El mar de répter

Sara Matos
plastic i arte
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3 min readJan 22, 2023

Acompanho pequenos corpos diplópodes na superfície dos vasos de plantas da varanda, são eles, os chamados piolhos-de-cobra. Os piolhos-de-cobra são parrudos, se contorcem para o interior de si, contraem, se dobram feito origamis em torno do próprio corpo como se estivessem sentindo dor no abdômen e liberam um perfume ardente de queimar os olhos, ao que nomeio de feitiço. Para as outras pessoas, a tendência da situação é o afastamento, porém, compenetrada fico durante horas em seus atrevimentos, os seus corpinhos em formato de bolas de gude passam um ar de graça, são levianos e conseguem sentir que eu estou aqui, por isso, vejo graça e sorrio sereno.

Alongo o pescoço, olho para cima e me sinto cercada com o teto escultural de galhos em cima de minha cabeça, olho para baixo e me sinto alta e descolada desta terra. Deslizei o terreiro abaixo pelo jovem bosque, que se tornara a varanda de minha nobre casa, pude ser iluminada pela nuvem de pensamentos-cometas, de que o céu estava chorando e eu não poderia fazer nada no momento para consolá-lo: “Que pena! Sinto que você não esteja aqui embaixo, tendo a vista terrestre que tenho, se tivesse, você me entenderia e não estaria tão triste”. Caia sob a minha pele e então sinta o quanto estou quente e escorrendo para outros.

É realmente impressionante como as borboletas amarelas se camuflam nas folhas e as pererecas cinzas se camuflam nas pedras, pois acabo de quase pisar em uma perereca, e a mesma nem sequer me sinalizou. Apenas fica me olhando com os olhos esbugalhados “cheguei primeiro, não vou sair, deste tamanho e não está me vendo aqui?!” Todas elas são engraçadinhas por serem emburradas, estão sempre com a razão e com elas não arrisco a discussão. “Já tocou em uma mandrágora adulta?” Ora, se eu tivesse, me lembraria. Posso me esquecer de muitas coisas, mas se tivesse tido cara-a-cara com uma mandrágora, não me esqueceria.

Sei ler tantos livros difíceis, mas queria mesmo era aprender a ler estes bichos, plantas e seres supernaturais que perambulam por estes sítios. Queria saber flutuar feito um espírito por dentro dessas matas e me e-levar no tempo de cada coisa, compreender a beleza de coisas que não compreendo agora, pois, estou contaminada da atmosfera, da poluição, do lixo da cidade e nem mesmo estas águas cristalinas podem me limpar, visto que elas também se encontram contaminadas. Estou pouco me fodendo para as notas de cem, para estes papéis fedidos, para os bilhetes de loteria, que todos se matem entre si e engulam dinheiro, trepem dinheiro, vomitem dinheiro, caguem dinheiro. Vai dar uma tremenda diarréia.

A minha fome é por coisas que eles jamais serão capazes de conhecer realmente. Me adianto os passos, estou há milhas da cidade e ela continua entranhada em mim feito fumaça, está vendo só?! O trovão passa por aqui ligeiro e educado, a manhã movediça escurece, porém, as raízes conduzem o caminho. A solitude abre as cortinas de minhas pálpebras. As premissas que fomos ensinados desde o maternal, são convenções ilusórias, o que eles chamam de ensino, não é ensino e não passa de um emburrecimento gourmet. A tradição reacionária sendo coberta pela imprensa não me impressiona. Não, não impressiona facilitarem ser enganados bem na frente de seus olhos, se não existe jornalismo neutro, por que a história seria?

Esqueça tudo, esqueça, esqueça.

Me acene de fora do teto de vidro.

Subo montanhas de pedras negras ásperas, escalar é uma arte que está entre uma das melhores invenções depois da poesia, música e culinária. A aguardente não mais me alivia, a minha dose mais forte é estar sóbria no meio de todo o surto. Digo, os surtos. Reformulo o livro branco das encruzilhadas que é mais parecido com os ventos da intuição, às vezes, os ventos erram a direção e mesmo assim é preciso continuar o balanço no meio da selva vigiada, do fogo cruzado e da carnificina. O relógio de areia avisou que estamos todos despencando para a mesma direção, porém, alguns estão mais altos e outros mais perto do chão. Bobagem, o que acontece é que o relógio de areia está empedrado e não há mais aviso. Cá dentro, não ouso mais envelhecer, que dane-se a biologia, de hoje em diante, irei rejuvenescer.

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Sara Matos
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Coletânea de uma vendedora de dúvidas. Esboça aqui compilações de resíduos das imagens digitais e de filmes gambiarras.