Sobre Rodas de Aço — Capítulo 2

Leite David
PIXL magazine
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15 min readFeb 3, 2015

O Ministério de Segurança e Desenvolvimento era o único ministério do Estado que não possuía sua matriz gerencial em Brasília. Como os assuntos sob sua jurisdição sempre permeavam o meio marítimo e industrial, era de mais valia que o Ministério também estivesse fisicamente em local apropriado.

A Casa Forte, como era conhecido o prédio, ficava próxima a Igreja da Sé, no centro de São Paulo. Alguns consideravam tal posição uma ironia, visto o extremo oposto de ideais que estas instituições pregavam. Alguns diziam, mesmo, que tal posição era estratégica na intensa vigília de ambos os lados sobre seus interesses conflitantes.

Era um prédio diferenciado dos demais. Enquanto toda a arquitetura do centro era rebuscada e elusiva, o prédio seguia uma linha Bauhaus. Um quadrado gigantesco de concreto, que ocupava todo um quarteirão, expirando autoridade e austeridade. As poucas janelas, também retas, eram cobertas de vidro reflexivo e se dispunham em filas em cada lado do prédio. A versão reta e séria de um arco de entrada ficava a frente, ostentando o acrônimo MSD, em letras garrafais e prateadas.

Dentro do ministério, na maior sala de reuniões, uma acalorada discussão se desenvolvia.

- Isso é um ultraje!! — Diz, com a ira transparecendo na voz, um homem em um dos cantos da grandiosa mesa. O homem trajava uma fina indumentária de linho, com cores vibrantes e uma manta púrpura sobre os ombros. Bordados dourados e gemas diversas acompanhavam a decoração da roupa. A roupa era tão intensa que mal se percebia as particularidades anatômicas do próprio homem. Uma pele branca como neve, olhos de uma cor impossível de descrever e orelhas pontiagudas.

- Entendo sua consternação, Vossa Majestade, no entanto, também espero que, com toda sua inteligência, compreenda nosso dilema. — O homem que responde, como uma voz grave e sem oscilação, estava no extremo oposto do primeiro, tanto em sua posição na mesa, quanto em sua identidade. Na casa dos 60 anos, com rugas preenchendo quase toda sua cabeça, até no espaço que a calvície liberou. As rugas pesavam em seu semblante e deveriam tornar qualquer expressão uma aeróbica para os músculos de sua face, se estes músculos não fossem tão sedentários. Um terno preto e formal completava a figura.

- Não me importa realmente qual o dilema que enfrentam — Continua o primeiro homem, ainda com o tom de raiva — O que me importa é o resultado disso que estão fazendo. Já não basta todo preconceito que meu povo enfrenta, vocês ainda tem a audácia de reforça-lo com uma campanha difamatória e desinformativa? Sabe a quantidade de constrangimento que isso vai gerar à todos meus iguais que, de boa vontade, assinaram o Pacto?

- A cartilha é bem específica e informativa, Majestade. — Continua o segundo homem, com a mesma impassibilidade — Ela orienta a Artistas não registrados que se registrem o quanto antes, e deixa claro que não é tolerado preconceito. Entendemos a boa vontade e caráter de quem se registrou, mas não podemos deixar nenhum Artista marginalizado. Você sabe como isto é um risco grande à nossa sociedade.

- Não, meu amigo. Independente de como você use suas palavras, esta cartilha vai simplesmente criar uma desconfiança e denuncismo ainda maior.

- Creio que sim, Majestade. Mas não retorno um centímetro em minha decisão. Você sabe muito bem que o Pacto é a única segurança que temos contra o poder de vocês. Enquanto o poder de vocês servirem ao bem comum, e apenas com esta certeza, nós poderemos ter uma sociedade saudável em que este tipo de situação não ocorra. Até lá, eu tenho que me valer dos meios que apresentarem melhor resultado. A cartilha sairá para as ruas, espero que com ela eu tenha um contingente maior de registro, ou que quem não queira se registrar entenda o que não iremos tolerar. Os possíveis “efeitos morais” desta propaganda jamais serão desculpa para que eu não faça o que está em meu alcance.

