SÉRIE PITIÚ: PANDEMIA E JOVENS ARTISTAS DE MANAUS

Walter Juur: ‘Acho bom o que nos aproxima do cuidado que os indígenas preservam na vida deles’

Francisco Rider da Silva
Pitiú Textual das Artes
12 min readOct 15, 2020

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Obra: “Única Aglomeração Possível”, de Walter Juur, 2020.

A vida que era vivida em parte no automático sofreu um repentino reset. Para o artista Walter Juur, de 27 anos, a mudança trazida pela pandemia de Covid-19 intimidou e trouxe certa instabilidade, mas teve seu aspecto positivo. “A individualidade se tornou não mais um bicho de sete cabeças. A autonomia foi um presente, mas sabe aquela sensação que a gente tem de que, se não ralar muito, você não consegue o que quer? Eu mal esperava que fosse ser ‘forçado’ por uma pandemia, logo eu que recorro a perceber a naturalidade das coisas que me atravessam. Eu definitivamente encaro o mundo de forma mais corajosa”, afirma.

Para a “Série Pitiú: Pandemia e Jovens Artistas de Manaus”, Walter Juur compartilhou com o Pitiú Textual das Artes algumas provocações envolvendo o significado de Ser do Norte e as percepções relativas à Amazônia, sua cultura e sua ancestralidade. “Percebo uma desvalorização do potencial que a floresta tem e de morar numa cidade como Manaus, e acho essencial trazer nos meus trabalhos essa busca pelo meu ambiente, por mostrar o lugar em que estou de verdade”, assinala o artista.

O artista também compartilha suas impressões e vivências sobre a pandemia e suas repercussões em entrevista ao artista Francisco Rider, editor do Pitiú Textual, e apresenta algumas iconografias produzidas ao longo dos meses de janeiro a março, durante o período de isolamento social e redobradas medidas de higiene e cuidados impostas em prevenção ao novo coronavírus. Confira!

PROVOCAÇÕES DO ARTISTA

“Nunca me passou na cabeça ser esse artista que defende a mata, a Amazônia, essa coisa do Ser Amazônico, rs. Só que eu tenho essa naturalidade, muito desde pequeno minha família sempre fez passeio para o interior, nadar no rio, sítio, cachoeira. Minhas avós tinham um quintal carregado de diversas plantas, inclusive plantas que usavam para fazer chá, para quando estivéssemos doentes sabe, e tudo o que permeia uma relação Nós/Terra/Floresta. Eu estou perto do rio, do verde, dos cheiros, costumes e cultura de forma tão natural porque fui inserido nisso faz tempo. Quando eu era pequeno, minha avó passava Sebo de Holanda em mim, tomava copaíba, banha de cobra, e hoje eu estou fazendo um resgate disso em mim. Comecei a plantar também, hoje tenho manjericão, tomatinho, ervas para fazer comida, não só como preservação daquilo que vivi, mas porque observei que isso foi passado para mim, e portanto é algo cultural e ancestral de quem é do Norte, de quem cresceu com a sabedoria dos mais velhos em relação a remédios naturais, comidas típicas, gírias e costumes.

Quem é que não está habituado com a água preta daqui? Com os peixes? Com as ervas? A gente cresceu com essa fauna e flora, isso molda a nossa vivência.

Acho bom que nos aproxima do cuidado que os indígenas preservam na vida deles. Mas eu não sou indígena por estar fazendo práticas do cuidado da natureza, ou mesmo por ter nascido aqui; muito pelo contrário, eu nunca nem estive numa comunidade ou aldeia indígena.

Mas toda essa vivência é reverberada com o fazer, com o colocar a mão na terra, preservar, cuidar e passar para o Outro, e assim a gente vai cuidando do nosso saber, o que me proporcionou bastante um entendimento de dimensão que perpassa o material.

É tão bom entrar na mata e olhar as árvores longas, com suas folhas imensas, você vai acompanhando com o seu olhar e percebe o quanto tudo é interligado, é extenso e está em completa harmonia. Isso é minha inspiração para ser uma pessoa expansiva e aprender a evoluir.

