O lugar que se retorna nunca é o mesmo

Sara Matos
plastic i arte
Published in
5 min readJan 5, 2021
Arquivo pessoal

Com passagem apenas de ida, deixei a cidade natal, familiares, amizades, paixões, bens materiais e a carreira acadêmica que não decolou. Deve ser a minha ambição de preferir a vista terrestre do que a vista de pássaro, é curioso a maneira como os prédios com pernas alongadas vão se transformando em um chalé, na linha do horizonte em que me desencontro, essa variação é para além da geografia. Quem precisa pagar por palestra com coach de carreiras se temos Tonico? Com a densidade da chuva de trabalhadores frustrados, não foge da compreensão o que Tonico Pereira disse uma vez, de que a única relação que permite ter com os acadêmicos é ser estudado por eles, foram as palavras mais impulsionadoras que ouvi nessa minha curta trajetória. E assim, como todo impulso, numa competição de corrida, regresso para lançar o meu corpo no tempo, disparar, ganhar mais velocidade.

Penso que àqueles que já estiveram ao lado de dentro dos muros e das grades de uma academia, irão identificar as próximas cenas mal ditas e/ou malditas, outros nem tanto. Ontem morava próximo de um rio com esgoto à céu aberto, mas era o cheiro dos teóricos pseudointelectuais que não suportava, quando abriam as bocas era indigesta a emanação de suas carcaças esnobes andando pelo campus, que precisavam se auto-afirmarem a todo instante para serem confrontados pela egolatria, faladores acordados de Paulo Freire, porém, sem aspirar de sua essência que é o fazer com as próprias mãos. Se apropriavam de grupos de maioria minorizadas, esvaziavam lutas que não eram deles para escreverem as suas teses e receberem títulos para alcançar um canal de entulhos no Lattes. Continuavam caminhando distante das realidades de grupos passivos. Não aprenderam a olhar para fora do umbigo e de seus discursos eufemistas sobre inclusão, equidade, empatia e mais algumas outras hipocrisias.

Me sinto alagada, exausta, hoje estou sem hotel para dormir, passei as primeiras noites na estrada, amanhecendo para a iluminação de postes velhos e construções, estruturações não identificadas, sem o nome de operários esquecidos. Olhos vermelhos sem colírios me acompanham, ouvidos limpos, afinados, costuram e desenham cabelos corporais, montanhas da ventania e luzes escurecidas me enviam sinais. Sou uma andarilha solitária adotada pela cafona filosofia minimalista, os pertences cabem no bolso, saí da rodoviária sem grandes bagagens, porém, com o peso pesado acima dos ombros, os pés firmes e o nó no peito, quem sabe, não esteja buscando por respostas, mas sim, reformular as minhas dúvidas.

Formular as questões me lembra uma frase do filme nacional 2 Coelhos (2012) “Às vezes a gente tem que se distanciar do papel para conseguir enxergar o desenho todo com mais clareza”. Se formos pensar que as boas perguntas são fundamentais para obter as boas respostas, ao sermos confrontados pelos lugares da dúvida e da crise a todo momento, os nossos questionamentos quando nos refutam, é um corpo devorador de si próprio. Mas o que são boas perguntas? É como se as bactérias esfomeadas avançassem na nossa carne viva, por não quererem o lugar do esquecimento, não quererem ficar empoeiradas na estante com as outras ideias. Então, a perfuração do diálogo entre dois polos se torna elementar. As boas perguntas são: tornar vivo, fazer diálogo, manter as águas em andamento.

De quando em quando, as lentes embaçadas não são garantias de que o óculos está sujo, não é à-toa que um cisco se torna uma tonelada de terra indesejada, [isso também serve para a companhia Cisco com os seus computadores mirabolantes de histórias de ficção científica dos anos 70]. Nesta noite estava a procura de aprofundar os ruídos que acontecem na rota da minha navegação, borbulhas de pensamentos que vazam pelas frestas das paredes sem ouvidos, para cima, para baixo, para frente, para trás, para os lados, arrancam o véu que cobria o rosto da noiva do mundo. O mundo interior do coletivo capotou em vias remotas, bisbilhotamos o recorte da imundice da época que escorre serenamente pelos poros de peles mortas, o horror sendo midiado em tempo real, a pandemia matou a todos, até mesmo àqueles que não morreram.

Mais uma vez em terras de encruzilhadas, rasguei o mapa e mapeei as estrelas com o dedo, tracei uma linha do leste ao oeste, sem bússolas e sem falsas muletas, apenas as verdadeiras que me conduzem ao destino de minha autoria. A janela do ônibus era como se fosse o feed das plataformas digitais, sendo que, com coisas reais, coisas que se alargam dentro, que pulsam. Observei os passageiros que estavam dividindo o veículo, havia uma senhora com o semblante pacífico, poucos fios dourados, corpo esguio e a pele reluzente que só se tem uma vez na vida, e é na terceira idade. Outro senhor mais jovem, alto, nas mãos inquietas havia um pequeno bilhete branco, tinha o olhar perdido no visor do motorista, parecia estar refutando a si mesmo, como se houvesse se demorado muito no retrovisor da imensidão particular. Consenti.

Pegar a estrada à noite é quando nos demoramos muito no nosso retrovisor particular. Estou há três noites dentro deste ônibus e ao perceber que ele não é parador, deduzi que vai a lugar nenhum. Nas estradas com postos de gasolina, restaurantes, atacadistas e hotéis vazios, se não fizermos as paradas necessárias, seremos acompanhados pelos mesmos fantasmas. Nos esqueceremos das questões iniciais que nos levarão ao ponto do vértice que pretendemos traçar e o esquecimento é um prato infortuno.

O percurso do trajeto sempre interessou mais do que chegar na última coordenada . Cogitei voltar ao lugar de antes, mas o lugar que se retorna nunca é o mesmo, no tempo da Terra, não há como ser retrovisor, a variação de fluxos é a geopolítica que patrocina e o dispositivo digital está quebrado. Sem nada a perder, pedi ao motorista para parar, desci do ônibus e disse para que seguisse viagem e que não esperasse por mim. Aproveitei o pouso da mariposa no meu cabelo, a vista de morros fogosos, o cantarolar das maritacas, o rugido das raposas em estado de cólera, o entrelaçar das árvores negras e do marinho do céu a abraçar o chão de pedra.

Me transformei em paisagem pedra-circular.

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