- Pois bem, Edgard. Então faça… Mas saiba que me isento de qualquer apoio ao Pacto. Continuo respeitando seus termos, como assim nós fazemos sempre. Mas não me peça mais para que eu estimule ninguém a se prender a este acordo.

- Este é outro ponto a qual não queria chegar. Entenda, Auberón, que a sua falta de apoio pode ser entendida, interpretando do jeito correto, como traição ao Pacto. Se você não continuar a nos apoiar, teremos sérios desdobramentos políticos para resolver isso… — O tom da voz de Edgard muda no final, sumindo aos poucos…

- Você sabe muito bem que poderia destruir todo este prédio com um estalar de dedos, não é, Edgard? — Auberón franze o cenho e diz, com os dentes cerrados de ódio.

- Exatamente por isso que o Pacto nos importa tanto, Auberón… É por ele que você e nem nenhum outro poderá fazer isso…

A reunião termina abruptamente, com Auberón deixando a sala em passos firmes, ignorando os apelos de Edgard para que aguardasse um dos funcionários para acompanha-lo. Sua manta púrpura, que esvoaçava parecendo querer permanecer contra a vontade de seu mestre, quase se prende na porta que Auberón bateu sonoramente atrás de si.

Sem se levantar da cadeira, Edgard volta sua atenção para a cartilha em cima da mesa. Um panfleto de pouco mais de quatro páginas, com apelativas letras vermelhas na capa, em tom denunciante, dizendo “Artistas e Cidadania”. Pelo todo tom da capa, parecia que os dois termos eram uma antítese.

Um homem baixo e franzino, vestido formalmente, que acompanhava a reunião, aproxima-se de Edgard.

- Não é perigoso provoca-lo assim, senhor? Ele realmente poderia reagir muito mal. — Pergunta a Edgard.

- Não, Charles. Auberón é firme com o Pacto. É assim que os pegamos… Mesmo se algum destes cretinos tentasse fazer algo contra sua promessa, o seu poder seria irrisório. São escravos disso. É por isso que o Pacto é nossa melhor coleira.

- Eu sei disso, senhor. Mas, se tiver um pouco de experiência com história, inclusive com a nossa própria, saberá que rebelião também é um grande foco de vontade. Não aperte tanto esta enforcadeira…

- Eu apertarei apenas para segura-los. Se isso fizer eles organizarem um levante, já teremos poder suficiente para combater o que quer que eles possam fazer contra nós.

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De volta ao quarto do hotel, Ézpiro e Indy jogam seus instrumentos e roupas em um canto mal iluminado. Indy lamenta ter perdido seu sobretudo. Já não era grande a recompensa para que ele pudesse se dar ao luxo de ter prejuízo.

Calados, ambos se dirigem a beliche. Éz salta rapidamente para a cama de cima, enquanto Indy desaba com todas suas dores e cansaço fazendo ranger a cama de baixo.

- Ainda não consigo acreditar — Indy é o primeiro a cortar o silêncio constrangedor. — Ele só gesticulou, e um inferno surgiu na minha frente…

- Eu havia dito para desconfiar. Você nunca sabe o que te aguarda nestas caçadas.

- Ele era poderoso demais. Nem mesmo na academia tivemos exemplos de alguém que fizesse isso.

- Afinal de contas, o que vocês vêem neste treinamento?? Eles só dão uma “pincelada” na capacidade da Arte?

- Não. Eu até vi algumas demonstrações simples e alguns vídeos. Mas não se compara um vídeo em preto e branco com a coisa “real”, colorida e quente….

- Pois é assim que vocês falham. Eles falaram algo de mim, antes de me mandarem você?

