SÉRIE PITIÚ: PANDEMIA E JOVENS ARTISTAS DE MANAUS

Adanilo: ‘A arte e a ciência, na pandemia, finalmente foram percebidas como imprescindíveis à humanidade’

Francisco Rider da Silva
Pitiú Textual das Artes
9 min readOct 3, 2020

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Dando continuidade à investigação sobre os impactos da Covid-19 na classe artística, o Pitiú Textual das Artes entrevistou o ator, dramaturgo e encenador autônomo amazonense, Adanilo, de 29 anos, para a “Série Pitiú: Pandemia e Jovens Artistas de Manaus”. Na capital amazonense, durante os meses de abril e julho de 2020, houve um alto número de internações devido à Covid-19, em meio a notícias de colapso no sistema público de saúde e também no sistema funerário, e de corpos enterrados e empilhados em valas comuns, num cemitério público da cidade.

Nessa série, queremos (h)escutar essas vozes artistas e suas inquietações, anseios, medos, inseguranças, angústias, propostas e ideias durante esse momento de pandemia, num país extremamente desigual (segundo lugar no mundo em se tratando de desigualdade social), onde artistas e a cultura não têm relevância para o governo federal.

Como sobreviver, existir e se reinventar nesse contexto, onde mesmo antes da pandemia o artista autônomo já não tinha importância para a sociedade brasileira como um todo? Imagine-se agora, quando nós artistas enfrentamos o descaso e o autoritarismo do governo Bolsonaro (sem propostas sólidas de políticas públicas para as artes) e a pandemia de Covid-19, que nos impede o contato presencial com o público? Ou seja, parafraseando Adanilo: “O Brasil todo tá bem fudido”.

Adanilo tem formação técnica em Rádio e TV e estudou na Escola Técnica de Teatro (ETET) Martins Penna, no Rio de Janeiro. Recentemente fez parte do elenco do filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura, que contou com preparação de atores de Fátima Toledo e produção da O2 Filmes. O longa-metragem, centrado na figura do escritor, político e guerrilheiro Carlos Marighella, estreou em fevereiro do ano passado no Festival de Berlim.

Adanilo é diretor do grupo Teatro Galeroso, no qual dirigiu e escreveu o espetáculo “Bicho Doido”, apresentado em Manaus, Maranhão, Paraná, Rio de Janeiro e Buenos Aires, integrou a programação da Mostra Solo Brasileiro, da 7 às 7 Mostra de Teatro e do Festival de Teatro de Paranaguá, neste último se consagrando com os prêmios de Melhor Espetáculo, Diretor e Ator. O Teatro Galeroso desenvolve seu novo projeto, “Considerado”, em que Adanilo atua e assina a dramaturgia.

Em relação à sobrevivência como artista autônomo, nesses tempos de Covid-19, em depoimento para o Pitiú Textual, Adanilo diz ter tido “uma sorte grande de entrar para o elenco da série ‘Segunda Chamada’ (série produzida pela O2 Filmes e Globoplay, em sua segunda temporada, que tem no elenco Déborah Bloch, Paulo Gorgulho, Thalita Carauta, Hermila Guedes, entre outros) justamente alguns meses antes do início da pandemia. Mesmo estando paradas as gravações, segui empregado, aguardando a hora de retomar o projeto”.

Além do envolvimento nesse projeto artístico televisivo, nesse período pandêmico Adanilo aproveitou para elaborar uma pesquisa dramatúrgica: “Terminei de escrever a peça ‘Ayuri Kawa — Tempos Manaús’, que trata do ressurgimento do líder indígena Ajuricaba, em um contexto pós-mundo, onde tudo virou lama. Estou agora num processo de tradução de parte da peça para uma língua de tronco Arawak”.

Com a palavra, Adanilo.

Me chamo Adanilo Reis da Costa. Mas minha familia, mesmo me pondo esse nome, sempre me chamou Danilo. Comecei na arte assinando Danilo Reis. Em 2016, num dos processos de autoentendimento, percebi que eu era Adanilo, que sou Adanilo. E decidi assinar assim: Adanilo.

OS PRIMEIROS DIAS

Assim que começou o alarde da pandemia no Brasil, a cidade de São Paulo era o foco principal, e eu estava lá, vivi aqueles primeiros dias de tensão. Mas antes das atividades pararem de vez, conseguimos passagens para Manaus, fomos direto para o interior. Estive isolado com minha família num terreno na estrada de Novo Airão. Foi ótimo estar junto da natureza, bem afastado do desespero da cidade. Foi um momento muito produtivo, escrevi e adiantei alguns projetos pessoais. Muita reflexão sobre amazonidades, sobre se entender como parte da floresta, das águas, das pessoas daqui. Agora já estou na capital Manaus de novo, tentando seguir a vida, me cuidando como posso.

