SÉRIE PITIÚ: PANDEMIA E JOVENS ARTISTAS DE MANAUS

Bruna Mazzotti, artista visual, arte educadora e performer: ‘Sinto o quanto a vida é frágil, um instante precário’

Francisco Rider da Silva
Pitiú Textual das Artes
9 min readSep 11, 2020

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“Ontogênese do Vermelho”: Está entre a performance e a videoarte. Eu tinha um desejo e ampliei ele a partir de uma provocação
“Ontogênese do Vermelho”, de Bruna Mazzotti. Selfie. Niterói, Junho de 2020.

Dando continuidade à investigação sobre os impactos da Covid-19 na classe artística, o Pitiú Textual das Artes traz o relato/entrevista de vivências da artista visual, arte educadora e performer Bruna Mazzotti. Em depoimento para a “Série Pitiú: Pandemia e Jovens Artistas de Manaus”, a artista assinala o paradoxo da “proximidade virtual” nestes tempos em que o isolamento social afasta o convívio físico e impõe a interação mediada pelo digital.

“A pergunta feita por Roy Ascott anos e anos atrás, reacende com ímpeto: ‘existe amor no abraço telemático?’. Bem, se eu não pudesse ver meus pais por videochamada, certamente que não teria o mesmo ânimo que me segura nessa quarentena. Há toda uma dualidade envolvida”, avalia a artista de 24 anos.

Atualmente vivendo em Niterói (RJ), Bruna acredita que os vínculos mais naturais do ser humano tendem a ser re-valorizados como resposta a esse momento causado pela disseminação do novo coronavírus. “Acredito que esse período pandêmico, tão restritivo ao toque, nos fará repensar sobre o retorno à valorização do olhar e a necessidade de vinculações processuais que vão além de um contato supérfluo e imediatista”.

Mazzotti compartilhou especialmente para o site Pitiú Textual séries de novos experimentos imagéticos, realizados recentemente por ela: “‘Ontogênese do vermelho’ está entre a performance e a videoarte. Eu tinha um desejo e ampliei ele a partir de uma provocação da equipe do Performing (@performing_project_sessions no Instagram). O vídeo tem um minuto, mas será acompanhado, daqui para a frente, de mais outros vídeos curtos, quando ressurgir o desejo. Assim como no vídeo a tinta fecha parcialmente a garganta, eu me recuso a falar mais dele. Prefiro que o sentido se dê totalmente por quem visualiza, a partir de associações espontâneas”.

Sobre “Água fabulada” e “O Duplo”, a artista evoca a relação entre as águas e a psique humana no aspecto comum da profundidade.

“A água é um símbolo genuíno do inconsciente, e isso está inscrito em muitos saberes ancestrais. Conhecemos pouco mais que 1% dos oceanos do planeta, existe uma profundidade, tal qual a profundidade da psique, a que não temos acesso — a não ser pela emersão dos conteúdos à consciência (pelos sonhos, devaneios ou invasões espontâneas — sabe aquelas imagens que surgem do nada, sem elaboração racional?). Isso me interessa muito hoje. Por isso e, talvez, pelo vital impedimento de ir às praias, os ensaios ‘Água Fabulada’ e ‘O Duplo’ chegam. E isso se dá a partir de um objeto que foi destituído de seu uso comum, onde evidentemente, outras coisas surgem — não só pra mim. O tijolo de vidro é um equipamento de acesso a qualquer um, que aqui em casa é utilizado pra ‘calçar’ uma porta, impedindo que ela bata com o vento. Não é algo em definitivo, sinto que tem muita investigação pela frente sobre as possibilidades do vidro em se tornar superfície líquida e superfície de edição corporal. Em ‘Água Fabulada’ tenho o recurso do timer da câmera, sendo íntima a escolha de certos enquadramentos, mas deixando a vir, como for, a distorção. Em ‘O Duplo’, é assumir ainda mais descontrole enquanto acontece uma conversa descontraída com meu primo, Lucas Mazzotti, ao mover da câmera e do tijolo de vidro através dela, escolhendo os momentos de captura da imagem”.

Confira mais no depoimento abaixo.

“O Duplo”, de Bruna Mazzotti e Lucas Mazzotti. Série de fotografias digitais. Niterói, abril de 2020

“Tenho 24 anos. Nesse período da pandemia, o apoio financeiro de minha família tem sido fundamental.”

Bruna, o que esse período pandêmico afetou seu cotidiano? E no que te intimidou?
Tem sido um período para aprender a lidar com a frustração encaminhada por tantas incertezas. A intimidação vem daí.