- Pouco. Muito pouco. Apenas que você já foi um praticante da Arte e, por algum motivo, serviu a KGB como caçador….

- Já é demais. Qualquer outra coisa que você ache que precise saber, me pergunte. Eu decido o que te contar…

- Eu não estou mais em treinamento! — Indy ergue o tom da voz. Não gostava de ser tratado como criança.

- AGORA começou o seu treinamento… — Éz é enfático. — Qualquer coisa que tenha aprendido na escola, só serve para te dar um mínimo de confiança. Ela é necessária. Mas também você não pode ser confiante o suficiente para virar presa fácil.

– Você parece saber tudo, não? — Indy alfineta

- A diferença é que eu realmente não sei, e extraio minha confiança do conhecimento da minha ignorância.

Indy estende a mão até a mesa próxima da cama. Gira a pequena válvula do lampião que estava sobre ela e a luz dentro dele morre.

- Amanhã vamos atrás dele? — Pergunte, enquanto voltava a cabeça para o travesseiro.

- Não… Suspeito que este caso seja maior do que imaginava.

- Por que?

- Ele é um manipulador talentoso, rapaz. E todo manipulador talentoso é talentoso por ter um propósito. Temos que descobrir, antes, o que ele pretende fazer…

Mais nenhuma palavra foi dita pelo resto da madrugada.

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Já eram quase 6 horas da manhã quando Nianda olha novamente seu relógio de bolso. Ela aperta o passo, tentando chegar mais rapidamente a loja, que ficava ao final da Galvão Bueno, condenando-se mais algumas vezes por ter acordado tão tarde.

O sol já estava levantando seu halo por sobre as lojas do lado oposto da rua. Precisava chegar rápido, não gostava de perder a oportunidade matutina. Ela passa da condição de “apressada” para “maratonista”.

Quando chega a sua loja de aquários, o sol já estava angulando sua luz e atingindo a fachada. Ela rapidamente saca seu molho de chaves da bolsa e abre o cadeado que prendia o toldo da vitrine. Ao mesmo tempo que a luz do sol descia, o toldo se levantava.

- Olá, amores! — Diz, com os braços erguidos, a seus espectadores por trás da vitrine. — Acharam que a mamãe não traria o sol para vocês, hoje?

Na vitrine, cuidadosamente alocados, um verdadeiro universo de aquários e seus habitantes. Pequenos e grandes peixes, das mais variadas formas e cores. Cada um tinha o privilégio de ter seu próprio aquário, finamente decorados e extremamente bem cuidados.

Só depois de saudar seus colegas, Nianda escolhe do molho a chave da porta. Ao entrar, a sineta toca uma delicada nota.

- Enfim….em casa. — Diz, enquanto inspira profundamente.

Para uma Náiade, é uma condição muito delicada a vida urbana. Seu povo possui a “limitação” de estar sempre ligado a um lago específico, portanto, a menos que uma cidade fosse erigida às margens de onde a natureza havia feito sua morada, ela estaria presa sempre àquele cenário bucólico onde nasceu.

Mas não para Nianda. O espírito dela era agitado e curioso. Mesmo com seu amor pelas águas plácidas, algo a impelia a sentir a vida e o movimento.

Uma idéia surgiu, então. Se ela estaria sempre ligada ao lago, porque não traze-lo consigo?

Todos os aquários de sua loja estavam plenos da água de seu lago natal.

Ela tira mais uma vez o relógio do bolso. Lembra-se daqueles lindos relógios Cartier que havia visto dias anteriores, com engenhosas pulseiras para prender no pulso. Seria bom para ela, que sempre estava preocupada com as horas.

- Bem, amores — Conversa novamente com seus amigos aquáticos — Acho que até as 8 horas está bom para vocês aproveitarem o sol, Ok? Não quero que vocês fiquem muito tempo porque creio que fará muito calor, hoje.