A pandemia tem afetado economicamente você?

A pandemia afetou a vida (econômica) de muita gente, por isso me sinto muito privilegiado de ter seguido empregado durante esse período. Obviamente todas as pessoas deveriam estar amparadas num momento como esse, mas a gente vê que não está sendo assim.

Em que a pandemia mudou seu modo de encarar o mundo?

Já é muito difícil ser otimista no mundo, e a pandemia aflorou ainda mais esse terror e medo coletivo. Me sinto envolto nessa loucura, coberto por essa nuvem cinza e pesada desses tempos sombrios. Em compensação, como estava fora da cidade já faz um tempo, estar de volta, mesmo que seja nesse instante pandêmico, me potencializou o afeto pelos meus próximos.

Você acha que a pandemia é consequência de quais fatores?

Às vezes acho que é tudo uma conspiração mesmo, que é de interesse de gente “poderosa” reduzir a população, essas coisas. Também penso nos ciclos que se repetem na Terra, essa não é a nossa primeira pandemia e nem será a última. Já pensei até na natureza cobrando da gente um comportamento mais saudável, sem fumaça dos carros, sem pressão do trabalho, alimentação mais saudável.

Muitas mortes, muitos enfermos, muitas pessoas contaminadas pelo coronavírus, mas as pessoas continuam se comportando como antes da pandemia. Agora a Prefeitura decretou o uso obrigatório de máscara. Precisa de lei, multa? Não bastaria o sentimento de Amor coletivo e de Afeto pelo Outro?

A ignorância, esse instrumento de poder, nos leva à máxima da sobrevivência, da individualidade.

Em relação às questões sexuais, em que a pandemia afetou (responda se quiser)?

Creio que nada.

E no que tange sua arte, qual o impacto da pandemia no seu ofício? Mudou?

A pandemia me interrompeu alguns processos como ator e diretor, alguns trabalhos que estavam encaminhados. E eu não consegui acompanhar a onda dos trabalhos on-line, das lives.

Estar isolado afetou diretamente minha escrita, pude rever textos antigos, me reavaliar como dramaturgo e roteirista.

Quanto à Lei Aldir Blanc, tens algo a dizer? Negociação (entre esquerdas, direitas e extrema-direita brasileiras) ou solução?

Solução, nem de longe. É um respiro no meio do sufoco. Já levamos sete meses de coronavírus aqui no Brasil e só agora teremos recursos públicos para produzir conteúdos artísticos. “Só agora” é um modo de dizer, porque nem temos os editais publicados, e ainda é possível que os prazos para entregar os produtos finais, as obras, oficinas etc. sejam até o final desse ano só. É absurdo. Não menos absurdo do que tudo que já enfrentamos há séculos no meio artístico-cultural.

Com a pandemia, você sentiu que tem mais responsabilidades com você, seu ofício artístico e com o mundo/Outro?

A arte e a ciência, na pandemia, finalmente foram percebidas como imprescindíveis à humanidade. Pelo menos em parte. Sigo acreditando na responsabilidade dos artistas como debatedores-mobilizadores da sociedade.

Você tem sonhado muito nesse período pandêmico? Se sim, poderias nos narrar um sonho que te impressionou, nesse período?

Tenho sonhado pouco. E quando sonho, quase sempre é pesadelo. Lembro de um em que um homem me perseguia sem fim, sem nunca conseguir me pegar. Acordei aos gritos.

Você tem uma filha, Léa, de 3 anos. Alguma proposta “utópica” para a construção de um mundo possível (respeito à natureza, ao diverso, aos gêneros, ao planeta, aos artistas, aos pobres economicamente) para ela?

O futuro se afasta cada vez mais de mim à medida que envelheço. Preciso mais viver o presente da Léa, as questões que se apresentam agora. As utopias vão caminhar para uma distopia, já quase não tenho dúvida. Gostaria que minha filha crescesse num meio natural, ancestral, saudável, respeitando o diverso humano e animal, tendo a oportunidade de trocas construtivas com outras pessoas e espaços.

Você vive em constante trânsito, Manaus, Rio de Janeiro e São Paulo, qual a diferença entre viver lá e aqui, em tempos pandêmicos?

O Brasil todo tá bem fudido, amigo! Hahahah.

Você tem como companheiras uma mulher (a bailarina e atriz argentina, Sofia Sahakian) e sua filha, percebe diferenças entre ser mulher e ser homem, nesses tempos pandêmicos?

Todo dia, toda hora. Ser pai de uma menina te conduz profundamente às questões machistas e heteronormativas. Tomo tapa na cara, aprendo como fazer, e nunca é o suficiente. O mundo está arquitetado para oprimir as mulheres desde a infância, e eu faço parte do lado opressor dessa história. Preciso melhorar, preciso melhorar!