Só para continuar, acho que isso termina a problematização: eu vejo tanto jovem aqui de Manaus que rejeita essa estética de natureza, que está se ligando muito mais a um mundo urbano de cidade grande, e que na verdade a gente não tem aqui, convenhamos. Percebo uma desvalorização do potencial que a floresta tem e de morar numa cidade como Manaus, e acho essencial trazer nos meus trabalhos essa busca pelo meu ambiente, por mostrar o lugar em que estou de verdade. Jamais vou ficar exaltado arquitetura eurocêntrica, que não tem muito a ver com o ethos amazônico, eu acho que isso não é viver aqui.

Ou seja, fazer isso é mostrar resistência sobre Ser do Norte, sobre participar da cultura que temos aqui. Eu acho mais engraçado é que, nessas cidades que não tem acesso à floresta que temos, a galera já está colocando planta dentro de casa, virou aquele apê cheio de plantinhas, kkkkk. E aqui a gente vê planta em tudo quanto é lado e a gente aprende os nomes e usos desde pequeno, não entendo como não valorizam e não querem mostrar isso, enquanto isso a galera de SP faz um esforço para ter verde.”

ICONOGRAFIAS CRIADAS PELO ARTISTA — MARÇO/SETEMBRO 2020

“Criei fotografias vindas do meu estado de nunca estar quieto, sempre querendo representar pensamentos, emoções, sentimentos, momentos… Na fotografia eu consigo realizar, embora eu seja o tipo de pessoa que gosta de abstração”.

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Imagem 1. “Foi no início da pandemia, logo nos primeiros dois meses, quando defini que ia ficar em casa. O que eu podia fazer de mim e para mim mesmo? Sem o movimento a que eu estava acostumado, o que é que posso desacostumar-me ou mesmo rever o que tenho de mim? Foi assim que criei essa fotografia que envolve folha de abacaxi com uns acessórios meus que estavam parados, afinal, nem sair podia”.

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Imagem 2. “Todo o aprendizado obrigatório sobre como devemos viver daqui em diante, apontando para o viver em sociedade, também me fez apontar para mim mesmo: como é que devo viver daqui pra frente ? Causou tanta turbulência… sofri calado”.

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Imagem 3. “As idas ao supermercado ultrapassaram a rotina de ir, escolher o que falta em casa, pagar e ir embora. Ah, que legal, eu também sou carne e poderiam me comer se canibalismo não fosse ultrapassado. Eu queria me divertir”.

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Imagem 4. “Nesses primeiros meses eu pude perceber que dava para escolher com quem queria andar, ficar ao lado, e foi da forma mais inusitada possível. Eu tinha que saber se a pessoa também estava se cuidando, em que pontos ela se parecia comigo, para que eu me sentisse seguro. Eu achei vários pontos em comum. Foto antiga, criação nova”.

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Imagem 5. “É preciso ter coragem para se encarar no pior dia possível. A gente se gosta todos os dias? Autorretrato de um dia caótico”.

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Imagens 6, 7 e 8. “Três colagens de paisagem, que existem e que eu criei. Olhar demais pras mesmas coisas faz surgir encantos sobre elas. Quando comecei a sair, qualquer paisagem que eu olhasse e que fosse diferente da janela da minha casa, me dava uma fruição danada… Eu gosto mesmo disso”.

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ENTREVISTA COM O ARTISTA

FRANCISCO RIDER: Walter, qual sua idade?
WALTER JUUR: 27 anos

Como você está se virando para sobreviver economicamente nesse período da pandemia?
Eu estou recebendo do meu estágio não obrigatório. Paramos em março e voltamos no final de julho, mas tivemos o privilégio de continuar recebendo. Se eu fosse demitido não teria nenhuma outra renda.

