MEMÓRIA-CORPORAL

Sara Matos
plastic i arte
Published in
4 min readJan 5, 2023

O estado de déjà vu diante de uma situação insólita, prossegue em armar uma teia de indagações, armadilhas, martírios e apontamentos subjetivos. O que me leva para as microbiotas que tem o papel de nos proteger mas também são capazes de nos infeccionar. Todo o envolver da anfibiose é fascinante pois é sobrevivência. A memória-corporal está em ter acesso ao que antes foi capturado visualmente e em converter estes volumes de dados para os territórios sensoriais. Capturar com as mãos as várias vias de estado sinestésico que ocorrem sem percebermos em uma determinada cena da viagem, a partir de um acontecimento aleatório, em que, em um dia ou uma noite, enfiados dentro do caos urbano, buzina, motor, apito de guarda, ambulante, lixeiro, boteco lotado, alto falante de carro, latido de cachorro, flanelinha, guri pedinte, manifestação, obra pública, enfim, podemos estar andando distraidamente pela calçada de uma avenida congestionada, no decorrer, decidimos chutar uma pedra no meio-fio em direção a estrada, e então, parece que esta ação foi a peça chave que faltava para sermos nocauteados pela tempestade de percepções que antes não tivemos.

Podemos pensar que não tivemos algum click antes por estarmos adormecidos ou anestesiados naquele momento em específico e que bastou uma pedra no caminho para nos puxarmos de volta para o nosso corpo, feito sair de um barril de gelo em que se estava metido até o pescoço e sentir a temperatura do próprio corpo entrar em choque gradualmente com a temperatura do ambiente. Este choque que acontece por uma ruptura ou uma mudança brusca de um polo para outro, é a fagulha que entra em evidência ao sermos deparados com a surpresa de uma colisão em nossa porta, o inesperado, o inevitável. O dualismo é rompido. Não há escapatória, é como se as linhas, os vértices, a parábola fossem montados e calculados em cima de nosso CEP, endereço, de nosso DNA.

Porém, ainda não é sobre a ideia de uma espécie de predestinação, a memória-corporal está mais próxima da biologia do que da metafísica. Digo, ainda não, pois, apesar de ser cética à metafísica, estou rodeada dela e não sei em qual quarteirão ela pode me fisgar. Para experienciar a imersão deste estado multissensorial de nossa superinteligência, podemos ter o poder da caneta por qual contexto, pontuação ou estrofe estaremos recebendo o nosso passaporte de delírio, prazer e dor. Um exemplo simples, é ter a liberdade de renovar simbolicamente lugares tumultuados de memórias, para que possamos ter acesso a elas, precisamos nos bordarmos das vivências íntimas.

Uma vez, eu estava no ponto de ônibus no aguardo para ir para casa e então começou a chover. Era final de um expediente, eu estava exausta, sem guarda-chuva, o ônibus estava atrasado e eu usava uma camisa branca. O sapato e a calça ficaram ensopados e a camisa transparente. Naquela hora, detestei tudo o que envolvia banho de chuva, pois me remetia a situação constrangedora de ter os seios marcados e expostos em público. Então, ventanias mais distante, na maioria das vezes em que eu estava andando na rua e começava a sentir um pingo de chuva na pele, me choviam os sinais do mesmo transtorno, sentia a mesma raiva e vergonha que havia sentido naquele mesmo dia, como se o acontecimento iria contra as leis universais e misteriosamente se repetisse.

Sete anos mais tarde, ainda continuo andando por aí sem o guarda-chuva na bolsa, mas agora ao começar a sentir um pingo de chuva na pele, ando mais tranquilamente, sem pressa, desacelero, respeito o meu sistema nervoso, ouço as pulsações, observo as contrações, brinco nas ondulações. Saboreio cada pingo de chuva que me toca, saboreio a roupa ensopada roçando no meu corpo, saboreio o cabelo molhado no pescoço, no ombro e nas costas. Toda a raiva e vergonha foram convertidas para diversão, uma distração hiperfocada, exceto pela noite em que perdi um chinelo no jardim botânico pela correnteza, mas este recorte faz parte do triunfo de se perceber em variadas parábolas e ligar as coordenadas a apenas um vértice ou vice-versa. Não sei. Mas isto não se trata de superação, esta mais próximo da autonomia e do controle, de pôr as mãos no volante e saber o momento de derrapar nas curvas. Derrapar na chuva.

A consciência corporal só é possível ser atingida quando passamos a tomar consciência do restante do nosso edifício e do que cerca ele, sabendo que a qualquer instante temos o poder de chacoalhar, colidir a estrutura, e então, refazê-la com sensações que permitimos, ou não, através de memórias. A máquina humana é superinteligente, deveríamos aprender mais com a extensão de nós mesmos, a explorar mais as pausas, as curvas, consistentemente, permitir derraparmos, pegar por um atalho, constru-irmos, destru-irmos e/ou mudarmos de estrada. A possibilitarmos sermos inteligentes com o corpo todo. Sobretudo, sobre nada, o grande volume de dados se perde, e então, sobram os resíduos do que já foi e do que será. O cabeçote armazena dados a prazo curto, não há vazão, mas há sangue, há oxigênio, logo, há respiro, resfriação.

Arquivo pessoal

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