Adanilo, conte para nós sua experiência e vivências como ator, na televisão e no cinema brasileiro.

Estava cursando um Técnico em Rádio e TV quando comecei a trabalhar com teatro, em 2011. Nem cheguei a concluir o curso, me encontrei na arte, mas dali veio o primeiro contato com as câmeras. Já em 2012 estava criando a Artrupe Produções junto com outros artistas, a maioria deles interessada em audiovisual. Nas primeiras produções, colaborei na parte técnica dos projetos, nas ideias. Em 2014 veio a primeira atuação, no curta-metragem “A Menina do Guarda-Chuva”, e no ano seguinte fizemos o “Aquela Estrada”, ambos com direção de Rafael Ramos. Fiz ainda “O Tempo Passa”, do Diego Bauer. Esses três primeiros filmes foram muito importantes, pela experiência que adquiri e porque me ofereceram um material para começar outro momento da minha carreira.

Em 2017, já morando no Rio de Janeiro, fui chamado para fazer um teste para o filme “Marighella”, primeiro trabalho de Wagner Moura como diretor. Fiz o teste e esqueci, estava com outras preocupações. Eu estava sem celular, levando a vida sem dinheiro algum. Um dia depois da Léa nascer, ainda na maternidade, um amigo foi nos visitar. Emprestei o celular dele para avisar a família do nascimento da minha filha e vi no meu email a notícia de que tinha sido aprovado na primeira fase, precisaria ir a São Paulo para um outro teste. Fui. Pouco tempo depois soube que faria o filme. Foi o primeiro longa-metragem como ator, e com ele vieram outras oportunidades. Ano passado filmei os longas “Noites Alienígenas”, no Acre, com direção de Sérgio de Carvalho; “Anaíra”, filmado em Itacoatiara, direção de Sérgio Machado; e o western “Oeste Outra Vez”, rodado em Goiânia, dirigido por Erico Rassi.

Na televisão, participei de “Um Dia Qualquer”, série do Canal Space dirigida por Pedro Von Kruger, e estou filmando a segunda temporada de “Segunda Chamada”, série da Globo.

Como foi estudar na Escola Martins Penna (RJ). O que mudou no seu corpo artista e na sua cosmopercepção sobre ser ator cênico?

Adoro a informação de que a Martins Penna é a escola pública de teatro mais antiga da América Latina. Acho que essa energia acumulada, de tantas produções e pensamentos voltados para as artes cênicas, é o que faz da Martins um lugar especial, de resistência e renovação do fazer teatral.

Sair de Manaus naturalmente me possibilitou ver coisas que eu ainda não tinha visto. E o exercício de estudar, assistir a teatro de outra localidade, me ampliou a percepção comigo e com meu entorno. Sobretudo para as coisas daqui, das periferias amazonenses, das indigenidades.

Em 2016, no ápice das Ocupações no Brasil, estive no grupo de alunos que fez da Martins Penna a sua casa. Foi um dos momentos mais bonitos da minha vida. Ocupar uma escola, cuidar dela, da programação, das aulas. Ali estava uma fagulha para pensarmos a educação. Sem hierarquia, pautada na construção coletiva, decisões que contemplavam a escola e quem fazia parte dela. Infelizmente, as ocupações acabaram e quase nada daqueles ideais permaneceu.

Adanilo, você tem uma corporalidade muito interessante e potente, você fez e faz algum treinamento corporal específico?

Tive infância e adolescência muito agitadas. Entre longas pedaladas em bicicletas, jogar futebol e dançar Ciranda, fui desenvolvendo meu corpo. Depois, estudando, preparando peças de teatro, filmes, criei um repertório de treinamentos que faço de vez em quando.

Planos atuais, projetos, ideias e /ou propostas?

Na pandemia, terminei de escrever a peça “Ayuri Kawa — Tempos Manaús”, que trata do ressurgimento do líder indígena Ajuricaba, em um contexto pós-mundo, onde tudo virou lama. Estou agora num processo de tradução de parte da peça para uma língua de tronco Arawak, idioma falado pelos Manaús. Gostaria de estrear ano que vem, seria maravilhoso comemorar 10 anos de carreira atuando nesse trabalho.

Para o cinema, estou finalizando o curta “Decisões”, que dirigi e escrevi. Esse filme foi filmado no Rio de Janeiro, grande parte do elenco é da Escola de Teatro Martins Penna. Também comecei a desenvolver o “Castanho”, um filme sobre a vida na comunidade Cachoeira do Castanho, em Iranduba.

Esses são os trabalhos que estão ocupando meu tempo. E aguardo ansioso as estreias dos filmes e séries que fiz.

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