O que esse período pandêmico afetou seu cotidiano? E no que te intimidou?
O ir e vir, o direito de poder fazer o que eu quiser, sozinho, acompanhado, em casa, fora de casa, porque o novo normal tem exigido toda atenção possível. Eu tinha há um tempo deixado a sensação de resistir para existir guardado por um tempo, porém hoje em dia é isso que estou vendo, resistência pra viver, para ter saúde, para não se tornar estatística de um país de Terceiro Mundo com uma política devastadora. A pandemia me intimidou em tudo aquilo que não me custava pensar muito; afinal, no dia a dia, a gente vai deixando costumes no automático, a gente encaixa hábitos aqui e ali, a gente se enquadra em determinados jeitos de viver. Logo me sinto reformulado, bateu insegurança, mas isso não foi de todo um mal… nessas horas a empatia, resiliência e solitude se mostraram mais difíceis de se encarar que o normal… mexeu muito comigo.

A pandemia tem afetado economicamente você?
Felizmente não, mas sei que não é todo mundo que está bem nessa.

Em que a pandemia mudou seu modo de encarar o mundo?
Sobre ser, sobre estar sozinho. significações novas, ressignificacões inesperadas sobre mim. A individualidade se tornou não mais um bicho de sete cabeças. A autonomia foi um presente, mas sabe aquela sensação que a gente tem de que, se não ralar muito, você não consegue o que quer ? Eu mal esperava que fosse ser “forçado” por uma pandemia, logo eu que recorro a perceber a naturalidade das coisas que me atravessam. Eu definitivamente encaro o mundo de forma mais corajosa.

Você acha que a pandemia é consequência de quais fatores?
Aqui no Brasil, as consequências estavam invisíveis até se tornarem gritantes — como falta de saneamento básico, falta distribuição de renda a quem precisa, ausência de políticas públicas que poderiam estar a nosso favor em meio a uma catástrofe. Eu acredito que nós brasileiros tenhamos coragem, muita coragem mesmo para encarar tudo, mas nem sempre isso basta, e temos que aprender a cobrar do Estado todos os direitos que nos faltam. Se tivéssemos mais isso, quem sabe a cidadania fosse um fator primordial para garantir uma qualidade de vida.

Muitas mortes, muitos enfermos, muitas pessoas contaminadas pelo coronavírus, mas as pessoas continuam se comportando como antes da pandemia. Agora a Prefeitura decretou o uso obrigatório de máscara. Precisa de lei, multa? Não bastaria o sentimento de Amor coletivo e de Afeto pelo Outro?
Eu desacreditei primeiramente dessa lei, por que primeiro não pensaram nas condições das pessoas? Digo, não só o lado financeiro, pois precisa entender o todo para se levar mais a sério o uso de máscara. Como sempre, o Estado quer tirar até o último centavo da população. É um combo perfeito: não os prepara e pune quem não tiver autonomia. Oferece auxílio emergencial para ficarem em casa, mas aumenta o valor do alimento básico. Por que nós temos que ser os responsáveis pelo aumento dos alimentos? A quem serve pagar mais?
Estamos sendo pressionados a ter uma atenção pois estamos sofrendo consequências… Eu também me pergunto: onde está nosso afeto ao Outro?

Em relação às questões sexuais, em que a pandemia afetou?
Particularmente, passei a pensar melhor sobre o sexo, a sexualidade… O que me define, o que não é meu e o que nem sei explicar ainda. Não sabia nem que isso afetaria além de ficar sem o gozo. É aquela coisa, não dá pra cuspir na boca de qualquer um.

E no que tange a sua arte, qual o impacto da pandemia no seu ofício? Mudou?
Mudou bastante porque eu sou afetado pela noite, pelo vai-e-vem e sentimentos que vou sentir. Tirando as vivências que antes eu tinha, me sinto parado, mas sei que nunca vou estar, é só uma questão de transbordar minha visão pra outros modos. Tudo está girando em torno de mim mesmo agora, mais individual, sempre precisei me sentir em meio a acontecimentos, ocasiões, acasos… Hoje sou eu quem produzo tudo. Esteticamente falando, desenvolvi olhares novos que permeiam a relação saudável comigo mesmo, e o que posso passar pro Outro sem tocá-lo com as mãos ou mesmo conversar.
Não é mais sobre me integrar para criar, é sobre ter consistência na criação a partir dos sentimentos elaborados por mim, daqueles que tenho consciência, e daqueles que tenho consciência que são inconscientes… Às vezes chamo isso de intuição.