A pandemia tem afetado economicamente você?
Sim. Trabalhava enquanto educadora em um museu, e os contratos foram suspensos por tempo indeterminado.

Em que a pandemia mudou seu modo de encarar o mundo?
Quando as questões estão muito próximas temporalmente, é um tanto difícil de encontrar uma resposta. É uma questão que conseguirei responder daqui a um ano, talvez.

“O Duplo”, de Bruna Mazzotti e Lucas Mazzotti. Série de fotografias digitais. Niterói, abril de 2020

Você acha que a pandemia é consequência de quais fatores?
A era geológica do Antropoceno está aí. A crise de saúde global é consequência inevitável das ações do humano no mundo. Artistas já avisavam há muito sobre as emergências desse período, nas interligações entre arte, ciência e natureza. Tem um artigo de Kayla Anderson, “Ethics, Ecology and the Future: Art and Design face the Anthropocene”, que evidencia o trabalho de artistas e designers que abordam problemas ecológicos, além de atuarem criticamente sobre essas questões. Como referenciais para discussão ela cita os trabalhos de Jae Rhim Lee, Anthony Dunne e Fiona Raby. Aqui no Brasil, acerca de artistas visuais que trabalham em cima da temática do Antropoceno, eu poderia citar: Edgar Franco, Jaider Esbell e Walmeri Ribeiro. Vale a pena dar uma olhada nessas poéticas para refletir o agora.

Muitas mortes, muitos enfermos, muitas pessoas contaminadas pelo coronavírus, mas as pessoas continuam se comportando como antes da pandemia. Agora a Prefeitura decretou o uso obrigatório de máscara. Precisa de lei, multa? Não bastaria o sentimento de Amor coletivo e de Afeto pelo Outro?
Não moro em Manaus há alguns meses, mas na cidade em que eu me encontro (Niterói-RJ) há rigoroso decreto de multa. Ainda assim, quanto mais o tempo decorre, desde março para cá, há um relaxamento maior da população. Vejo isso ao sair nas ruas e passar por várias pessoas sem máscaras, como se nada estivesse ocorrendo. Ao que parece, o sentimento de amor coletivo está morto.

Em relação às questões sexuais, em que a pandemia afetou?

“O Duplo”, de Bruna Mazzotti e Lucas Mazzotti. Série de fotografias digitais. Niterói, abril de 2020

E no que tange a sua arte, qual o impacto da pandemia no seu ofício? Mudou?

Trabalho com pesquisa e execução das artes do corpo. Me percebi escrevendo mais e me movendo de menos. Antes eu tinha um equilíbrio entre as duas esferas.Também tenho me preocupado mais com as questões de artes que necessitam de ativações por contato. Nos anos 1970, 1980, o Brasil estava sob a ditadura e estava em voga uma atividade compensatória dos artistas (Lygia Clark, Ligia Pape, Hélio Oiticica, Cildo Meireles, só para citar alguns), que propuseram vivências que só poderiam ser ativadas em cooperação, participação, encontros por excelência. A figura de um artista aurático (longe, inacessível, cultuado, para pegar emprestado o termo de Walter Benjamin), perde sua força para um outro polo: as sucessivas reativações por participadores. Como esse estado de presença pode ser evocado nas plataformas? Penso logo em Byung-Chul Han no livro “A salvação do belo”: ao escrever sobre as plataformas digitais, exibe que as interações estão cada vez mais precárias, rasas, e nesse sentido se aproximam do pornográfico. O autor coloca que o erótico, por outro lado, necessita de real vinculação. Como essa vinculação é possível dentro de plataformas que foram planejadas para encontros superficiais? O instagram tem suas reações rápidas aos stories, sintetizam a palavra demorada. Por exemplo: fiz upload de uma videoarte de 20 minutos para a plataforma IGTV, mas depois de 1 minuto de decorrer do vídeo, os acessos recaem bruscamente, numa “inviabilidade de se demorar” porque estamos em um mundo que falta tempo. O virtual sintetiza tudo. Mas não é o único lado da questão. A pergunta feita por Roy Ascott, anos e anos atrás, reacende com ímpeto: “existe amor no abraço telemático?”. Bem, se eu não pudesse ver meus pais por videochamada, certamente que não teria o mesmo ânimo que me segura nessa quarentena. Há toda uma dualidade envolvida.