Ela se abaixa para tirar os sapatos. Preferia ficar descalça em sua loja. Repara, então, nas correspondências, jogadas por debaixo da porta.

Aluguel do mês, uma carta de uma conhecida da Irlanda (onde ela havia encontrado correio próximo daquele lago??) e um panfleto com os dizeres “Artistas e Cidadania”.

Ela abre o panfleto e começa a le-lo, ao mesmo tempo que encosta a porta e coloca as outras cartas sobre o balcão. O panfleto informava sobre a Arte, os praticantes dela e sobre o plano de governo de registrar tais praticantes para que suas habilidades conhecidas pudessem ser “valorizadas com o trabalho social”.

Ela não era registrada e preferia continuar assim. Mesmo sem o “véu”, a habilidade de disfarçar suas características físicas para uma forma mais humana, uma Náiade já possuia traços tipicamente humanos (embora sua beleza pudesse ser considerada “sobrenatural”). Nianda fazia questão de não usar Arte, tentando disfarçar sua beleza etérea com maquiagem e uma certa dose de desleixo.

O registro, para ela, seria um desencanto. Ela seria diferenciada, e todo seu objetivo de “imergir” na mundana vida da cidade iria por água abaixo (com o perdão do trocadilho).

Mas os esforços do Estado de “desentocar” Artistas pareciam se intensificar. Era melhor ela conservar, ainda mais, sua discrição, neste caso.

Ela joga o panfleto, depois de amassa-lo, direto na lixeira. A sineta da porta toca novamente. Era a senhora Kawaru, sua vizinha, que havia entrado para jogar conversa fora…

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Os sonhos de Indy foram permeados por fogo e derivados. Uma carruagem de fogo sendo puxada por cavalos em chamas e conduzida por um esqueleto flamejante. A carruagem começa e criar um muro de fogo com seu rastro ao redor de Indy, que parecia não ter escapatória. O sonho parecia tão real que ele conseguia sentir o calor do fogo em sua face. O calor aumentava a cada minuto, até que Indy percebeu que aquilo já não era só sonho….

- FOGO!! — Acorda abruptamente em desespero e se depará com Éz, sentado próximo a sua cama, recolhendo o braço rapidamente. Ele segurava um isqueiro aceso.

– O que você está fazendo?? — Pergunta, atônito, quando percebe que não está no meio de um incêndio.

- Estou apenas testando… — Diz Éz, com a mesma impassibilidade de sempre — Imaginei que você sonharia com fogo ou algo assim esta noite…

- É claro que vou sonhar, seu idiota. Com você segurando este isqueiro aceso perto de mim…

- Quando você acordou, eu tinha acabado de acende-lo.

Indy fica sem palavras. Será que a impressão que Jerio tinha lhe causado era tão forte assim? Se sim, ele estaria completamente desprotegido caso o encontrasse novamente.

- Vamos, levante-se. Eu precisei sair para telefonar para o Ministério. Agora eles precisam de um relatório mais completo

- Por que eles precisam deste relatório? Ainda não terminamos a missão…

- Nós terminamos. Eles darão continuidade. Não é nossa alçada. — Diz Éz, sem transparecer desapontamento.

- Sério? E quem, por acaso, seria melhor que você para dar cabo disso?

- É por isso que sou modesto, rapaz. Sempre pensam que tem alguém melhor do que eu, por isso sempre me salvo destes casos…

Indy não percebeu a ironia na voz de Éz. Ele levanta-se da cama e todos os músculos do corpo reclamam. O sono, ao invés de restaurador, parecia ter sido outra luta.

- Receberemos algo por esta noite, pelo menos? Preciso de uma nova capa. — Indy questiona, enquanto veste uma outra muda de roupa que havia trazido para o hotel.

- Seria sorte se sim, mas não conto com isso. Ao invés, já garanti um outro caso para nós.

- Outro contato com informações imprecisas e ambíguas?

