A reflexão em seu mais significativo modo de ser

O único filme de Mário Peixoto como obra visual de leitura e de contemplação

Ligiane de Macedo
Plano Sequência
2 min readOct 14, 2020

--

Homem 1 e Mulher 2 em cena de Limite (Mário Peixoto, 1931)

O sossego dos primeiros minutos de Limite é um misto de impaciência e de anseio em entender aquilo que está longe de pecar pela pressa. Transcorre do simbolismo dos punhos algemados, ao balançar e deslizar de um barco ao deus-dará; à deriva dos pensamentos. À primeira vista, a compreensão parece uma tarefa difícil de se conquistar, e que depende do ânimo determinado de quem assiste.

A narrativa, talvez inexistente no que diz respeito a ideia de linearidade, de ações, de uma construção detalhista de personagens, ou de escancarados pontos de virada, não se mostra preocupada em esmiuçar a vida dos três tripulantes. Os fragmentos de passados individuais são lançados convenientemente de forma que não subestimam a capacidade de reflexão do espectador. As personas são situadas em suas características mais íntimas, por meio de pistas gentilmente enquadradas pelo olhar de Mario Peixoto. Limite exige a profundidade de ler o que se vê e de subjetivar as informações visuais, no modo mais significativo dessas ações.

Limite nos coloca como iguais frente à capacidade de compreensão, mesmo que o resultado do entendimento seja diferente. A obra é de um caráter artístico na cabeceira dos que viriam a ser os demais trabalhos de vanguarda do cinema. A obra-prima nacional tornou a valorização da cinematografia muda — um dia intercedida pelos resistentes a era do talkie , um argumento compreensível e desencadeador do desejo irrefutável de defendê-la, ante o visual que por si só cumpre a tarefa de contar, sem a entrega de mão-beijada proporcionada pelos diálogos que acabam por destituir-nos do esforço intelectual de entendimento por meio do recurso humano de visualização atenta.

Ou a reflexão se faz presente, ou Limite torna-se um amontoado de pontas sem sentido.

A repetição, o enquadrar e o desenquadrar despreocupados com equilíbrio, ordenação e simetria, esclarecem a fenomenalidade de Limite. O avant-garde de Mario Peixoto experimenta as possibilidades das câmeras irrequietas que — ao mesmo tempo em que revelam os cabelos esvoaçantes dos homens no cemitério, a tesoura afiada da costureira que observa o céu que se revela por entre os buracos do telhado, e que lembram seu passado atrás das grades, os sapatos dos casais infiéis, e o riso gutural, que só caracteriza-se como tal pelos planos dos dentes sujos e irregulares do público no cinema — rolam em um abismo, e dão por entender o ensejo da personagem de acabar com si mesma.

Em Limite a natureza é sabida como soberana. O arrebentar das ondas, a ventania que balanceia as árvores. Seu meio de subsistência são as almas transgressoras completamente fadadas ao cansaço de carregar sobre si toda a revelia do mundo, e que a tornaram o seu descanso para sucumbir.

--

--