O que você acha da Lei Aldir Blanc?
O Estado pensa que, dando alternativa, vai silenciar qualquer coisa. Entretanto, nós precisamos nos manter críticos para não sermos massa de manobra. Tem um benefício? Tem, mas temos que ver o quanto é necessário e obrigatório esse amparo para arte e cultura, pois é nesses sistemas que nos movemos e existimos. Acho que, nessas horas, a arte não deve se relativizar para ficar balanceando do que artista precisa mais ou precisa menos, pois é o sistema estrutural que esta balançado e balançando. Quem vai cair? Quem vai conseguir se equilibrar? Acredito que é também fazer pensar sobre os nossos.

Com a pandemia, você sentiu que tem mais responsabilidades com você, seu ofício artístico e com o mundo/Outro?
Sim, principalmente de como eu artista posso ser útil à minha cidade e como posso mostrar como as pessoas estão afetadas — sem aqui dizer bem ou mal, mas afetadas, pois tudo mudou sim. Minha responsabilidade de viver intensamente o tempo que vivo nunca muda, mas posso dizer que essa fase vai ser única. O que quero mostrar é estar bem consigo mesmo quando você começa a se detalhar.

Você tem sonhado muito nesse período pandêmico? Se sim, poderias nos narrar um sonho que te impressionou, nesse período…
Tenho sonhado, sim! Na verdade, não é só nesse período, eu sempre sonhei, todos os dias, há anos… O sonho que me impressionou foi ter me visto em lugares imensos, com rios enormes, que eu nunca nem vi. Mas lá dentro eu me sentia tão em casa que eu sabia que não existe só calmaria, mas uma tormenta contínua que eu poderia evitar, ou não, abrindo uma porta para entrar… Escolher passar por aquela porta ou passar por ela para me sentir seguro.

Alguma proposta “utópica” para a construção de um mundo possível (respeito à natureza, ao diverso, aos gêneros, ao planeta, aos artistas, aos pobres economicamente)?
Com toda certeza! A minha proposta é que cada um tenha tempo para praticar dignidade, ter dinheiro sobrando, acesso às ferramentas tecnológicas e clássicas do conhecimento e alimentação orgânica, rs. Brincadeiras à parte… sim, além de nós artistas vivermos tudo intensamente, muitas vezes ultrapasso a barreira da realidade para um bem viver… Eu prezo muito pela liberdade, e acho que qualifica minha vida de um jeito que eu desejo para todos. Minha proposta utópica é que nos mantivéssemos firmes enquanto cidadãos pensantes e voltarmos a acreditar no poder do povo, sem botar dificuldade nas diferenças. É uma união simplesmente por ver que todo mundo está passando pelo mesmo.

A minha geração (X) vivenciava muito a paquera nas ruas, no olho no olho. A cantada via olhar era muito importante. Hoje em dia, devido aos aplicativos e sites de relacionamentos, parece que essa cultura de “caçar” ou paquerar através do olhar se perdeu bastante, pois o jovem ficou muito ensimesmado e sabedor de que há uma oferta muito grande de rapazes e moças nos aplicativos e sites. Mas, com a pandemia, e o uso da máscara, tenho vivenciado um certo retorno da paquera via olhar. Com o uso da máscara, olhar o Outro com mais curiosidade e desejo aumentou?
Olha… Sinceramente, essa cantada pelo olhar é algo que nunca deu certo, só que eu percebi aquele clichê “nunca diga nunca”. Tenho recebido olhares, tenho distribuído olhares, quase fixos, quase instantâneos e quase duradouros. O olhar de longe tem tempo de duração. Que falta faz olhar sem parar… Agora, com a minha idade atual, tenho segurança e me sinto na melhor fase, então, digamos, vou tentar esses métodos que a geração passada viveu com mais precisão, rs. Entretanto, não vai ser a mesma coisa. O que a geração passada vivia era uma sociedade mais discreta, sigilosa e poucos lugares LGBT seguros. Hoje em dia, rebolar a bunda perto da outra pessoa pode ser um sinal, mas como a pandemia tirou isso, o que nos sobra? Acho que o problema é má escolha e fazer as coisas no automático.

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