o contaminasse. Meus pais ainda tiveram salários reduzidos, por isso a preocupação é de mantermos o aluguel da casa e a nossa alimentação. Moro com meus pais e seus salários foram reduzidos, além de haver atrasos. Eu desacelerei a rotina que estava tendo, resultando em dar mais atenção aos meus pais, ouvir meu corpo, rever prioridades e levar a rotina de uma forma mais leve.

A pandemia e o isolamento em si (não me referindo ao vírus, já que ele sofre mutações e pode haver outros) são fruto do despreparo da área de saúde, já que ainda se tratam apenas os sintomas, e não o vírus, além de se negligenciar o vírus como uma simples gripe, fazendo várias pessoas ignorarem o isolamento, contaminarem outras pessoas e assim aumentarem o número de mortos e de contaminados.

Faço parte da Kiki House of Dení, onde estou como Princesa, que basicamente é a segunda mãe da House. Tratamos de assuntos de raça, gênero e sexualidade. Meus estudos dentro da comunidade Ballroom e da House of Dení são voltados para a negritude, especificamente a performance da mulher negra, e entrelaço isso ao Vogue Femme, que é uma vertente das danças urbanas. Busco trabalhar meu corpo negro e feminino no voguing como força de resistência e existência política.

Para estudos de performance voltados para o corpo negro feminino, busco conexão com minha ancestralidade e suas vivências, e uno com minha vivência, embora jovem, carrego uma bagagem de opressão racial. Trago para estudos como a mulher negra é vista na sociedade e os lugares subalternos que lhe impõem, e como a opressão racial influencia na falta de autoestima da mulher negra.

Como uma jovem artista negra, como você sente a relação negros/Covid-19?

Os negros, sendo corpos periféricos, são os mais vulneráveis e os mais prejudicados com a pandemia. Essa pandemia só reforça a desigualdade social, mostrando quem é a base da pirâmide social e quem são as pessoas que sustentam a branquitude burguesa. Enquanto a elite pode se resguardar em casa sem se preocupar com a parte financeira, os corpos negros e periféricos não podem parar de trabalhar e sequer ficar doentes (sendo estes padeiros, motoboys, empregadas domésticas, babás, feirantes etc.). E, se ficam em casa, podem contaminar as várias pessoas que residem ali, sem poder se isolar, já que as casas têm de dois a três cômodos.

Muitas mortes, muitos enfermos, muitas pessoas contaminadas pelo coronavírus, mas as pessoas continuam se comportando como antes da pandemia. Agora a Prefeitura decretou o uso obrigatório de máscara. Precisa de lei, multa? Não bastaria o sentimento de Amor coletivo e de Afeto pelo Outro?

A falta de noção e do pensar no próximo ficou mais evidente na pandemia, porém já ocorria, então acho necessário o uso dessa lei.

Em relação às questões sexuais, em que a pandemia afetou?

Sem poder sair de casa não pude ter uma vida sexual ativa, apesar de haver homens que estavam ignorando os riscos e propondo encontros comigo.

E no que tange à sua arte, qual o impacto da pandemia no seu ofício? Mudou?

Pude ter contato, através de aulas on-line e palestras, com performers e bailarinos de outros estados que tratam de questões da negritude, e através desses descobrimentos percebi que a Universidade em que estudo atualmente não é uma boa fonte ou sequer um possível caminho que me auxilie nessas questões. Pelo contrário, só me oferece referências brancas e europeias, me fazendo repensar se prossigo no curso ou não.

Qual sua opinião a respeito da Lei Aldir Blanc?

Acredito que essa lei seja um disfarce de que há apoio governamental para a arte e, de certa forma, uma quebra daquele pensamento de que há uma censura. Assim como acontece com o auxílio emergencial, haverá pessoas que não precisam e vão receber, e quem realmente precisa talvez não receba. Além de ser uma tática de mudar o pensamento da população para que pensem que o governo atende a todas as necessidades das pessoas.

Com a pandemia, você sentiu que tem mais responsabilidades com você, com seu ofício artístico e com o mundo/Outro?

Principalmente com o outro. Apesar de não querer me contaminar, minha prioridade era que as pessoas do grupo de risco não se contaminassem, e principalmente que meu pai ficasse bem. Meu ofício artístico tomou outro rumo, o rumo certo, já que agora está voltado para questões que contemplam meu corpo negro e o corpo negro dos meus.

Você tem sonhado muito nesse período pandêmico? Se sim, poderias nos narrar um sonho que te impressionou, nesse período…

Eu sempre sonhei muito, não é algo novo, mas as narrativas mudaram, e passei a ter sonhos de teor espiritual e com entidades que descobri, depois de pesquisar, quem eram e o que representavam. Encarei como um chamado. Meu primeiro sonho foi com os pés presos em uma lama, com árvores ao redor, ventava muito e o cheiro de folhas era forte. A lama é um elemento de uma entidade.

Alguma proposta “utópica” para a construção de um mundo possível (respeito à natureza, ao diverso, aos gêneros, ao planeta, aos artistas, aos pobres economicamente)?

As minorias ficaram em evidência durante a pandemia, mas acredito que a relação e opressão a essas minorias não vai mudar do dia para a noite. São passos de formiga até que tenham o mínimo de respeito. A desconstrução de toda essa sociedade opressora deve continuar até que cheguemos a um ponto em que a opressão seja mínima, até o ponto em que o abate de animais seja visto como ruim, até o ponto em que a visão do que é crucial não sejam os padrões de cisgeneridade, heteronormatividade, padrões brancos, e que haja compartilhamento de privilégios.

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