Depois de O GRITO

Sara Matos
plastic i arte
Published in
4 min readJan 4, 2023

O verbotrágico é o novo verborrágico. Dediquei estar despencada, inaudita, extasiada com a cabeça-nuveada, o tronco estacionado sereno em cima de uma cerca de madeira, descontinuando em frames prolongados a cena em que afinei o meu instrumento de existir no globo. Aquilo que tem presença, ao mesmo tempo tem espírito, e que, não se pode tocar e nem muito menos ver, longe do estado da matéria, fui sendo amarrada por idiomas fractais, o elo do campo espiritual, arregaça espaço para o alagamento corporal e da memória, assim, podemos chamar isto de objeto memória-corporal. Entre as suas correntes, há o sonho.

Quando a cena se rabisca, se redesenha em uma tentativa, ainda que despretensiosa, de se desvincular do estado fiel, cru, ritualístico e macabro de seus idiomas fractais, para então pegar um atalho de via única, um objeto enlatado, pronto, bruto, contaminado de substâncias químicas possivelmente produzidas dentro de laboratórios, logo deixa de me interessar. Tudo aquilo que respinga na dureza da serialização, do design, da indústria, deixa de me interessar e, por um breve instante, os jogos de luzes pontuais tiveram este papel do artificial, do smart, do acender, do deslizar das telas, do embasbacamento. O excesso da luz paralisa o que caça ser leve e fluído.

É fraco tudo aquilo que já vem pronto, o curioso da coisa é a participação, pôr as mãos nas etapas, remodelar a massa. O ato do ritual é uma preparação para o que está por vir. Se não houver a morada na longevidade, do tronco de arame, do alongamento, do calor, da poesia, das sensações, não há presença e nem muito menos espírito. Em um dado momento, foi assim que estive ao assistir da plateia o recorte depois de O GRITO, imediatamente, a decepção faz parte da embriaguez das provocações artísticas. Mas isto, foi apenas um pequeno recorte de um todo. Diria que, um recorte quase que inútil diante de tudo o que representa e pode representar o espetáculo ritualístico dos mestres Artur Luanda Ribeiro e André Curti.

A compreensão dentro de uma caixinha, a narrativa fechada, o sequencial não interessa, por isto, irei começar pelo final. A metáfora existente no desabamento da parede de vidro pela terra e pelo céu, foi o ponto mais alto, o conturbado, o palpitante, o ápice, o memorável. Um corpo na terra, outro corpo que gira no céu e o “entre”, o encontro dos dois extremos que agonizam por suas próprias rupturas. De um lado, o corpo na terra incansavelmente fuçava criar raízes, de outro, o corpo no céu, exercia o seu poder de voo. De dois lados, o corpo no céu caçava por suas raízes, de outro, o corpo na terra tentava se atar ao seu voo. Ainda assim, estavam amarrados um ao outro pelo imagético magnetismo.

A primeira frase dos idiomas fractais acontece, mas a ordem está invertida, não somos nós que aprendemos ela, é ela que nos invoca e nos apreende. Não há uma procura, uma busca, uma lupa para enxergar de perto, quando ela te encontra, ela te enlaça, envolve, exorciza e as visões são expostas, a viagem é feita desta forma. Ainda que, muitas vezes, não haja forma. É um objeto delicado, tênue e exposto, que sobrevoa no teto do inconsciente, se espelha no mundo físico por alguns segundos. É um sonho acordado, ancorado pelo imagético magnetismo, o fio metálico e invisível condutor da vida. O acasalamento dos dois mundos se intensifica na ardência da dilatação da realidade e da fantasia. Do físico e do virtual. Da presença e do espírito. Do humano e do sistema, ao que compõem um ser-sistema humano.

Sobrevoando, o silêncio foi afinado.

Foto: Renato Mangolin — Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes

Após estender o meu corpo e contribuir a salva de palmas, me senti insaciada. Não busquei por nada. O silêncio me preenchia. O desabamento da tela de vidro ainda ecoava e o tempo ali foi distribuído retorcido, girado, do avesso. Não busquei por nada, fui buscada, procurada e descoberta. Descoberta da matemática, da razão, da compreensão. Coberta de fissuras, de perturbações, armações, problemáticas paralelas e compulsividades. Não quero ir embora. O meu corpo, extasiado, senta novamente no assento enquanto a sala se esvazia. Volto os meus olhos para as luzes sendo apagadas. Já fui atropelada e lançada longe, não quero fazer parte do formigueiro de gente. As paredes, o teto, o chão, as cadeiras gelam e o meu corpo está tão quente. É uma febre descomunal que me atinge na maior parte dos dias, e neste recorte, não seria diferente. O calor que se aloja no meu corpo fala sobre as minhas obsessões por extensões.

Os bilhões de fluídos que se multiplicam dentro são expelidos.

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