- Não…na verdade. Desta vez, é bem correto. E você fará sozinho.

- Tem certeza? — Indy pergunta. Neste momento, realmente estava duvidando de sua capacidade.

- Sim, sim. Você é possivelmente o homem certo para esta missão.

Novamente, Éz não havia captado o tom de ironia na voz de Ézpiro.

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Jerio havia chegado ao Teatro Municipal um tanto ofegante. Quase se esqueceu da hora marcada e os entremeios pelo qual teve que passar para despistar qualquer perseguidor haviam-no atrasado ainda mais.

A grande porta dupla estava entreaberta. O segurança habitual não estava presente. Este era o sinal de que a reunião estava já ocorrendo.

Ele entra, olhando para os lados procurando algum observador. Ninguém. As luzes estavam apagadas, e o grande salão e o mezzanino pareciam cenários idílicos enquanto iluminados pela lua através dos vitrais.

Após uma rápida procura com o olhar, consegue distinguir uma luz amarelada partindo de uma sala no mezzanino. Prontamente sobe as escadas laterais e se dirige a ela.

- Já era hora — É recebido por uma voz rouca e áustera.

- Tive…contratempos — Responde Jerio, com o devido respeito na entonação.

- Sim…esperavamos por isso. — A voz rouca prossegue — Quem enviaram contra você? Milene? Ézpiro?

- O de máscara. Ézpiro, acredito.

- Então teve sorte de escapar. Ézpiro é um osso duro, mas não se envolve… Meu contato no Ministério providenciará para que ele não fique em nosso encalço.

- Não me pareceu tão impressionante — Diz Jerio, com certo desdém.

- Não diria isso se o encontrasse a dez anos atrás. Hoje ele deve estar cansado disto tudo — Diz o senhor de voz rouca, com mais profundidade ainda na voz.

- Há dez anos não teríamos este problema.

- Não viemos aqui para discutir isso. — Uma terceira voz, delicada como um sino de prata, corta o diálogo. — Meu tempo é exíguo e valioso. Por favor, relate…

- Sim, alteza — Jerio prossegue. — Ao que tudo indica, eles conseguiram terminar o dispositivo. Ele deve chegar ao porto de Santos, desmontado em vários contâineres, nos próximos dias. Vem direto da Inglaterra, ainda que algumas de suas partes sejam dos Estados Unidos e da França.

- Está completo, então? — a voz delicada questiona

- Ainda falta o sistema de armas, pelo que me informaram. As armas Tesla são complexas. O que está pronto é o veículo em si.

- E qual é o risco exato que isto apresenta para nós, Jerio? — Desta vez, a voz rouca quem pergunta.

- Bem. O veículo foi produzido por funcionários isolados do mundo. A única informação que foi lhes passada é que estariam produzindo um veículo para Guerra contra as fadas. Eles não tiveram acesso a nenhuma informação externa sobre qual o cenário real daqui. Eles foram convencidos de que estamos enfrentando uma guerra com os Desenvolvedores.

- Isso significa…

- O ministério pode não ser usuário da Arte, milady, no entanto eles entendem muito bem seu funcionamento e como criar uma egrégora. Não importa exatamente o que esteja acontecendo, o que importa é que eles criaram um veículo de guerra para uma guerra. Portanto, ele está imbuído de uma vontade e um propósito que o tornam indestrutível pelos nossos meios. Não teríamos como afeta-lo diretamente. E, dependendo do poder de suas armas, seria um massacre para nosso povo.

- Então, o que sugere que façamos?

- Não sei, Lorde Einrich… O que sei é que estamos numa sinuca. O veículo deles já tem seu propósito. Tenho dúvida de que eles vão deixar na garagem, como uma arma de dissuassão, porque ali ele perderia parte de seu escudo, simplesmente por não ser utilizado como foi o desejo de sua criação. Isso poderia nos levar a uma guerra para nos defender, que justificaria seu uso e o fortaleceria ainda mais, ou então nos colocaria em xeque, com uma arma apontada em nossa nuca.