Quanto à Lei Aldir Blanc…?
Bem, a Lei Aldir Blanc beneficia quem tem três salários mínimos ou menos por família. A garantia de uma renda mínima básica é fundamental enquanto política pública, e deveríamos pensar nisso para além desse período pandêmico. Outra questão: hoje temos editais que saíram com chamada para produções elaboradas em isolamento social, mas o que se vê é um quantitativo exorbitante de inscritos para um ínfimo número de vagas. Há pouca oferta e muita demanda. Como mudar isso? Vi algumas iniciativas de autogestão, pensadas como alternativas a esse lugar, através da captação de recursos por financiamento coletivo. É longe de ser o ideal, mas é uma estratégia que tem sido adotada por diversos coletivos de artistas.

Com a pandemia, você sentiu que tem mais responsabilidades com você, seu ofício artístico e com o mundo/Outro?
Sinto o quanto a vida é frágil, um instante precário.

“O Duplo”, de Bruna Mazzotti e Lucas Mazzotti. Série de fotografias digitais. Niterói, abril de 2020

Você tem sonhado muito nesse período pandêmico? Se sim, poderias nos narrar um sonho que te impressionou, nesse período…
Os sonhos são o embasamento poético para meu fazer artístico. Jung já dizia que a arte é como um sonho: nunca interpreta a si mesma, apenas apresenta imagens simbólicas abertas para associações livres. Gosto de pensar através disso. Tenho sonhado sobretudo com espaços externos, numa via compensatória ao isolamento social. Outro viés: sonhos de perseguições e/ou cômicos, que têm me acompanhado igualmente: “Eu estava junto com algumas mulheres num andar de um sanatório velho. Estávamos com batas de hospital, brancas. Algumas de nós possuíamos armas brancas e/ou de fogo. O local era um grande salão com 4 portas fechadas e uma aberta. Nessa porta aberta havia outras mulheres esperando. Sabíamos no fundo do nosso coração que o inimigo (até então desconhecido) iria sair de uma daquelas portas a qualquer momento. E demorou MUITO, mas muito mesmo, para saírem. Então, dentro do quartinho, depois de um longo período, escutávamos algo chegando. Fomos surpreendidas por brinquedos pequenos, coloridos, ora de plástico, ora reais: comidas e bebidas com olhinhos e boquinhas — sorvete, bolo, tortas, pastéis…. Minha lógica foi atirar nos menos saudáveis” — Sonho de 25/05/2020.

“O Duplo”, de Bruna Mazzotti e Lucas Mazzotti. Série de fotografias digitais. Niterói, abril de 2020

A minha geração (X) vivenciava muito a paquera nas ruas, no olho no olho. A cantada via olhar era muito importante. Hoje em dia, devido aos aplicativos e sites de relacionamentos, parece que essa cultura de “caçar” ou paquerar através do olhar se perdeu bastante, pois o jovem ficou muito ensimesmado e sabedor de que há uma oferta muito grande de rapazes e moças nos aplicativos e sites. Mas, com a pandemia, e o uso da máscara, tenho vivenciado um certo retorno da paquera via olhar. Com o uso da máscara, olhar o Outro com mais curiosidade e desejo aumentou?
Bem, durante esse período não flertei na rua para saber– ainda! Hahaha. Já fui adepta dos apps de encontros, mas hoje vejo que não me dou com essa interação rápida, imediatista, de consumo dos corpos na vitrine que é o Tinder e variados. Prefiro as vinculações que são construídas pouco a pouco, por entre um crescimento modesto e conjunto que avança gradualmente. Acredito que esse período pandêmico, tão restritivo ao toque, nos fará repensar sobre o retorno à valorização do olhar e a necessidade de vinculações processuais que vão além de um contato supérfluo e imediatista.

“Água Fabulada”, de Bruna Mazzotti. Fotografias digitais. Niterói, setembro de 2020.

Alguma proposta “utópica” para a construção de um mundo possível (respeito à natureza, ao diverso, aos gêneros, ao planeta, aos artistas, aos pobres economicamente)?
Tenho uma proposta não utópica: considerem o veganismo. Aparentemente, coronavírus e veganismo não têm nada em comum. Mas, vamos aos dados: segundo o app I’m Vegan (www.cowspiracy.com/facts), com 331 dias de veganismo, fui responsável por salvar 1.258 metros quadrados de florestas, 1.378.284 litros de água, 3.674 quilos de CO2, 530 animais. Deixo aqui também uma reportagem recente da BBC sobre essa relação entre o contato com animais silvestres e o potencial pandêmico: Plano para prevenir novas pandemias custaria 2% dos gastos globais com a covid-19.

Obrigada e abraços!

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