- Não poderíamos, simplesmente, esperar e nos defendermos apenas em caso de ataque?

- Se formos atacados estaremos suscetíveis. Qual força teremos para nos defender após um ataque à traição? A maioria dos nossos não estão de acordo com o Pacto? É um desencanto grande ser vítima de uma hora para outra. Não sei se estaremos no nosso melhor no momento do ataque.

- E o que você sugere, então?

- Talvez devamos retornar para nossa terra. Este ambiente está se tornando hostil a cada dia…

- Nossa terra também não nos ama, Jerio — A voz rouca de Lorde Einrich tremula, denotando uma certa mágoa. — O êxodo também enfraqueceria nossa vontade e denunciaria nossa falta de força. Sairemos de uma armadilha para cair em outra, talvez ainda pior.

- O que faremos, então? — é a vez da voz delicada tremular…

- Não sei, milady. Acho que se foi nosso tempo. Este mundo não nos pertence mais.

- Se isso vazar, nossa única esperança é que uma rebelião forte o suficiente para quebrar o Pacto se levante. Talvez ir a batalha seja a única opção. — Jerio diz.

- Toda rebelião é paliativa, Jerio — Lorde Einrich prossegue — Já passei por elas vezes demais para ver que, ao invés de promover mudanças, apenas substituem o poder dominante. Se vencermos, como será? Teremos novamente um povo dominado crescendo em ódio contra nós a cada dia, até que novamente o barril de pólvora exploda?

- Aguardar de peito aberto o que parece ser a destruição para nós não parece ser uma opção muito aceitável, também — O tom respeitoso de Jerio o deixa, por um momento.

- Jerio, você não tem meus milênios de vida… — Prossegue Lorde Einrich — Se tivesse, veria os ciclos em que a história passa. Novamente, eles tentarão nos destruir, e, após isso, não terão inimigos excetos eles próprios. Então eles tentarão destruir a si mesmos. Na próxima primavera desta história, nós voltaremos.

- Ciclos devem ser quebrados, senhor. — a voz de Jerio começa a ficar grave e soturna. — Uma espiral que ascende é um ciclo quebrado. Não podemos ficar apenas aguardando a história se repetir. Aliás, aguentamos desaforo demais de seres tão inferiores.

- Você é jovem e arrogante, Jerio — Lorde Einrich se levanta — Esta mesma arrogância é o que criou esta situação inviável de convivência… É por essa soberba tola que existe o mundo DELES e o NOSSO, e não apenas UM, como realmente é. O Pacto foi criado com minha benção, e eu defenderei ele até o fim.

- Você não é capaz de defender nada, Einrich — a voz de Jerio torna-se mais escura — Você não tem força nem convicção para defender nem mesmo você, o que diria de seus ideais? Eu vejo derrota e fraqueza de vontade em todo seu ser… E o que é sua vontade contra a MINHA??

Jerio ergue a mão em direção a Einrich e cerra o punho no ar. O velho senhor, de barbas e cabelos grisalhos, vestindo um pesado casaco de camurça vermelha, não tem tempo de responder a afronta. No instante em que Jerio cerra o punho, o velho joga a cabeça para trás, retesando os músculos, enquanto eles endureciam e viravam puro vidro. Um único instante e uma escultura de vidro com a forma de Einrich é que resta no lugar em que estava.

- JERIO!!! — A voz delicada da madame que acompanhava a reunião sobe vários tons e faz a escultura de vidro retinir.

- Cale-se, Titânia. — A voz de Jerio continua negra como a noite — Estou defendendo nosso povo. Não vou parar por ninguém e não posso ter fracos em minhas linhas.

- Você…o matou!!!

- Não. Eu apenas revelei sua verdadeira utilidade… Uma figura de enfeite.

Originally published at ludbrico.tumblr.com.

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